Cuma?

- Vamos, você consegue. Os olhos reviraram e procuraram uma saída. Não havia. Atrás dele cinco pessoas fortes, daquelas que o bíceps de um deles era seu torax. Do outro um pequeno muro, uma plaquinha simpática com a foto de um cachorro nadando em uma piscina de sangue.

 

Apenas um cafézinho.

Olhou para o copo de café sobre a mesa.

Não conseguia tocá-lo. Seu corpo implorava por aquelas gotas de energia e em algum lugar tenebroso em sua mente o café parecia transmutar-se em uma lata de espinafre e a voz de Olívia Palito ecoava em sua mente pedindo socorro.

Não queria tomar o café. Não era certo em sua mente que toda sua produtividade naquele dia oneroso de trabalho estive ligada intimamente àquele coquetel de cafeína proveniente da sempre amiga cafeteira automática. Aliás, olhava para a máquina de café colocada estrategicamente a dez passos de sua mesa e se indagava quando ela chegara.
 

Procuro mas não acho, ou acho que procuro.

Primeiro procurei na meia. Não estava lá, eu procurei, fucei, sacudi mas não te encontrei. Eu tinha certeza que estava ao lado daquela nota de cem reais que reservo na meia direita e que por ventura coloco na esquerda. Nem em uma nem em outra. Mas como todo bom brasileiro, se não sou insistente sou também teimoso como uma mula, logo, continuo a te procurar. Minha esposa dorme profundamente, mas mula não tem sentimentos, e a cutuco.

Ocaso do interior. (Tonho)


Um banco, uma praça e duas senhoras, ambas tricotando casacos.

- Sabe o Tonho?
- Que Tonho?
- O Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia?
- Ah, o Tonho. O que tem o Tonho?
- Que Tonho?
- O Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah sim, o Tonho.
- E então?
- O que foi?
- Você falou do Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah... Falei?
- Falou.
- Sabe que esqueci?
- Do quê?
- Do Tonho?
- Que Tonho?
- Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah sim, ele se casou.
- O Tonho.
- Não, José.
- José casou com quem?
- Tonho.
- Tonho ou José?
- Os dois, fugiram depois da missa. Foram para a cidade.
- Que horror.
- Tem linha pra continuar o casaco?
- Tenho.

Trocam linhas, casacos antes um azul e outro amarelo agora são azul-amarelo e amarelo-azul.
- Acho que as crianças vão gostar.
- Eu também acho.
- Mas do que falávamos?
- Tonho?
- Que Tonho?

E o ciclo recomeça.

O encontro de dois mundos.


No estúdio estavam os dois. Face a face, corpo a corpo.

De um lado, no auge de seus vinte anos, com apenas dois dentes na boca e as roupas velhas doadas por seu senhor feudal. Ele era a Idade Média. Ao seu lado estava sua esposa de quinze anos e na segunda tentativa de gerar um filho, já que o primeiro morrera de tifo. Ele observava com curiosidade o sofá e a textura do tecido, melhor que as acomodações de palha cobertas com couro da casa onde morava.

Do outro lado, no âmago de sua forma física um executivo do século XXI, o representante da Idade Contemporânea. Ele vestia um belo terno Giovani, acessava freneticamente seus e-mails corporativos de seu blackbarry e ao seu lado esta sua esposa, com quarenta anos e sem filhos.

- Boa tarde senhores. - Diz o cientista, que inventou a máquina que permitia tal situação.
- Tarde. - Responde a Idade Média.
- Boa tarde, meu senhor. - Diz a Idade Contemporânea.
- Hoje vamos apenas conversar, saber o que cada um pensa. Por quem podemos começar?
- Deixe o caipira começar. - Disse a Idade Contemporânea.
- Bem, vamos então...
- Eu sou a idade média. - Explica. - Vivemos muito bem em minha época, apesar de meu primeiro filho ter morrido de tifo...
- E o segundo morrerá de que? Peste bubônica? - Provoca a Idade Contemporânea, segurando o riso.
- Pelo menos meus porcos não espirram e me matam de medo.
- Medo? Com dinheiro eu compro o remédio.
- Eu não preciso de remédio, a fé funciona e é de graça. - Comemora a Idade Média, apalpando o bolso. - Aliás, nem de dinheiro preciso.
- Tenho carro e você não.
- Tenho cavalo. - Responde de imediato. - E não pago IPVA por ele.
- Temos saúde, chegamos até os cem anos com facilidade. - Gaba-se a Idade Contemporânea.
- Ah sim, apoiados em muletas e bancando filhos sangue-sugas.
- Vocês nem chegam aos quarenta.
- Pelo menos não temos crise de meia idade.
- Vocês pagam tributo ao seu senhor, que em geral é abusivo.
- Mas é apenas um tributo. - Diz a Idade Média, dessa vez se gabando. - Você tem mais siglas de impostos do que letras no seu nome, e para piorar, falam que é para saúde, segurança e educação. Não recebem nenhuma das três. E mais, se eu desconfiar de meu senhor posso simplesmente desafiá-lo para uma luta homem a homem e se vencer minha vontade prevalece porque há a lei da espada.
- Eu posso entrar na justiça! - Berra a Idade Contemporânea. - Temos advogados e leis claras!
- E esperar por anos para descobrir que nada mudou... Aliás, que você está errado e vai ter que pagar por estar certo.
- Como se fosse fácil brigar com seu senhor.
- Mais fácil que saber que é liderado por um crustáceo com um tentáculo a menos e que antes dele foi liderado por uma múmia e que nenhum deles jamais se importou com quem o escolheu. Essa tal de democracia. Pelo menos na idade média sabemos exatamente quem são nossos vilões.
- Como se seus reis e senhores fossem melhores que nossos políticos, com suas visões distorcidas da realidade e o clero que os subjuga e distorce a verdade.
- Quanto a isso me vieram siglas em resposta: IURD e Globo. - Responde a Idade Média. - Em nosso tempo apenas temos a Inquisição... Ah sim, concordo, políticos são um mal, digo mais.
- Você é banguela! - Provoca a Idade Contemporânea.
- Você está gordo de tanto fast food! - Responde de imediato a Idade Média. - Pessoas que nem Sarney seriam decapitadas ou tiradas por poder!
- Mentira, outro igual assumiria o poder. - Discorda a Idade Contemporânea.
- Ao menos se daria ao trabalho de fingir ser nobre. - Desdenha mais uma vez a Idade Média, cuspindo no sapato da Idade Contemporânea, que se revolta.
- Isso é um legítimo Mr. Cat! Tem idéia do preço! - Seu animal!
- Feio!
- Cara de mamão!
- Vou te mostrar quem é...

O cientista separa as duas idades antes que briguem como crianças imaturas.

Apesar de serem muito distantes, ainda assim eram muito próximas e parecidas demais.

O Sorriso de Joana.

 Joana é uma menina especial. Daquelas que dizem que Deus jogou a forma fora ou esqueceu a receita.

Cabelos ruivos, tom de mel. Rosto moreno da raça e um sorriso que torna qualquer sorriso tradicional de todo brasileiro apenas algo fútil. É feliz apenas por despertar e ver no horizonte um pouco de esperança. Caminha satisfeita pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. Pasta com documentos debaixo do braço esquerdo e um copo de café na mão direita.

Tem pressa. Como sempre, dormiu demais e não vai chegar ao trabalho na hora certa se enrolar mais. Ela conseguiu um belo emprego na Petrobrás. Trabalhava desde o início do ano no prédio da Petrobrás da Av. Chile.

Agora bate com orgulho no peito, afinal de contas, estudava desde pequena para seguir a carreira de engenharia química e aos vinte e cinco, recém formada, tudo se encaixava conforme o planejado.

Nada estragaria seu dia.

Consegue chegar na hora. O trabalho segue seu rumo tradicional, começando pelo tédio do começo da rotina, ao ritmo frenético sempre perto da hora do almoço e fechando com tranqüilidade nos últimos minutos. Pelo menos era dessa forma que Joana via o trabalho. Para muitos, no entanto, era um inferno da manhã até a hora de chegar na cama. Joana não era assim.

Ao sair da empresa seu celular toca.
- Marcos? - Atende Joana.
- Oi amor. - Responde a voz do outro lado.
- Tudo certo pra hoje?
- Claro, Joana. Comprei os ingressos para o cinema... Trouxe até o da pipoca. - Responde Marcos, com empolgação na voz. - Estou no centro já, me espera aí na empresa que te busco.
- Tá bom, de amo.
- Também te amo.

Joana desliga o celular e respira. Está radiante. Nada parece estragar seu dia. Em cinco minutos Marcos chegaria. Ela retorna para o prédio e entra no banheiro para se maquiar. Quatro minutos depois seu celular toca. Marcos já chegara. Ela corre para o lado de fora e vê do outro lado da rua o pálio de Marcos a aguardando. Ela acena para o amado e atravessa a rua.

Marcos buzina. Ela não entende e de repente seu mundo gira e escurece.

Marcos sai desesperado do carro e vai até ela. Um filete de sangue escorre de seu rosto enquanto um Honda Civic desaparece na avenida com o farol esquerdo quebrado. Marcos pega o celular e liga desesperadamente para uma ambulância. Amigos do trabalho e do prédio cercam-na, consternados com o que acontecera. Joana torna a abrir os olhos e sua mão trêmula procura o rosto de Marcos.

Ela não chora. Ela não lamenta. Apenas continua sorrindo.

Nada estragaria seu dia.

Nem a morte.

Nesse dia Joana partiu, mas sem perder o sorriso.

Cachaça e Paixão.

Ele apenas tinha um copo vazio e um olhar torto. Não fixava a visão em lugar algum e sequer conseguia fixar a mente para se importar. Estava em seu mundo particular e nem mesmo percebera quando o dono do bar o guiara por duas quadras e o abandonou solene em um banco de praça. Seu corpo ardia, mas menos que seu peito. "Marta", era a única coisa que conseguia balbuciar. Não faziam nem cinco horas que encontrara Marta e menos de três horas que ela queimara suas coisas e o expulsara de casa. Uma áspera discussão, ápice de um casamento torpe e que há muitos anos já dera mais do que podia. Mas ele ainda a amava, no fundo mais profundo de seu coração ainda ardia a mesma paixão de dez anos atrás. E ele precisava tentar mais uma vez, apenas uma. Levantou-se trôpego, com o copo na mão esquerda e a garrafa vazia de Velho Barreiro na outra. Arrastou-se pelas quadras em busca de seu antigo lar, movido apenas pela vontade de rever Marta. Pouco a pouco conseguia juntar letras e formar palavras, e quando estava na porta de seu condomínio já conseguia até mesmo falar com o porteiro noturno. - Diaslslaskls, Marta! - Falou. - Boa noite pro senhor também. - Respondeu o perteiro, alheio ao idioma da cachaça. Pegou o elevador até o sétimo andar e após cinco tentativas frustradas conseguiu finalmente encontrar a porta de casa. Adentrou sorrateiramente, pelo menos achava, e caminhou pela sala. Não notou a presença de um capacete azul escuro e um estranho casaco de couro marrom sobre a mesa de jantar, mesmo esbarrando em ambos. Chegou até o quarto e viu Marta, dormindo nua sob os lençois. Ela tinha um sorriso satisfeito e nada lembrava a mulher que horas antes o expulsara de casa. Menos entorpecido escuta a voz de alguém cantando no banheiro. É uma voz familiar, mas que não reconhece mesclada ao som da água. Entra no banheiro e vê um homem tomando banho. Tomado de ciúme e cego de ódio ele abre subitamente a porta, ergue sua garrafa e golpeia o homem com a garrafa de Velho Barreiro. Uma. Duas. Cinco pancadas. O sangue escorre pelo chuveiro. Sangue, vidro e ossos do homem que agora está caído no banheiro com um rombo na nuca do tamanho de uma palma e o rosto completamente desfigurado pelos cacos do vidro da garrafa que se despedaçara na primeira pancada. Ainda tomado pela raiva cambaleia até o quarto de sua esposa e a acaricia. Ela blabucia seu nome, o que apenas aumenta ainda mais sua raiva. Marta desperta e a última visão que tem é a de seu amado. Em seguida tudo escurece enquanto as mãos fortes e raivosas agarram seu pescoço e a estrangulam. Sem mais nada a pensar e a fazer ele se ergue. As mãos maculadas pelo ódio tocam seu rosto e o sujam de sangue. Agora está completamente sóbrio, trazido do mundo da bebida pelo ardor da fúria. Caminha até a sala e finalmente nota o casaco marrom e o capacete. Uma carta cai do casaco. Ele a lê, e lágrimas escorrem de seu rosto. Em seguida pula do sétimo andar para a morte. A libertação. No dia seguinte jornais noticiam: - Matou esposa e filho, depois se suicidou. E caída no chão, estava um singelo pedaço de papel...
Pai, Como você não chegou a tempo, eu decidi escrever essa carta mesmo. Provavelmente quando acordar de manhã já terei pego minha moto e partido. Consegui finalmente me curar daquela terrível doença. O médico informou que não precisarei mais comparecer as sessões de quimioterapia e que se as coisas continuarem desse jeito me dará alta completa até o final da semana. Mamãe me contou da briga que tiveram, mas relaxe. Ela o ama, e conversei com ela a respeito. Amanhã espero que estejam bem melhor, não quero pensar que minha doença tenha acabado com o casamento de vocês. Não vai ser uma briguinha que vai acabar com um casamento de anos, ainda mais agora. Te amo, pai. Cuide bem da mãe.
Inserido a pedidos do Lestat.

O Parque Sombrio - 5

- Me dá mais uma da boa! - Berra Abreu, com o copo vazio de cerveja. Sentado em uma mesa do Bar do Zeca, um boteco local, o médico e legista Abreu não parece se incomodar muito em esperar dias na Ilha de Paquetá pelos resultados de testes de amostras retiradas das vítimas do Parque Darke. Ele está completamente embriagado e aos beijos com uma mulher que aparenta idade para ser sua mãe (sendo que ele tem quase cinqüenta anos). Naquele momento em específico ele faz aquilo que sabe fazer melhor: torrar dinheiro público. Não que Abreu seja corrupto, mas ele conta nos dedos quantos não se aproveitaram de esvaziar cofres públicos em diligências optando em comer em locais baratos ao invés de só usufruir do bom e do melhor. "Considerando nossas condições de trabalho, é nada mais que justo", respondia quando questionado sobre suas práticas onerosas dando a entender que o estado precário do IML era justificativa para seus atos. Quando chega quase uma hora da manhã Zeca, o dono do bar, de forma educada convida todos a se retirarem. Abreu, ainda abraçado da mulher, se levanta e pede apenas mais uma cerveja pra viagem, sendo atendido prontamente. Zeca preferia se livrar do bêbado do que manter um casco de vidro - pelo qual cobrou. Abreu retoma caminhada com sua parceira e caminham até a Praia da Guarda. Excitados pela bebedeira os dois se sentam um banco a beira da praia e começam carícias mais ardentes. Beijos e gemidos se manifestam e um seio já está a mostra quando escutam o som baixo da viatura de polícia. Imediatamente os dois se recompõe e se levantam ao mesmo tempo que a polícia passa e os ilumina com a lanterna. Um dos policiais reconhece o médico. - Vai São Jorge! - Berra o policial, gargalhando com o amigo. - Vamos para algum lugar mais íntimo? - Propõe a mulher, lambendo a orelha de Abreu. - O que sugere? - Pergunta, tomando em seguida um gole de cerveja. - Vamos pro Darke? - Fala a mulher, apontando para o Parque, completamente escurecido. - Mas... - To vendo que vai brochar, não é? - Nem pensar! Os únicos mortos que Abreu manipula são os do IML! Eu sou muito vivo! Vamos para lá... Você nunca vai se esquecer dessa noite! O casal cambaleia pela noite em direção ao Darke. Uma caminhada que levaria apenas cinco minutos de onde estavam leva quase quinze por seus estados físicos e mentais. No caminho Abreu propõe que se agarrem na praia, mas a rampeira insiste em fazerem tudo no parque. "Lá é mais gostoso porque é proibido.", provoca enquanto coloca a mão dentro da calça do legista. Com rapidez e experiência a moça pula o muro seguida por Abreu. Caminham pela área livre do parque até que chegam ao local onde o corpo de Isabela foi encontrado. Um pouco de náusea tomou Abreu enquanto continuavam e avançavam rumo a trilha que levava ao mirante. A trilha foi percorrida em menos de sete minutos, entre tropeços e gargalhadas bêbadas. Mal chegaram ao Mirante a blusa da rampeira foi tirada e Abreu já passeava entre seus seios. Foi um sexo selvagem e sem muita preocupação. Estavam completamente sós e as únicas testemunhas do ato eram animais e o céu estrelado daquela noite. De repente Abreu tem a impressão de escutar um galho se partindo. Retira a boca do ventre da mulher e olha para os lados. - Você escutou? - Pergunta o médico. - Escutei o que? - Responde, ofegante de prazer. - Um galho se partindo. - Está maluco doutor? Vamos continuar! Abreu retoma os afazeres e novamente escuta o som, dessa vez mais perto. Se levanta e procura por alguma arma entre suas coisas. "Merda! Esqueci o 38 no hotel!", pensa enquanto sua parceira se levante contrariada. "Tá chapado?", pergunta revoltada enquanto veste a calcinha. - Cala a boca e escuta! - Bronqueia Abreu, agarrando o braço dela e olhando nos olhos dela. - Escuta! Nenhum som. Nada. A mulher se afasta de Abreu e veste o resto da roupa. "Você é um filho da puta! E maluco! Tinha que ser doutor de defunto mesmo...", reclama a moça quando finalmente escuta o terceiro galho se partir. - Abreu? - Agora escutou sua puta! - Fala o médico, armando-se com a garrafa vazia de cerveja. - Eu disse que esse lugar era ruim, mas você me escutou? Claro que não. Me agarrou pelo pau e me trouxe aqui. Feliz agora? - O que é? - Sei lá o que é, mas está nos observando... Vamos sair daqui com cuidado, sem correr. Abreu começa a caminhar, seguido pela mulher. Atento e com o sangue frio de quem lida com o que há de mais bizarro na raça humana há anos ele parece tranquilo. A garrafa lhe dá uma falsa segurança, que reforça pegando no chão um galho grosso de alguma árvore. A rampeira o acompanha e quase o abraça enquanto descem a trilha com cuidado. Um novo som se escuta próximo deles e uma fruta atinge a mulher, que desesperada desvencilha-se de Abreu e corre pela trilha, desaparecendo aos bwerros. - Merda! - Reclama o legista, ficando só. O legista caminha atento, em parte nervoso pelo abandono e no fundo mais calmo por não ter nenhum empecilho ao lado. Ele não é incomodado por toda a descida. Apenas se dá conta que está completamente nu quando chega no fim da trilha. "Merda! No susto deixei as roupas lá em cima!", pensa enquanto decide se retorna ou não para buscar ao menos as calças. - Abreu! - Berra uma voz conhecida se aproximando. - Fred! - Reconhece Abreu, escondendo as partes íntimas com a garrafa semi-transparente, o que não é exatamente a melhor solução. - O que houve com você? - Pergunta o policial. - Estava comendo e escutei um barulho, fui conferir. - Comendo pelado? - O que se come pelado, Fred? E você, também veio comer? - Estava procurando evidências com o Almeida. Escutei um eco estranho vindo do Mirante e vim para cá, o Almeida ficou do outro lado, ele só precisa de uma ligação minha pra vir. - Aquela vadia berrava muito alto, parecia uma vaca no cio... - Responde o médico. - Eu estava comendo lá em cima. Pode me acompanhar até lá? Preciso pegar minhas coisas. O médico segue o caminho de volta acompanhado dessa vez de Fred. A presença do amigo transmite um pouco de segurança. Caminham silenciosos, até porque Abreu está completamente envergonhado por sua situação ridícula. Ele chega até o Mirante e suas roupas continuam no mesmo local, intocadas. Veste a cueca e as calças e se sente menos mal, Fred o tempo todo observa atentamente. - Pelo visto foi uma senhora noite. - Comenta Fred, sentindo o cheiro forte de cerveja e do alcóol. - Era uma boa mulher. - Pena que não a vi. - Como assim? Ela saiu correndo na minha frente... Você com certeza a viu correndo pelo parque até a saída. - Não vi mulher alguma sair da trilha. Por um instante Abreu gelou por dentro. Continua... Outras Partes de "O Parque Sombrio": - Parte 1; - Parte 2; - Parte 3; - Parte 4; - Parte 5 (novo);

O Parque Sombrio - 4

Dois corpos. Fred e Almeida observavam com espanto o segundo corpo no necrotério improvisado no hospital de Paquetá. Era um jovem de pele clara, cabelos negros lisos aparentando dezesseis anos. Nele tinha as mesmas marcas de hematomas da primeira vítima. O legista Abreu observa os amigos com o costume mórbido de quem há anos faz esse serviço, enquanto em paralelo termina com seu sanduíche. - Porque não nos falou dele antes? - Pergunta Almeida a Dr. Abreu. - Porque foi encontrado quando estavam na barca. - Responde. - Em uma hora e vinte muita coisa acontece. - Percebo. - Fala Fred. - Qual o nome dele? - Marcelo. - Responde Almeida, com lágrimas nos olhos. - Ele é meu amigo de infância. - Deus! - Brada Fred, assombrado. - Eu vou pegar esse filho da puta, parceiro... Vou lhe arrancar os bagos pela boca, eu prometo. Almeida afasta-se do corpo de Marcelo e apoia-se em uma pilastra. Fred o ampara, preocupado com o envolvimento de Almeida no caso. "Espero que consiga manter as estribeiras", pensa enquanto observa Dr. Abreu cobrir novamente o corpo. - Só existe uma diferença entre esse corpo e o outro. - Diz Abreu. - Qual? - Pergunta Fred. - Ele não tem a marca nas costas. E pelo que vi, Marcelo sofreu violência sexual... - Um assassino gay? - Pergunta Fred. - Não tenho certeza, encontrei marcas de... bem... ferrugem. - Fala o médico, sem jeito de como falar do estado do amigo de Almeida. - Provavelmente o dano foi causado por um objeto irregular e enferrujado, um cano velho ou sei lá qual objeto, pois não tinha nenhum no local onde o encontramos. - E onde o encontraram? - No Darke, como disse há pouco, na trilha para o outro mirante. Estou esperando alguns testes chegarem do continente para confirmar algumas suspeitas minhas. - Quais seriam? - Questiona Almeida, quase recuperado. - Que temos dois assassinos, e não apenas um. - Uma ilhota de merda e dois assassinos? Deve ser coincidência, Abreu. Não tem como ser... - Fica calmo, ainda é apenas uma suspeita. Só saberei quando os resultados chegarem, até lá vou curtir uns dias em Paquetá às custas do estado. - Curtir? Você vai é se afogar em cachaça... - Isso também! Sem mais o que conversarem com Abreu eles saem da sala. Almeida e Fred fazem anotações em seus blocos e decidem juntos ir até o Darke de Mattos procurarem pistas. Almeida nesse momento se tornava um trunfo no caso, por ser antigo morador, e com a morte de um amigo de infância o crime deixara de ser apenas mais um caso e se tornara pessoal. O parque já estava fechado desde as dezessete horas, e chegando as dezoito horas não conseguiriam nem encontrar um funcionário no portão. "Não se preocupe, é só pular o muro.", comenta Almeida, enquanto caminha pelo entorno da entrada e encontra rapidamente uma parte do muro possível de pular. Fred reluta um pouco, mas acaba cedendo a curiosidade. Em poucos minutos os dois policiais invadem o parque e caminham com calma pela escuridão que a cada minuto fica mais forte. - Isso vai dar merda. - Sussurra Fred. - Porque? - Questiona Almeida. - Faço isso desde pirralho, e pelo menos metade dessa ilha foi fabricada aqui. O Darke a noite é um verdadeiro motel! - Mas nós somos policiais! Deveríamos ao menos ter pedido autorização ao administrador daqui. - Você o viu? - Não. - Nem eu, então vamos até a segunda trilha logo, procuramos pelo tal cano de ferro e vamos embora daqui. Trouxe lanterna? - Só celular. - Eu trouxe, então não atrapalhe, ok? - Almeida saca uma pequena lanterna de bolso e ilumina o rosto de forma sinistra. - Eu sou o assassino do Darke! Buuuuuuu! - Qual a sua idade Almeida? Dez anos? - Em cada perna. - Responde Almeida. - Fred, já te falei que você é muito babaca? - Hoje ainda não. Os policiais chegam sem serem pertubados rapidamente ao início da trilha do segundo mirante. Menos fanfarrão Almeida passa a utilizar a lanterna do jeito tradicional e segue a trilha deixada pelos policiais militares quando recolheram o corpo. Depois de alguns metros subindo chegam ao mirante e encontram a marca de giz no chão feita pelos primeiros peritos. - Consegue ver aqui no escuro? - Pergunta Almeida, sem saber se o ângulo da lanterna é bom para o amigo. - Consigo, além da lanterna a noite está clara por causa da lua. - É verdade... - Balbucia Almeida, observando a lua cheia sem dar muita importância. - Fred, onde você colocaria uma arma de crime? - Porque me pergunta isso? Eu não sou o assassino... - Mas você tem TOC, e loucura por loucura serve a sua... Depois de quase uma hora de procura minuciosa nada é encontrado. Nenhuma pista foi deixada pelo assassino, nenhum galho quebrado significativo e nem mesmo uma pegada existe que não as das botas policiais. "A pior merda que tem aqui nesse país é ser investigador! Proteger a cena do crime e nada são sinônimos...", reclama Fred enquanto sobe o mirante e observa o parque do alto. - O que seus olhos policiais podem ver? - Eu vejo... nada! - Eu... A frase de Almeida é interrompida pelo eco de uma gargalha sinistra. Os dois não estão sozinhos. Continua... Outras Partes de "O Parque Sombrio": - Parte 1; - Parte 2; - Parte 3; - Parte 4; - Parte 5 (novo);

O Parque Sombrio - 2

O sol ardia as quinze horas da tarde daquele dia. Como sempre o trânsito do centro do Rio de Janeiro estava caótico e buzinas soavam famintas aumentando ainda mais a sensação de calor em todos os motoristas infelizes que tinham que passar por aquela região. Não haviam pessoas satisfeitas, não havia o sorriso lendário do rosto carioca. Apenas um ou outro conseguia sorrir, mas esses com certeza não eram motoristas... - Odeio essa cidade. - Comenta Almeida, enquanto dirige seu santana preto de placa branca pela Av. 1° de Março. - Mas adora as putas. - Responde Frederico, ou apenas Fred, seu companheiro. - O que tem as putas a ver com isso? - Brada o homem. - Nada, mas achei engraçado falar isso... Você tem menos de vinte e três anos e reclama como uma velha rabugenta! Já pensou o que vai fazer quando chegar aos trinta? - Com certeza não vou dirigir aqui nessa merda de cidade... - Sabe onde você deveria morar? - Onde? - Em Paquetá! - Paquetá é meu ovo esquerdo Fred! - Grita Almeida, socando o volante. - Deus me livre voltar para àquele lugar! Onde já se viu? Aquilo fede a bosta de cavalo... - Mas era lá que morava antes de entrarmos na Civil... - Isso mesmo! Antes! E nunca mais ponho os pés ali! Cinco horas da tarde Almeida e Fred estão em Paquetá. Saltam da Barca Charitas, que surpreendentemente fizera a viagem em uma hora acompanhados por repórteres e os mais diferentes tipos que se movimentam em busca de alguns minutos de fama. Fred sorria irônico para Almeida, lembrando do rádio dos superiores lhes mandando para Paquetá. Os dois saíram da barca de maneira discreta, subiram em um eco-táxi* e metros depois saltaram no hospital local, que ficava a menos de uma quadra da estação de Barcas. - Porque me fez gastar dinheiro a toa, Almeida? - Reclama Fred, pagando ao eco-táxi pela viagem inútil. - Foi divertido... Precisava reaver meu bom humor. Seis reais nem é tão caro assim. - Vai te a... A frase não se completou. Foram recebidos com fervor pelo Doutor Abreu, um legista de fora e conhecido dos dois policiais. Era um senhor de aparentemente quarenta anos mas cabelos grisalhos quase brancos. Vestia um avental branco com algumas gotas de sangue espalhada e no peito tinha um crachá com o logotipo do Instituto Médico Legal. Pela situação rara e inconveniente, para evitar mais disse-me-disse da Imprensa o próprio IML optou por fazer tudo em Paquetã. - Que bom que vieram. - Comentou Dr. Abreu, estendendo a mão para Almeida, sem notar que ainda estava com a luva cirúrgica. - Abreu, a luva. - Indicou Almeida, causando certo constrangimento a Dr. Abreu, que imediatamente se livrou da luva com os dentes e a descartou no chão do hospital sob olhares de reprovação de pessoas no local. - Para que servem serventes? - Comentou, sem maldade. - Vieram ver a menina? - Claro Abreu.. - Diz Frederico. - Porque mais estaríamos aqui a essa hora? - Almeida não é daqui? - Pergunta Dr. Abreu. - Pelo amor de deus! Eu saí daqui fazem dois anos! Agora moro em Copacabana! Co-pa-ca-ba-na! - Soletrou Almeida. - Que seja! Venham comigo... O hospital Manoel Artur Villaboim era um hospital simples. Possuia três entradas. A da emergência pela esquerda, a central que dava nos quartos e uma na direita levava aos consultórios. Abreu guiou os policiais pela entrada da emergência, que ficava um pouco mais para dentro do terreno do hospital. A ala de espera tinha apenas os familiares da vítima - que os policiais reconheceram pela tradicional face da perda, expressão já velha conhecida. - e uma mãe que parecia esperar um filho. Não havia ainda sinal da imprensa, por sorte. No final e a esquerda da sala de espera estava a porta dupla que dava acesso ao interior do hospital. Dr. Abreu abriu a porta com já certa intimidade e avançou pelos corredores azulejados de azul até uma ou porta de madeira pintada de branco - mas mal conservada. - identificada como "CTI" ou algo parecido. Abreu fez o sinal da cruz em seu peito e entrou, sendo acompanhado pelos homens da lei. - Desculpem a bagunça. - Comentou Dr. Abreu, enquanto cobria o cadáver de Isabela com um lençol, mas não antes que Almeida e Fred a vissem ainda com as víceras expostas. A sala parecia bagunçada como Dr. Abreu comentou, mas era uma bagunça anterior a sua passagem e ainda assim mais arrumado do que a área do necrotério onde ele habitualmente estava. A primeira coisa que Almeida e Fred deram falta, e não lamentaram, foi do tradicional cheiro de pobre do IML, ausente naquele quarto. A única bagunça de Dr. Abreu podia ser constatada por uma mesa de instrumentos cirúrgicos ensopados de sangue e um pequeno coração acomodado em uma bacia de alumínio. - Demoraram a chegar. - Comentou o médico, pegando um pequeno gravador. - Soubemos depois da barca de 13:30, só pudemos vir na de 16:00. - Responde Almeida. - Ainda bem que vim cedo e tirei fotos do lugar! A essa hora já deve ter se transformado em ponto turístico desse povo sádico. - Comenta o médico, enquanto coça a cabeça sem perceber que estava com a mão suja de sangue e sem luva. - Querem as fotos agora? - Não. - Disse Fred, agradecendo com um gesto. - Manda por e-mail... Já era, espero apenas que a trilha esteja interditada. - Ah, isso está sim. - Afirma Dr. Abreu, com veemência.- s pessoas podem conseguir pular muros, mas com apenas três entradas para a trilha do mirante sudoeste protegidas pelos GMs nada passa. - Exiistem dois mirantes no Parque Darke. - Explica Almeida ao colega. - Mas e o que sabe? - Questiona Fred, satisfeito com a curta explicação de Almeida. - Bem, vamos começar pelos hematomas... Ela não apanhou, as marcas foram resultado de outros fatores. O suspeito provavelmente a arrastou pelo parque sem muido cuidado e a trouxe para o trono, enquanto a despia pelo caminho. Também não houve abuso sexual e ela morreu de afogamento. - Afogamento? - Sim, os pulmões dela estavam cheios do próprio sangue... - Falou Dr. Abreu, retirando o lençol de sobre a vítima e virando-a de costas. - Sangue que entrou por aqui! Havia uma perfuração nas costas da menina exatamente na altura do pulmão esquerdo. Era um corte horizontal e profundo. Dr. Abreu fez questão de mostrar a perfeição do ato, que parecia possível apenas com aço cirúrgico ou algo muito afiado. Almeida e Fred observaram intrigados o ferimento, que parecia dizer muito mais do que apenas trasmitir a forma de assassinato. Dr. Abreu percebeu o espanto dos amigos policiais, cobriu novamente o corpo e com sarcasmo voltou a falar: - Eu acho que ela foi a primeira. - Comenta o médico. - Por que seria? - Questiona Almeida, temendo o ponto de vista do médico e amigo. - Porque acharam mais um corpo... No outro mirante! Continua... * Bicicleta de turismo com três rodas, pilotada por um jovem de pernas fortes e que possui uma pequena área estofada na parte traseira onde duas pessoas se acomodam. Outras Partes de "O Parque Sombrio": - Parte 1; - Parte 2; - Parte 3; - Parte 4; - Parte 5 (novo);