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Revelações de Jonas, Conspiração: Terceira Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Terceira Etapa do Plano
Partida



– Sombra Negra, precisamos conversar... – Disse Taniel, ao ver a Sombra chegar acompanhada de Jonas.

– Conversaremos então... – Falou a Sombra. – Com ou sem privacidade? – Perguntou na linguagem que Jonas não compreendia.

– Com privacidade... – Respondeu Taniel, na mesma língua.

– O que o fez descer dos céus para esse pequeno inferno, Taniel? – Afirmou a sombra, em seguida mudando para a língua comum. – Por acaso sente falta de seus semelhantes?

Jonas estranhou a mudança súbita de idioma da Sombra. Obviamente de propósito ela dera a ela uma informação que o levou a pensar que a Sombra assim como Taniel seria um anjo, ou pelo menos era um anjo caído do mesmo patamar de Mizovitan. As duas entidades continuaram a conversar por mais alguns minutos, sempre naquela estranha linguagem que Jonas sequer compreendia.

– Você realmente vai colocar em prática essa tática suicida? – Perguntou Taniel.

– Eu não irei me arriscar de modo algum, está vendo a jovem alma a seu lado? – Respondeu a Sombra. – Ela fará tudo sozinha...

– Mas ele é um espírito missionário... Não pertence as castas guerreiras.

– Não pertencia, quer dizer... Eu, Daik e Mizovitan o doutrinamos nos últimos meses de forma a prepará-lo para isso... E tenho orgulho de dizer que hoje ele sobreviveu a uma matilha de Vermes do Vazio e ao teste de Dragon.

– Você fez o quê? Deixou ele enfrentar Dragon... – Taniel silenciou por um tempo, e fitou Jonas detalhadamente, realmente sentia algo de diferente no jovem, diferente de quando o vira na única vez, ele estava forte. Não tinha nenhuma sabedoria que se ganhava com a experiência, mas era forte. Apenas forte.

– E então, gostou do que viu? – Interrompeu a Sombra.

– Ele é apenas força bruta, não vejo porque vocês o treinaram. É errado isso, você sabe.

– Errado é não tentar. Errado é se julgar acima de qualquer julgamento. Errado é subjugar os menos evoluídos com palavras de ordem sem olhar para o próprio umbigo. O que demos a essa alma foi um propósito, uma forma de resistir ao que virá... Ou de impedir.

– Você sabe que isso não vai dar certo...

– Não tenho nada a perder com isso.



A resposta da Sombra foi o suficiente para Taniel, que se calou e caminhou em direção de Jonas. A Sombra escondeu seu sorriso e observou atentamente seus passos. "Ao menos quero saber se é isso que ele quer.", afirmou Taniel, em linguagem comum. Taniel se aproximou de Jonas e viu que Daik-Haniah e Mizovitan estavam chegando. Talvez tivesse pouco tempo para conversar com o jovem, ou não, mas só tinha uma forma de saber.

– Jonas, é esse seu nome, não? – Perguntou Taniel. – Você está aqui realmente porque quer?

– Não exatamente, era isso ou ser destruído por Mizovitan. – Respondeu Jonas.

– Ah, então você está aqui por livre e espontânea pressão? Bonito isso... – Taniel imediatamente se volta para Mizovitan. – Porque fez isso, Mitzrael?

– Livre arbítrio. – Respondeu o anjo caído. – Eu escolhi matá-lo se não aceitasse trabalhar conosco...

– Sabe que não deixaria isso acontecer. – Avisou Taniel. – Independentemente de nossa amizade.

– Se chegasse a tempo, quem sabe... – Indagou Mizovitan, linguagem desconhecida.

– Com licença, uma pergunta, Taniel. – Interrompeu Jonas.

– Faça.

– Você é um anjo?

– O que você acha? Já viu anjos com asas tão lindas quanto essas?

– Isso... Suas asas são parecidas com as de Daik-Haniah, só agora pude perceber... Não é parecida com a de nenhum dos anjos que vi.

– Sim e não... O que importa saber é que todos nós aqui, a sua exceção e a de Daik-Haniah, somos de uma linhagem idêntica...

– Daik-Haniah?

– Bem, se não te explicaram até agora, não serei eu a explicar... E nem é necessário isso. Você deve saber o necessário somente, pois vejo pelos olhares a minha volta que falei demais.

– Com certeza falou demais. – Disse Daik-Haniah, novamente tornando a falar no idioma desconhecido. – Agora vamos conversar melhor...



Daik-Haniah, Taniel e Mizovitan saíram do ambiente, deixando Jonas e a Sombra sozinhos. Jonas pensou em perguntar a Sombra como uma criatura proveniente dos céus, mesmo não sendo um anjo, aparecia ali e conseguia lidar tão bem com tudo aquilo. A Sombra se antecipou e disse que a linhagem a que eles pertenciam dava-lhes tal capacidade. Eram todos eles capazes de sobreviver em locais onde espíritos comuns sucumbiriam a tentação, e sem aparentarem isso. Disse também que Daik-Haniah era de uma linhagem a parte, com ligação a algo semelhante ao Pai Celestial, mas sem entrar em detalhes. Jonas perguntou se haveria outro Deus, e a Sombra negou, dizendo que Deus apenas haveria um. E que todos eles se conheciam a mais tempo que o anjo mais antigo do céu. Essas explicações bastaram para satisfazer Jonas, que começou a se sentir confuso novamente com o excesso de informações e foi se sentar para descansar daquele dia agitado.

Os dias passaram. Já era madrugada do dia 12 de maio de 2006, os treinamentos seguiam sem interrupção, até que Jonas foi chamado pela Sombra para conversar. Ela aguardava Jonas na mesma caverna onde o jovem encontrara Daik-Haniah pela primeira vez. Jonas conseguia perceber que não estavam apenas eles dois no local, alguém mais os observava. Apesar de perguntar várias vezes o que a Sombra desejava, não conseguiu muito sucesso em sua resposta, a Sombra parecia estar em transe, distante dali. De repente ela retornou e praguejou muito, dizendo "Eles são idiotas... idiotas!" e outras frases de calão mais baixo. Passados alguns segundos, ela percebe as presenças na caverna e volta a sua frieza tradicional.

– Desculpem a triste cena, estava chocado com tamanha tolice... – Disse a Sombra, enquanto Jonas se aproximava, e da escuridão da caverna saía Dragon. – Temos que conversar rápido... Principalmente contigo, Jonas... Ou melhor, SanoDji.

– SanoDji? Que diabos é isso? – Perguntou Jonas.

– Seu nome de agora em diante... Pode continuar utilizando Jonas, se assim o quiser, mas eu e Dragon passaremos a chamá-lo de SanoDji, um nome mais de acordo com sua missão.

– Missão? – Espantou-se Jonas. – Mas eu ainda estou treinando...

– Estava. – Interrompeu, Dragon. – Descobrimos uma certa aceleração nos planos de meus pretensos aliados, logo, significa que seu treinamento acaba hoje.

– Espera... Mas eu não estou preparado! – Protestou Jonas.

– Pena, quando assinou seu contrato comigo, ele não incluía covardia... – Disse a Sombra. – Pensei realmente que o treinamento tivesse tirado isso de você. O que tem de curioso tem de covarde, mas não tenho como treinar alguém melhor, logo, ou vai ou racha.

– E os anjos, o que disseram a respeito disso? – Perguntou Dragon. – Eu sei que você foi avisá-los de parte de seus planos... Para dar validade a eles dentro das regras.

– Os idiotas... Ah que raiva... Eles disseram que preferiam não escutar minhas palavras, deram a autorização às cegas. Não querem saber do que vai acontecer porque se for a vontade de Deus, é inevitável... Às vezes a credulidade deles me irrita, principalmente quando armam as coisas debaixo do nariz deles e são incapazes de ouvir.

– E o Pai, o que acha disso?

– Ele disse que devo fazer como quiser, ele não vai interferir, pois sabe de minhas intenções e dos procedimentos... – Diz a Sombra, mudando rapidamente para a linguagem desconhecida. – Ele apenas se preocupa com SanoDji, considera tolice sacrificar uma de suas crias mesmo que em prol da Terra No fundo, acredito que Ele apenas esteja esperando o Dia do Juízo.

– Preocupado com o garoto... Era de se esperar Dele... Mas até onde sei não existem riscos para o jovem, pelo menos não imediatos. – Falou Dragon, na mesma língua. – O treinamento de vocês deve bastar... Ele ficou forte.

– Sim, mas Taniel descobriu uma possibilidade de falha que nós esquecemos de considerar...

– Que possibilidade?

– Experiência, SanoDji tem toda a teoria, não tem a prática, apenas força sem a sutileza... E ele está certo, sem prática as coisas podem dar errado.

– Então teremos que contar com a sorte. – Afirmou Dragon, voltando a falar na linguagem normal.

– Sorte? Como assim sorte? – Perguntou Jonas, tendo escutado o novo nome dele vezes demais na conversa misteriosa para saber que falavam dele.

– Você vai voltar para a Terra, Jonas. – Falou a Sombra. – Ainda hoje.

– Hoje? – Espantou-se Jonas. – Como assim?

– É, hoje levarei você de volta para o mundo dos vivos... De onde somente poderá voltar com a missão cumprida. Depois de estabelecido na Terra, o que deve levar pelo menos duas semanas, entrarei em contato com você para explicar melhor sua missão.

– Em duas semanas nem terei começado a engatinhar...

– De onde tirou a idéia que nascerá? Você voltará no corpo de uma Terra de Ninguém, já até escolhi o corpo que usará, para sua sorte ele está internado num hospital particular do Rio de Janeiro e selecionei alguém com condições financeiras das melhores, em duas semanas conseguirá se adaptar aos modos dele e suas lembranças se misturarão as dele, daí então receberá meu primeiro contato. Você saberá quando eu me manifestar.

– Poderei vir aqui, como Daik-Haniah e Mizovitan fazem?

– Não, não poderá fazer viagem astral até esse lugar, a não ser que eu o busque... O segredo é fundamental nessa etapa.

– E quando partirei?

– Agora...



A Sombra mais uma vez mostrou sua mão feminina e segurou Jonas firmemente. Dragon observava a tudo quieto, pois sabia o que esperava o jovem rapaz. Como da primeira vez, Jonas foi tragado pela Sombra e desapareceu do desfiladeiro vermelho. Em alguns segundos sentiu seus pés tocarem o chão novamente e sua alma sentiu o cheiro do Rio de Janeiro. A escuridão desapareceu e ele sentiu uma leve brisa no rosto. Ao abrir os olhos levou um susto. Estavam exatamente em cima dos pés da estátua do Cristo Redentor. Ainda era noite no Rio de Janeiro, e as luzes das casas estavam todas acesas. Jonas vislumbrou tudo aquilo com muita saudade e até mesmo felicidade, pois nunca em vida subira naquele ponto turístico, era caro demais chegar e se manter ali. Era mais lindo ao vivo que nas fotos.

"Bonito, eu também fico admirando a vista daqui... Mas era mais belo antes da intervenção humana.", falou a Sombra, dando um imenso salto na direção da cidade. Jonas a acompanhou. Era uma sensação fantástica planar sobre a cidade do Rio de Janeiro com a segurança da imortalidade da alma. A Sombra, muito mais experiente que ele, voava sublime, deixando-se levar pelos bolsões de ar quente para altitudes maiores. Jonas, menos experiente, era obrigado diversas vezes a se concentrar para flutuar, tornando a viagem por mais agradável que fosse, uma experiência cansativa. Enquanto voavam Jonas viu ao longe a Marina da Glória e sentiu saudade de Adalberto, seu amigo morto por Mizovitan. A culpa que sentia pela morte dele ainda doía profundamente no peito.

Seu vôo continua até o hospital Copa D'or, onde a Sombra pousa tranqüilamente na área reservada a helicópteros. Jonas chega segundos depois e seu pouso foi menos tranqüilo, chegando com muita velocidade e por muito pouco não caindo do prédio direto no meio da Rua Figueiredo. A Sombra esperou Jonas se recompor e afundou no interior do prédio passando pelos andares sem dificuldade. Jonas a seguiu, reparando que dentro do hospital haviam inúmeras almas vagando, em sua maioria pessoas como a Dona Glória, que ajudavam os espíritos na travessia dos mortos. Vez ou outra vira anjos, que também o viam e olhavam com desconfiança para ele.

A Sombra para de afundar no andar onde ficavam os quartos das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, e esperou Jonas chegar. Quando chegaram, foram diretamente para o quarto 02, onde um rapaz de pele negra aparentemente dormia completamente tomado por aparelhos com as mais diversas funções. A Sombra Negra passou parte de sua essência sobre o rapaz e constatou o que queria saber. "Realmente minhas fontes estão corretas, é uma casca vazia...", e deixou aparecer um sorriso.

– Agora, SanoDji, você vai tocar a cabeça desse rapaz e se concentrar o máximo que puder em tornar-se parte desse corpo... No início irá doer muito, pois o corpo vai resistir bravamente a sua intrusão, mas não vai resistir por muito tempo porque o corpo não quer morrer e seu novo fio de prata servirá para isso. – Disse a Sombra.

– É seguro? Não tem dono? – Perguntou Jonas, preocupado.

– Nenhum dono... O corpo está completamente abandonado, garanto, tanto que os médicos já rifaram os órgãos dele e em três horas, ao amanhecer, virão fatiá-lo e dar esses órgãos a novos donos... A não ser que ocorra um milagre. Sim, um milagre chamado SanoDji... Entende?

– Quer dizer que depois disso terei que viver uma vida inteira?

– Não, quando cumprir sua missão eu mesmo cortarei o fio de prata e o levarei de volta... Pois eu o costurarei. Até lá estará preso a Terra, e não deseje falhar ou sequer fugir, não conseguirá... Estarei sempre por perto para lembrá-lo disso.

– Não se preocupe, não tentarei fugir.

– Tentará sim, pelo menos a carcaça tentará, pois terá duas semanas pra vencer o cérebro dela e a programação do espírito que a comandava antes... E essa será uma dura batalha.

– Está bem, que assim seja.

– Que assim seja.



Imediatamente a Sombra toca a cabeça de Jonas. De início Jonas olha para os lados sem nada perceber, então aos poucos tudo começa a escurecer e ele começa a sentir-se com sono, uma sensação que não tinha há muito tempo. Então uma forte dor toma conta de seu corpo todo e têm a impressão de estar atravessando uma grossa parede de pedra através de um pequeno buraco, então a dor cessa. Ele olha para suas mãos e se vê negro, sente-se em um lugar estranho e ao mesmo tempo tem a impressão de que ele não deveria estar ali, que a sensação estranha é que é estranha. Então um turbilhão de imagens e memórias invade seu cérebro, e em frações de segundo algo estranho acontece, Jonas sente desaparecer aos poucos, suas memórias de quando vivo se esvaindo como a areia de uma ampulheta sendo mescladas e ao mesmo tempo substituídas pelas do corpo. Seu nome cede lugar a outro, como se Jonas fosse sequer uma lembrança. Seu nome era Fernando...

Revelações de Jonas, Conspiração: Segunda Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Segunda Etapa do Plano
Provas Semestrais



Se algum calendário existisse naquele lugar desolado, Jonas saberia que seu inferno durava apenas seis meses. Mas a falta de descanso, a falta de repouso e a falta de tempo para si mesmo faziam parecer serem anos. Os dias haviam se arrastado, apenas tinha idéia de dia e noite quando o Cavaleiro Negro e o Devorador de Almas retornavam a suas carcaças na Terra, pois desconfiava que estavam acordados. Ainda assim não tinha plena certeza de nada, dado que pelo que sabia de Daik-Haniah, os distúrbios de sono de seu corpo faziam com que pudesse aparecer a qualquer instante para continuar com o sofrimento.

A Sombra ocupava todo o restante do espaço livre. Ela aparecia sempre com muitos livros, em sua maioria documentos roubados de alguma colônia próxima, e obrigava Jonas a ler. Ela dizia que muitas vezes uma informação bem obtida e sustentada era mais fatal que o fio de uma espada. Jonas lia o tempo todo, muitas vezes era obrigado a ler e ao mesmo tempo desviar dos ataques de Daik-Haniah nos treinos de guerra, ou ter que ler e desvendar mistérios nos treinos do Cavaleiro Negro. Descobriu que os nomes Mizovitan e Mitzrael eram as alcunhas do Cavaleiro Negro, que preferia ser chamado de Mizovitan.

Descobriu também que Mitzrael era o que os humanos chamavam de anjo caído. Ele havia sido expulso da terra dos anjos anos antes, poucas semanas depois que a Sombra surgira e derrotara Deus. Ele parecia ter alguma informação importante que nunca ninguém soube qual era relativa a Sombra e a Deus, e por causa dessa foi desacreditado pelos seus semelhantes e então expulso. Estranhamente a sombra o procurou e contratou Mitzrael como seu principal subalterno. E outra informação a respeito de Mitzrael ele pôde descobrir, ele tinha sido o investigador dos céus, um título batizado de Sombra Azul. E esse cargo tinha sido com certeza sua derrocada, pensava Jonas, em acordo até mesmo com Daik-Haniah. Mizovitan não confirmava nem negava nada, apenas sorria e observava sua espada.

– O segredo da informação é que a sua importância é inversamente proporcional ao crédito que se dá a ela... – Dizia Mizovitan, durante o treinamento. – Em suma, quanto mais importante ela é, mais ridícula se torna.

– E como se aplica isso? – Perguntou Jonas.

– Você acreditava no demônio, quando vivo?

– Não, era ridículo isso...

– Bem, está aí a lógica de minha informação...



Daik-Haniah apenas o ensinava técnicas de combate. Eram coisas simples, as quais Jonas nunca tinha imaginado serem tão práticas. Disse-lhe que qualquer ser vivo sabia lutar, e dar sempre o melhor de si, mas a civilização e a doutrina tradicional haviam arrancado algo precioso de todos os espíritos, o instinto de sobrevivência. Ensinou Jonas a despertar seu animal dentro de si sem perder o controle. Ensinou que não basta apenas força de vontade para vencer uma Guerra, muitas vezes era preciso saber onde bater. Ensinou a Jonas como manipular a própria matéria da qual seu espírito era feito para criar armas como espadas e escudos. Descobriu então que Daik-Haniah assim como Mizovitan era um detetive, e que ele tinha sido candidato a Sombra Azul, mas os problemas que ocasionaram sua queda o tiraram da disputa.

Entendeu finalmente o que haviam dito a respeito de cérebro e vulvas. Pelo que lhe contaram Daik-Haniah era um alto comandante das forças espirituais na Terra. Tinha a missão de observar e julgar a humanidade para quando a hora final chegasse. E junto com ele, vários de seus companheiros vieram. Porém o que nenhum dos amigos de Daik-Haniah sabiam era que um dos seus era um traidor, aliás, uma traidora e através da luxúria conseguiu destruir todos os planos das forças espirituais. Mizovitan os havia avisado, mas a vulva era mais forte e todos foram derrotados. Como conseqüência, uma a que nem mesmo a traidora esperava era que Daik-Haniah fosse quem é, o Devorador de Almas, e quando ela descobriu isso era tarde demais, nada podia ser feito e pelo menos 137 colônias pagaram por isso com suas existências. A colônia de Jonas era apenas uma delas. Da mulher nunca mais se soube, pois ela desapareceu e apenas recolheu seu pagamento. A Sombra dizia que ela se arrependera do que fizera, mas ninguém a procurou mais.

Da Sombra, Jonas nunca soube de nada. Era uma figura estranha. Em um dia elogiava as forças dos céus por sua perseverança e vontade de ferro, no dia seguinte os ofendia como se fossem cães infernais. E essa confusão mental nitidamente mascarava a real intenção da criatura. Por vezes perguntava aos demais instrutores de Jonas quando ele estaria pronto, e todos diziam que em breve. Jonas não sentia tanto avanço assim, mesmo percebendo que muita coisa do que pensava do universo já não eram mais as mesmas.

Era o dia 02 de maio de 2006, no calendário terrestre. Jonas ainda acompanhava o desenrolar dos dias pelos comentários de Mizovitan e Daik-Haniah quando eles apareciam. De certo modo, agradecia por não estar mais na Terra. Eram tão ruins as notícias da degradação de tudo que ele sentia-se cada vez melhor por estar apenas treinando. Seus professores pareciam mais nervosos de que costume. A Sombra ainda não aparecera desde a chegada deles, e isso não era algo comum, pois ela temia que um acidente nos treinos desse cabo de Jonas. Foi quando todos escutaram o eco de pessoas marchando se aproximando deles. Daik-Haniah e Mizovitan voaram em debandada, abandonando Jonas sozinho. "E agora, o que será?", preocupou-se Jonas em seus pensamentos.

Jonas caminhou cautelosamente por entre as pedras, procurando pela fonte dos sons. Quando estava em uma posição mais elevada viu uma quantidade impressionante de criaturas de pele queimada se arrastando pelas pedras. "Estou cercado", constatou vendo que o cerco se fechava contra ele. Jonas pela primeira vez utilizaria na prática o que aprendera com seus mestres, e se escondeu atrás de algumas pedras. As criaturas assemelhavam-se com seres humanos. Tinham baixa estatura, provavelmente não mais que um metro de quarenta, e pele completamente negra. Não possuíam cabelos e estavam sempre nuas, sendo tanto figuras masculinas quanto femininas e os seus olhos eram de uma coloração avermelhada muito escura.

Não demorou muito para que a primeira criatura farejasse Jonas escondido no desfiladeiro. Sem dar o alarme as suas semelhantes, ela saltou sobre Jonas esperando que fosse uma presa fácil. "Fede a espírito fraco...", pensou a mente limitada da criatura. O engano custou-lhe caro demais, no meio do salto viu Jonas sacar uma espada e cortá-la em duas metades perfeitas a partir do meio da cabeça. A criatura se desintegrou por completo, não dando nem tempo para que as outras percebessem o que acontecera. Jonas imediatamente teve uma idéia arriscada e desceu o desfiladeiro correndo. Quando avistou o rio cinzento, Jonas pé após pé se aproximou de suas margens. Tinha que fazer tudo perfeitamente calculado e caminhou até um ponto em que as mãos emergiram e começaram a chicotear umas contra as outras incapazes de tocar Jonas. O jovem sorriu e virou-se na direção das criaturas, e gritou o mais alto que pôde.

Como animais incontroláveis esses monstros correram vorazmente na direção de Jonas que esperou pacientemente o momento correto. Ele sorriu e cravou sua espada profundamente na margem do Rio, deixando praticamente apenas o cabo da arma livre. Faltavam pouco mais de dez segundos para eles chegarem, ele teria apenas uma chance e tinha que contar com a sorte. O plano era absurdamente arriscado e teria que contar com a ignorância das criaturas e a fome das mãos do Rio Cinzento. O primeiro monstro saltou na direção de Jonas. Ele faz uma pequena oração e segura a criatura pela cabeça e a desequilibra, a atirando ao Rio. As mãos seguram a criatura com violência e ela grita, completamente tomada pela dor de ser desmembrada e levada para as profundezas. "Funcionará...", diz Jonas para si mesmo. As demais criaturas chegam, um total de pelo dez seres, pelo que Jonas conta. Ele precisa ser cauteloso, não pode fazer o que planeja enquanto todas não ataquem ao mesmo tempo.

– Vamos, estou sozinho e minha espada está cravada até o cabo no chão... Estão com medo? – Provoca Jonas.



O insulto tem efeito. Mais animais que antes, as criaturas saltam violentamente sobre que Jonas, que toma uma atitude completamente arriscada. Ele segura suas mãos firmes na espada e se joga para trás, afundando até o pescoço no Rio. Ele sente quando as mãos começam a querer puxá-lo para suas profundezas, mas não dura muito. As criaturas caem em cima de Jonas de forma até mesmo cômica e uma a uma todas são agarradas pelas mãos que antes seguravam Jonas. O jovem aproveita seu segundo livre e sai do Rio Cinzento, deixando todas as criaturas sendo consumidas em dor. Ele cospe no Rio e se levanta, quando é atingido nas costas por uma criatura sobrevivente ao terminar de se erguer.

– Verme humano... – Diz a criatura. – Que aparentemente chegara atrasada a armadilha, e por isso escapara. – Você matar irmãos, mim matar humano...

– Vem! – Desafia Jonas, parecendo ignorar que deixara sua espada para trás.



A criatura salta sobre Jonas e os dois rolam no chão. Ambos trocam chutes e socos a esmo, na maior parte do tempo acertando mais o chão que um ao outro. A criatura morde o braço esquerdo de Jonas, quase no ombro, e um jato luminoso sai pela ferida aberta. É uma dor que percorre o corpo todo que se não fosse o treinamento teria incapacitado-o. Deixando-se levar por seus instintos Jonas segura a criatura pelo pescoço e pela virilha, e a joga contra a parede de pedra vermelha do desfiladeiro. Bate uma vez, duas vezes. A criatura se contorce de dor e em frenesi arranha o rosto de Jonas com suas unhas tentando escapar, mas o jovem não cede. Três pancadas... Quatro pancadas... Dez pancadas, a criatura parece estar cedendo ao cansaço. Jonas não para de bater, perde a conta de quantas vezes o corpo já inerte da criatura bate na parede do desfiladeiro. Até que a criatura finalmente se esfacela em suas mãos como pó, Jonas havia destruído esse ser. Satisfeito com o resultado da batalha Jonas urra o mais alto que pode, procurando espantar qualquer criatura restante que estivesse por ali. Mas seu urro atrai criaturas mais perigosas ainda.

– Sinto-me orgulhoso. – Diz a voz da Sombra, se aproximando sorrateira como sempre. – Meus dois discípulos anteriores não tiveram toda essa malícia, e, permita-me dizer, essa selvageria controlada...

– Porque me abandonaram? Para morrer? – Berra Jonas, voltando a sua espada e retirando-a do chão, para apontá-la na altura do que seria o pescoço da Sombra. – Passei seis longos meses nessa filial do inferno, ouvindo um monte de coisa e aprendendo sobre coisas que nem queria saber para de repente ser abandonado pra morrer assim?

– Você morreu? – Pergunta a Sombra, segurando delicadamente a ponta da espada e afastando-a de si. – Até onde vejo está bem inteiro diante de mim, mais audacioso do que nunca... Venha, tem alguém que deseja conhecer você.



Jonas hesita em acompanhar a Sombra, está cansado e frustrado. Tinha sido avisado sempre que um dia seria testado, e que belo detetive se saíra por não perceber quando seria o teste? Apesar disso, sentia que o teste era apenas para verificar as suas habilidades primordiais, e que o verdadeira prova seria quando voltasse ao topo do desfiladeiro. Ele e a Sombra caminharam rápido pelo desfiladeiro até o deserto vermelho, o último ponto conhecido por Jonas daquele mundo. Pensou se eles parariam ali para conversar, mas ao invés disso a Sombra continuou caminho, em direção a montanha para onde Jonas fora impedido de ir pelo anjo chamado Taniel. O treinamento nessas horas se mostrava eficaz, um caminho que antes levara horas fazendo fizeram em questão de menos de um minuto, desde escalar o desfiladeiro até atravessar o deserto e chegar ao topo da montanha. Ali tinha um homem vestindo manto negro aguardando sentado em uma pedra, a única parte do corpo do homem que Jonas conseguia ver eram seus olhos verdes cintilantes.

– Demoraram a chegar... Pensei que viesse sozinho. – Disse o homem, olhando para Jonas. – Você deve ser o jovem chamado Jonas. Meu nome é Dragon.

– Prazer... Mas de onde veio? – Perguntou Jonas.

– Do outro lado da montanha. Lá ficam minhas instalações há pelo menos cinco anos... Você já quase as visitou sem pedir, anos atrás, foi salvo por Taniel.

– Salvo?

– Sim, se tivesse alcançado a montanha aquelas criaturas teriam tomado você... Tomado seu corpo e teria acordado completamente perturbado, com sua alma dilacerada pelos desejos imundos dos Vermes do Vazio. Teria cometido altas atrocidades... Isso se eu não o matasse por ver demais e tivesse seu corpo transformado em Terra de Ninguém.

– Vermes do Vazio? Então o nome daquelas coisas que enfrentei eram esses... E o que é Terra de Ninguém?

– Corpos sem recheio... Carcaças na terra abandonadas por seus donos pelos mais diferentes motivos.

– Isso pode acontecer? Li a respeito, mas não acreditei muito nisso...

– Em geral existem três modos pelos quais um espírito retorna a Terra, um deles é encarnando, o segundo é possuindo um médium por um curto espaço de tempo e o terceiro, e proibido, é tomando uma Terra de Ninguém. Esse tipo de coisa acontece quando o espírito é arrancado de seu corpo de alguma forma não-voluntária ou mesmo voluntária e o corpo não morre. Geralmente na Terra confundem isso com morte cerebral. O fio-de-prata que ligava a alma ao corpo não existe, o que existe é apenas um monte de carne viva. Então um espírito vêm e se apodera da pessoa, passa a viver a vida que seria de outro, com todas as suas lembranças, mas com propósitos diferentes... Se tivesse chegado a montanha, não estaríamos conversando hoje aqui.

– Chega de lições... – Interrompe a Sombra. – Estamos aqui para terminar o último teste, Dragon, e então? O que me diz?

Dragon tira a mão do manto e diz algumas palavras em uma língua que Jonas não entende, mas compreende o que querem dizer. Imediatamente Dragon salta no ar e rodopia de espada em punho na direção de Jonas. O movimento é tão rápido que Jonas mal tem tempo para acompanhar Dragon com o olhar, porém sabe exatamente como proceder. Ele saca sua espada e auxiliado por uma sorte absurda consegue interceptar a lâmina de Dragon com sua espada no exato momento em que seria decapitado. "Bom.", diz Dragon, saltando para trás e preparando uma estocada na barriga de Jonas. O jovem espírito se joga para a esquerda desviando do ataque e consegue ter a malícia de deixar sua espada entre ele e a arma de Dragon, dificultando um novo ataque. Sem se dar conta do adversário, e preferindo não pensar mais nisso, Jonas avança contra Dragon quando este está trazendo de volta sua espada e faz um ataque simples. Dragon defende facilmente o ataque e se livra da espada de Jonas, porém não percebe que Jonas fizera isso de propósito, e aproveitando a guarda aberta de Dragon joga seu corpo contra ele e o derruba. Os dois rolam no chão e por muito pouco não rolam a montanha abaixo. Quando se levantam, Dragon ajeita seu manto negro e estende a mão para Jonas.

– Parabéns... Vejo que realmente está apto para o que lhe espera. – Conclui Dragon, voltando a se virar para a Sombra e falando na linguagem que Jonas desconhecia. – Então será daqui a duas semanas... Algum problema?

– Nenhum, prepararei Jonas para isso em breve... – Assentiu a Sombra. – Alguma observação?

– Sim, Jonas é um nome muito comum... Dê-lhe algo digno da posição que ele conquistou, se o rapaz quiser.

– Darei, pode deixar.

Dragon se despede de todos os presentes e desde a montanha. Jonas nesse momento repara que Dragon era muito mais do que aparentava, e se dá conta que só sobrevivera por sorte. "Ele era um anjo!", percebe Jonas, recebendo a afirmação da Sombra em um gesto ridículo, onde ela fazia uma pomba em sombras e em seguida uma borboleta, apontando sempre pra Dragon, este que se afastava alheio a tudo. Meia hora depois estavam de volta ao tradicional desfiladeiro onde Jonas treinava. Assim que chegaram, Jonas viu uma figura conhecida por ele e que há muito tempo não vira, o tal Anjo Taniel...

Revelações de Jonas - Conspiração: Primeira Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Primeira Etapa do Plano
Nomes e professores


Jonas esperou por alguma espécie de explicação por parte da sombra sobre o que estavam fazendo novamente naquele local. Sentia-se mal por depois de tudo que passara ainda ter que encarar o motivo de sua desgraça mais uma vez. A Sombra o ignorava solenemente e conversava com seu Cavaleiro Negro ignorando completamente todos os apelos de Jonas. Jonas sentia próximo deles mais uma vez o Rio Cinzento, e se perguntava se em algum momento aquele anjo que vira da primeira vez apareceria.

– Não, Taniel não aparecerá aqui, e é provável que nunca mais o veja... – Disse a Sombra, retornando a seu diálogo com o Cavaleiro.



Desistindo de esperar qualquer tipo de manifestação por parte daqueles dois, Jonas se afastou e começou a caminhar pelas redondezas. "Me encontrarão se quiserem", admitiu enquanto andava. Ao menos dessa vez não esta nu como da outra vez e apesar de algo lhe dizer que era evidente que não estava usando roupas também naquele momento, estar vendo com seus olhos os trapos que vestia na hora que morreu lhe davam certo conforto. Sentia falta de Adalberto, apesar de tê-lo visto tão pouco sua curta convivência abrandou um pouco o ódio que sentira. Intimamente desejava se vingar a todo custo do Cavaleiro Negro, e conseguiria isso de alguma forma.

De repente, Jonas se deparou com algo inusitado em suas andanças pelo desfiladeiro. Viu a uns trezentos metros de onde estava uma caverna. A princípio não deu muita importância a ela, mas quando escutou um gemido e o som de correntes batendo umas as outras, levou um susto absurdo e foi tomado por sua curiosidade. Pensou muito se deveria ou não entrar naquela caverna para ver o que estava ali dentro, mas não tempo o suficiente para desistir. Acabou entrando na caverna.

Era uma caverna escura e úmida. Gostas de água vermelha caiam do teto e parecia ser uma formação bem antiga pela presença de muitas estalagmites e estalactites. Era escuro, mas por alguma razão que Jonas ainda não compreendia, conseguia enxergar perfeitamente bem ali dentro, detalhe por detalhe. "Que bom... pelo menos mortos não usam lanterna.", pensou Jonas. Apesar de curioso, Jonas estava cauteloso, não queria para ele o mesmo cruel destino de Adalberto, pois saber que almas não eram indestrutíveis era algo novo e aterrador para ele. Foi quando viu chumbado no chão o começo de uma grossa corrente. Era uma corrente negra e seus elos eram do mesmo tamanho dos elos de correntes que prendiam as âncoras de navios petroleiros, pareciam pesadas demais e balançavam um pouco.

Jonas acompanhou a corrente até sua fonte e levou um susto. Ela dava em uma câmara completamente lisa da caverna onde no meio dela jazia um homem nu, preso por um total de quatro correntes idênticas, contando com a que Jonas seguira. Elas estavam dispostas de forma tal que o homem não conseguiria avançar mais que dois passos daquele lugar. Mas o estado deplorável do homem era suficiente para mostrar que sequer meio passo daria. O único traço marcante e presente no homem era que ele possuía cabelos loiros lisos e completamente em pé, lembrando alguns cortes militares. Sua pele estava toda coberta de hematomas e ele parecia dormir. Foi quando Jonas, como se hipnotizado pela presença estranha dessa pessoa, chutou uma pedra que foi quicando sonoramente até chegar a essa figura.

De sobressalto Jonas se escondeu atrás de uma saliência nas paredes da caverna e esperou, completamente apavorado. Não sabia com o que se apavorara, era um medo que teve a certeza de ser antigo. Imediatamente sua mente foi tomada com lembranças de outras vidas, outras mortes, de um mal presságio anterior até mesmo a existência do planeta Terra. E Jonas decidiu voltar o quanto antes. Ele saiu da saliência da caverna e pé ante pé foi se afastando de tudo aquilo, quando sentiu um arrepio e olhou para o homem. O homem levantara a cabeça e olhava fixamente para Jonas. O jovem sentiu um novo arrepio começando na ponta dos cabelos e indo até a ponta das unhas do pé. "Seus olhos são vermelho sangue... E bifurcados...", constatou Jonas a si mesmo. O homem levantou-se tomado de uma fúria aparentemente incontrolável e agitou as correntes. Jonas não teve nenhuma curiosidade e começou a correr.



Ele vira o invasor. Era impressionante como ele nunca tinha paz. Sempre, por mais isolado e imerso em sua dor estivesse e o quanto nas profundezas estivesse, sempre apareceria alguém para perturbá-lo em seus pensamentos. Era jovem o invasor, provavelmente algum curioso, amedrontado demais para entender o tamanho do problema em que se metera. Ele se levanta em meio as correntes que o prendem e escolhe a corrente que está na mesma direção aonde o jovem corre. E puxa forte a corrente, fazendo um estrondo que poderia ser ouvido a quilômetros dali. Com a força de sua mente poderosa a corrente se contrai e se molda a sua vontade, agarrando desprevenido seu invasor e trazendo-o até ele. "Será divertido", pensa, enquanto os gritos de pavor de seu invasor se aproximam mais e mais.



Jonas não soube o que o antigo. Estava tão preocupado correndo que não viu quando as correntes enrolaram seus pés e o derrubaram no chão. Escutou o barulho ensurdecedor a sua frente, mas isso não tinha sido o suficiente. Agora as correntes o amarravam da cabeça aos pés e seu corpo era arrastado pelo chão de volta para a câmara 0nde aquele homem estava. Sua cabeça batia violentamente nas sinuosidades da caverna, provavelmente se estivesse vivo sangraria.

Mais uma vez via um lado bom em estar morto. Ele chegou rápido ao local onde o homem agora estava de pé o aguardando. Mas o homem não estava mais nu, ele vestia uma armadura negra e dois pares de asas negras lhe adornavam as costas. Ao contrário do Cavaleiro Negro, não usava capacete, apenas uma espécie de tiara que deixava seu cabelo a mostra e seu rosto assombroso idem. As correntes giraram e se prenderam ao teto da caverna, se enrolando nas estalactites. Jonas ficou então dependurado de cabeça para baixo, face a face com o misterioso ser de olhos bifurcados, que agora brilhavam.

– Invasor... – Disse o homem, com sua voz parecendo um rosnado de leão, com o rosto tão próximo de Jonas que dava para sentir sua respiração.

– Não... Eu escutei um barulho e vim ver... – Balbuciou Jonas, apavorado. – Foi sem querer... Foi...

– Se não quisesse não teria entrado. – Falou o homem, apertando mais as correntes. – Agora, como gostaria de morrer? Como uma passa ou pelo fio da espada?

– Não... Não...



O homem se irritou com o medo de Jonas e socou-o como se fosse um saco de pancadas. Jonas bateu várias vezes contra o teto da caverna, levantando muita poeira. Apesar disso as correntes não se soltaram. Com um gesto do homem as correntes pararam de balançar e ele voltou-se novamente para Jonas.

– Já decidiu? – Perguntou o homem, segurando a cabeça de Jonas, que para seu pavor viu que os dedos do homem tinham garras invertidas na armadura.

– Não haverá mortes hoje, pelo menos de nenhum Jonas. – Disse uma voz sombria vindo pela caverna. Era a Sombra, que finalmente chegara para salvar Jonas de mais um problema. O homem reagiu com raiva a misteriosa chegada.

– Ah, é você... – Falou o homem, acalmando-se por completo. Até mesmo seus olhos bifurcados tornaram-se olhos normais e de um azul completamente sereno, um contraste com os últimos segundos. – Por acaso esse infeliz é coisa sua?

– Sim e não... Se ele está aqui é por SUA causa. – Disse a Sombra, dando ênfase a culpa do homem. – Daik-Haniah, não sente nele o cheiro dos habitantes locais daqui?

– Sinto...

– Então, ele apareceu aqui anos atrás, logo depois do que VOCÊ fez a essa colônia, e escutou uma conversa minha com seu amigo Taniel... Bem, pra resumir tudo, no final, por causa do que sabia, ou ele seria destruído ou se juntaria a nós.

– Você? Destruindo alguém?

– Não exatamente, Mizovitan o viu... E sabe como ele reage a intrusos nesses locais...

– É... Então posso soltar esse moleque.



Jonas não entendia muito bem a situação toda, mas entendeu bem o que queria dizer a respeito de soltar, e ao invés de desabar no chão como fruta podre conseguiu cair de maneira menos vergonhosa. Ergueu-se desastrado limpando a poeira e então finalmente entrou em sua cabeça quem era aquele homem diante dele, o destruidor daquele local.

– Você! Você fez tudo isso aqui... – Falou Jonas.

– Sim, ou acaso é surdo? – Questionou o homem. – Acabamos de falar sobre minha culpa...

– Você é o destrinchador de mundos?

– Não, " destrinchador" não, "devorador"... Daik-Haniah, meu real nome. Diga-me jovem, qual seu nome?

– Jonas.

– Bem, Jonas, a mancha negra já disse a você por que recrutou uma pessoa como você para trabalhar com ele?

– Não.

– Então... – O homem olhou para a Sombra. – Não me incomodo de saber, mas diga isso em português, acredito que ele não esteja familiarizado com nosso idioma.

– Bem, como bem devem saber não existe força no universo que possa superar os anjos. – Falou a Sombra. – Que eles são os mais próximos de Deus e todo aquele blábláblá que corre nisso... O tal do Graal.

– Mas eu, você e Mitzrael superamos... – Interrompeu o homem.

– Não é bem assim... Nós somos diferentes... – disse a Sombra, dando continuidade. – E como tal, a força de fé manifestada pelos anjos, o Graal, é considerada a força suprema. Nenhum habitante das profundezas ou desse parâmetro são capazes de superar. Até aí acredito que todos saibam... – Jonas assentiu com a cabeça, estranhando saber disso mesmo sem ter escutado nunca em sua vida na Terra... provavelmente informações de outras vidas. – Bem, Jonas pertence a uma classe de seres que entre os anjos é dado como certo que jamais conseguirão superá-los em relação ao Graal... Alegam que Anjos são perfeitos e crias diretas do Pai Celestial, diferentes dos espíritos comuns, que no máximo conseguirão arranhar a couraça de um anjo.

– E onde eu me encaixo? – Perguntou Jonas.

– Você é uma experiência que quero há muito tempo fazer... Eu há algum tempo atrás desafiei o Pai Celestial para um embate justo e o ganhei. Tal vitória, legítima, foi contestada pelos anjos e por todos que souberam disso...

– Você enfrentou Deus... E Ganhou? – indagou Jonas. – É impossível...

– NADA é impossível... Basta ter fé. – Afirmou a Sombra, vendo que o uso da palavra "fé", causara espanto a Jonas. – Bem, não vem ao caso... Desde então planejei treinar um espírito dos mais fracos em todos os aspectos para provar aos anjos que eles não são os seres supremos... Literalmente, quebrar seus salto-altos divinos.

– E esse espírito fraco seria eu? – Perguntou Jonas.

– Exato, o terceiro pra ser mais preciso... Os dois anteriores não sobreviveram ao treinamento... Mas foi há muito tempo atrás, antes da queda do Devorador de Almas e do Cavaleiro Negro. E agora vou treiná-lo junto com meus dois asseclas, o Cavaleiro Negro e o Devorador de Almas.



Um arrepio passou pela nuca de Jonas. Ele escutou que seria treinado pela Sombra, pelo Cavaleiro Negro e pelo Devorador de Almas. Um trio estranho e assombroso demais para seus padrões, aliás, nem sabia se sobreviveria a isso. Por um momento pensou em se forçar a acordar desse pesadelo, mas tinha certeza que não estava em coma como da outra vez. Era uma realidade confusa e cheia de informação com a qual jamais entenderia sem muito esforço.

– E porque a necessidade de nós três? – Indagou Daik-Haniah.

– Individualmente somos os mais poderosos em nossas categorias... Subterfúgio, Investigação e Guerra, um triunvirato difícil de superar senão por você-sabe-quem, quando treinei os dois anteriores, falhei porque por mais perfeitos que fossem no meu quesito, nos demais eram insuficientes e eram destruídos na hora da prática. Com vocês dois auxiliando, criaremos um ser mais equilibrado, capaz de sobreviver ao que planejo para ele, e vocês sabem o que é.



Daik-Haniah se afastou e sentou em uma pedra da caverna. Pensou por um tempo e abriu um largo sorriso. Havia lógica naquilo que a Sombra falava. Ele e Mitzrael eram exemplos vivos disso, assim como seu amigo Taniel. Eram seres completamente inferiores nos patamares locais, e por sua vez desprezados, que conseguiram em um curto espaço de tempo superar todos os adversários no quesito prático. Tudo bem que como no conto de Sansão, uma mulher derrotou os dois e outros usando dois músculos mais desenvolvidos que os punhos, o cérebro e a vulva, mas era passado, somente os ferira e com o tempo ficariam mais fortes que antes. Jonas tinha potencial, todos tinham... Daik-Haniah não era cria do Pai Celestial, mas reconhecia a capacidade de evoluir da linhagem de Taniel, e isso podia ser transmitido, mesmo que demorasse, a alguém da linhagem de Jonas. Daria trabalho? Muito, mas compensaria.

– Perfeito, começamos agora... – Falou Daik-Haniah, olhando para Jonas e sorrindo. – Se você achava que sofreu muito... Prepare-se...

Revelações de Jonas: Sexta Etapa da Viagem

Sexta Etapa da Viagem
Vendido!
 
 
Cavaleiro Negro... (Fonte)


Jonas saltou violentamente em cima do Cavaleiro Negro, que apenas riu e deu dois galopes para trás, deixando Jonas cair no chão. Jonas se levantou novamente e tentou pegar uma pedra para golpear o Cavaleiro. Esforço inútil, pois suas mãos atravessaram a pedra. "Mortos geralmente não erguem pedras, garoto.", disse o Cavaleiro. Com muito mais raiva Jonas chutou a perna do cavalo. Tentativa inútil, sua perna bateu em cheio nas proteções do animal para derrubá-lo, mas quem tombou com dor foi Jonas. "Humano demais...", disse o cavaleiro, enquanto erguia seu cavalo pelas rédeas e tentava acertar Jonas com um coice. Jonas consegue rolar pelo chão milésimos de segundo antes de o cavalo esmagar o lugar onde estava sua cabeça, mas quando tenta se levantar é subitamente preso ao chão pela pata dianteira esquerda do cavalo.

– Moleque idiota, se eu quisesse matá-lo teria feito isso agora... – Bradou o cavaleiro negro, imobilizando Jonas com a pata do cavalo e tocando sua testa com a ponta da espada. Jonas sente uma leve dor na testa.

– Então o que quer? – Pergunta Jonas, olhando em volta dele procurando por alguma espécie de arma.

– Esperar.

– Esperar pelo quê?

– Por mim. – Diz uma voz completamente familiar, a voz da Sombra. Ela se esgueira pelo chão noturno com suavidade e completamente despercebida, não fosse ter se anunciado. – Meu velho amigo aguarda somente uma resposta sua...

– Resposta? É desse modo que vai me dar livre arbítrio pra escolher?

– Você é realmente um completo imbecil... – Interrompe o Cavaleiro Negro. – Ele vale para todos, ou melhor, quase todos e você tem a opção de viver sob as regras da Sombra ou morrer pela minha espada... Se escolher o lado dos anjos está escolhendo por morrer pelas minhas mãos. Olhe a sua volte e procure pelo seu anjo da guarda? Onde ele está?

– Estou aqui. – Diz uma voz sublime, que vêem acompanhada de uma luz forte que cobre todo o ambiente, exceto nos locais que a Sombra e o Cavaleiro tocam. – Vim buscá-lo, Jonas, tive dificuldades em encontrá-lo, mas agora podemos partir...

– Nem pensar, borboleta. – Interrompe, dessa vez, a Sombra. – Essa jovem criatura de Deus tem uma resposta a me dar e antes de qualquer "pití" seu, espero que se lembre das regras...

– Não preciso de sua ajuda para lembrar-me. – Responde o anjo, olhando piedosamente para Jonas a seguir. – O que desejas nesse momento?



Se Jonas estivesse vivo, suaria frio. Mas ele não estava e todo esse nervosismo exalava de sua aura. Ele estava caído no chão, mantido nele pelos cascos do cavalo do Cavaleiro. Não faziam nem três minutos e seu novo, aliás, único amigo naquela nova situação estava morto em definitivo e nem sequer se acostumado com tudo aquilo. Diante dele naquele momento estavam um anjo, a Sombra e o Cavaleiro Negro. E todos eles queriam uma decisão dele. Apenas uma decisão.

– Chega! – Berrou Jonas. – Eu não faço a menor idéia de quem ou quê vocês são... Chego até mesmo a duvidar de meu estado atual... E vocês querem que eu tome uma decisão que envolve até onde vi minha própria destruição... Vocês são malucos por acaso e querem compartilhar comigo sua loucura? Ou me tomam por completo imbecil?

– Eu tomo-lhe por imbecil. – Respondeu o Cavaleiro Negro.

– Quieto meu fiel ajudante. – Interrompeu a Sombra. – O que o rapaz deseja apenas é informação, acredito que nosso amigo emplumado seja capaz de fornecer... Ou estaria enganado?

– ... – Silenciou o anjo.

– Então, jovem Jonas, vamos começar da maneira mais simples de todas, você me pergunta e eu respondo, se for para a borboleta dos céus, ela responde. – Falou a Sombra, aparentemente sentando em uma cadeira feita de si mesma. – É justo, concorda, pombo?

– Isso não me agrada, mas se assim poderei salvar sua alma... Deixemos ele em paz. – Assentiu o Anjo.

– Pra começar, o que está acontecendo? – Perguntou Jonas.

– Essa eu respondo. – Disse a Sombra. – Simples, você morreu! "Pou! Pou! Pou!", vários tiros certeiros em você que espalharam pedaços seus por toda a calçada próxima daquele arbusto do Largo dos Guimarães. Agora você tem a possibilidade de escolher qual lado decidir... E quer saber porquê? – Perguntou a Sombra, sabendo que sua insinuação obrigaria o anjo a ver respondidas questões que Jonas não estivesse disposto a entender.

– Diga, se já está falando... – Respondeu Jonas.

– Bem, quando você esteve em coma ouviu conversas e situações que não são dadas a um espírito de sua categoria. Foi testemunha de fatos que provavelmente apenas um grupo mínimo de pessoas na Terra, e até mesmo fora dela, foi capaz de escutar. E de posse disso nada fez, tanto para o bem quanto para o mal... Mas em compensação a revolta que a desolação trouxe a sua alma foi grande o suficiente para abalar sua noção de certo e errado na Terra. E deu no que deu... O Primeiro Tiro.

– E no que isso interfere em decisão?

– Em nada, mas me interessei por você em especial... Por causa da sua informação, não quero ela de posse de qualquer um.

– Quer dizer que estou passando por isso tudo só pro causa de segredinhos?

– Sim, e por gosto pessoal meu, mas acontece que quando você morreu o meu lacaio decidiu dar cabo definitivo de você... E não gostaria de ver algo ruim acontecer a um espírito tão novo quanto você. Ele sempre destrói suas vítimas na Terra, pra evitar aumentar o Carma dele... O "Aqui se Faz, Aqui se Paga"... Inteligente até, se não tem cobradores não tem dívida, apenas a consciência dele e ele não é o tipo de ser que se culpa muito... – Quando a Sombra falou isso, Jonas observou para o Cavaleiro Negro e teve a certeza de que ele sorria com tudo aquilo. – Em suma, se está até agora aqui existindo, é porque eu pedi a ele que o mantivesse vivo.

– E porque esse interesse súbito por minha pessoa? Não seria mais fácil me matar simplesmente?

– Porque vi que seria algo bem interessante... Demais, mas não posso falar até você aceitar minha oferta. Entenda, você só terá significado até o momento que disser "sim" ou "não", depois disso é consequência de suas escolhas, e entenda uma coisa: um "não" será desagradável, pois não poderei conter meu fiel amigo...

– Eu o conterei. – Interrompe o anjo. – Escolha com seu coração, não com seu medo. Estou aqui para protegê-lo de qualquer coisa, tenho Ele a meu lado...

– "Ele" não está aqui... – Fala a Sombra, devolvendo a interrupção. – E nós dois sabemos o que vai acontecer se vocês entrarem em conflito.

– Sei, e nada tenho a temer com Ele a meu lado... – Disse o anjo.



O Cavaleiro Negro embainhou sua espada novamente, observando atentamente Jonas a medida que deixava o jovem livre para se levantar. "Ótimo, civilizadamente...", disse a Sombra, irônica. O anjo se postou entre o Cavaleiro Negro e o jovem, deixando bem claro, sem uso de palavras, que o Cavaleiro Negro teria que passar por ele para conseguir algo. Jonas apenas ficava mais desnorteado com isso tudo.

– Isso vai me enlouquecer... – Balbuciou Jonas, já em pé.

– Não, a não ser que deseje isso... – Disse a Sombra, em seu ouvido. – Bem, se não tem mais perguntas, gostaria de uma resposta, não tenho toda a eternidade a sua disposição... E a espada de meu amigo quer aplacar a fome de sangue... Ops, você não tem mais sangue.

– Eu não posso escolher ser deixado em paz e longe de tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Não de minha parte. – Disse o Cavaleiro Negro. – Só uma palavra e atravesso a cabeça de seu protetor e depois arranco a sua.



Jonas travou. Sabia que estava em uma encruzilhada e algo dentro de si garantia que apesar de toda a balela a respeito de livre arbítrio na realidade não tinha escolha alguma. Fitava o anjo e teve uma estranha impressão a respeito dele. Apesar de toda a aparência pomposa do ser divino, seu semblante mascarava algum sentimento diferente em relação à aquele momento, soava-lhe como se o anjo soubesse de algo ou tivesse alguma ordem que era segredo a senão todos ali, mas com certeza a Jonas.

– Diga-me, uma coisa, anjo. – Falou Jonas. – Você me responderia qualquer pergunta, qualquer coisa que lhe perguntasse, não?

– Sim. – Respondeu o anjo, com semblante mais preocupado ainda.

– Bem, gostaria de saber o motivo de tamanha preocupação... Existe algo que eu deveria não saber?

– Como assim?

– Exato, existe algo que se eu perguntar a você serei desviado da linha de pensamento e forçado a tomar conclusões erradas?

– Não. – Respondeu, demonstrando total sinceridade em suas palavras.

– Então se não é isso, do que se trata então?

– ... – Silenciou o anjo e Jonas teve certeza, existia algo mais.



Naquele instante Jonas teve certeza que muito mais estava em jogo do que simplesmente sua existência. "Adalberto morrera e nenhum anjo aparecera para salvá-lo", pensou, "porque então para mim teria?". Essa dúvida assombrou-lhe de tal forma que sentiu-se então satisfeito com apenas uma coisa. Se queria saber o que a Sombra planejava, jamais obteria tal informação da parte do anjo. Ele provavelmente o levaria para um lugar bem longe de onde jamais saberia porque tudo aquilo aconteceu. E Jonas, como dito no início de tudo, era tudo menos sensato. E ele tinha curiosidade em saber.

– Sombra, eu aceito sua proposta. – Afirmou.


O anjo deu de ombros e voou sem se despedir. Apenas desejou sorte a Jonas em sua decisão e que lembrasse sempre de Deus. Jonas não se importava mais com nada. A sombra pela primeira vez deixava transparecer algo em sua escuridão além de seus olhos brancos, deixou aparecer um largo sorriso. Ela pela primeira vez fez aparecer sua mão, uma mão feminina e delicada, estendeu-a até Jonas e os dois fecharam o acordo com um aperto de mãos. "Agora, precisamos apenas tornar oficial isso...", disse a Sombra enquanto ela mesma recobria o corpo todo de Jonas e deixava-o com uma pequena marca no braço direito, era um risco negro, semelhante a uma tatuagem. Começava grosso de um lado e afinava até desaparecer do outro. "Minha assinatura, todos os meus contratados possuem...".

– Marcado como gado... – Disse Jonas.

– Não, você tem toda a sua liberdade, contanto que me acate quando sua liberdade interferir em meus interesses durante nossos trabalhos.

Jonas apenas assentiu com um gesto com a cabeça. Sem dar tempo de processar a informação a sombra cresceu de tamanho e envolveu Jonas e o cavaleiro em uma completa escuridão. Jonas teve a sensação de voar muito rápido e quando a escuridão cessou ele, acompanhado da Sombra e do Cavaleiro, estava novamente onde tudo começara, naquele mesmo desfiladeiro vermelho...

 
De volta... ao início de tudo... Fim das Revelações.
 
Próxima parte: Conspiração.

Revelações de Jonas: Quinta Etapa da Viagem

Quinta Etapa da Viagem
Fim Real



Um Cemitério... Uma Sombra...



– Que tipo de conversa você quer ter comigo agora? – Pergunta Jonas.

– A que vai mantê-lo vivo, repare que está anoitecendo novamente. – Respondeu a Sombra.

– E daí? Que tipo de perigo me atinge agora? Já estou morto mesmo...

– Já se esqueceu de alguém quem disse que o buscaria? Realmente esqueceu?

– Do que fala? – Questionou Jonas.


A Sombra se espantou, e com razão. Quando a Sombra impediu que a luz levasse Jonas para seu destino, ela iniciou a contra-gosto um processo de esquecimento voluntário em Jonas. Por desejo próprio e por vergonha de seus atos, Jonas estava apagando de sua alma acontecimentos traumáticos. Todos eles.

– Não recorda de seus últimos momentos de vida? De um aviso de alguém que nós dois conhecemos? Esquecer nem sempre é remédio pra tudo... Ainda mais quando lidamos com a destruição do espírito...

– Se refere a...



Jonas congelou. Seu corpo tremeu por completo e ele se recordou das palavras do Cavaleiro Negro. "E quando chegar no Inferno vou até você e destruirei sua alma...", essas palavras invadiram a mente de Jonas causando enorme desconforto e pavor. A Sombra percebendo nitidamente que o recém falecido estava desesperado, não hesitou em fazer uma proposta.

– Bem, existe uma chance de você sobreviver... Basta que me deixe levá-lo de volta para aquele mesmo cenário desolado de anos atrás. – Propôs a Sombra. – Está disposto?

– Porque me oferece tanta ajuda? – Questionou Jonas. – Você não me parece o tipo de ser altruísta, que concede favores sem cobrar...

– Decerto, mas o preço que vou lhe cobrar te garanto que será menor que o cobrado pelo Cavaleiro Negro... Bem menor... A opção é deixar senhoras bondosas como aquela que viu ontem se encarregarem de morrer te protegendo. Não acredito que sejas do tipo que se deixaria proteger por senhoras, ou seria?

– ...

– Vou lhe dar tempo pra pensar, você têm vinte e quatro horas, depois disso, venho buscá-lo ou assistir o resultado de sua decisão. Até lá alguns emplumados virão visitá-lo, pois eles já o procuram, decida o que melhor lhe convier, mas arque com a conseqüência de seus atos... Livre Arbítrio é o que há de mais sagrado...



A Sombra não deu tempo de Jonas perguntar nada mais. Esgueirou-se rápida como água em enxurrada pelo chão e desapareceu na escuridão da noite que começara. Jonas ficou parado ainda alguns segundos, imerso na própria preocupação, literalmente entre a cruz e a espada. E ele não sabia sequer manejar ambas. O jovem vagou sem rumo pelo cemitério ainda por mais duas horas, quando decidiu observar sua cova. Seguiu um de seus familiares que ainda estava no lugar arrumando a papelada e viu que seu corpo fora enterrado nos arredores do cemitério, quase nos muros, em uma cova rasa coberta apenas por um tampo de cimento sem identificação. Apesar de um ou outro coveiro ainda terminar de vedá-lo, era óbvio que quando seu corpo esfriasse e a família esquecesse a cova seria reaberta, seu corpo vendido a alguma faculdade e seu jazigo reaproveitado. "Simples comércio...", indagou.

Decepcionado com tudo que via e percebendo que não ganharia mais nada estando ali, Jonas pegou outra carona em um ônibus e recomeçou sua viagem de volta para seu único ponto de referência naquele mundo novo, eu recém conhecido amigo Adalberto. Durante o caminho teve a certeza que era seguido de perto por alguma coisa desconhecida, mas não conseguia ver nem ouvir nada. Então algo lhe tocou os ombros. Era uma senhora de aparência de pelo menos 90 anos e com os olhos completamente negros e fundos.

– Diga logo! Diga! – Berrou a senhora.

– Hã! O que? – Disse Jonas, sem entender nada.

– Diga! Diga! Fale logo pra eles pararem!

– Eles quem! De quem está falando!

– Eles! Diga logo! Eles vão me levar!

– Quem? Quem vai te levar?

– Eles! Eles!



Um imenso jato de luz atravessou o ônibus, cegando Jonas completamente. Uma sensação de paz e conforto como nunca sentira antes percorreu toda a sua alma, como se estivesse nascendo novamente e livre de todos os seus pecados. Escutou um bater leve de asas e teve a impressão de escutar harpas tocando. Era uma sensação maravilhosa e ao mesmo tempo, lá no fundo, causava-lhe um pavor proporcional ao conforto momentâneo. Jonas esforçou-se para abrir os olhos e quando conseguiu estavam ele e a senhora caídos no meio da Avenida Brasil, próximo a entrada para o elevado que levava a Ponte Rio Niterói. O desconforto era absurdo, pois a cada segundo uma série de veículos literalmente os atravessavam em alta velocidade e Jonas em frações de segundo era capaz de ouvir e sentir tudo que se passava pela cabeça dos ocupantes de todos esses veículos.



"Tenho que pegar essa estrada de novo?", pensava uma mulher de nome Júlia, no auge de seus 32 anos.



"Hoje vou me casar, estou feliz demais!", pensava Aderbal, aos 42 anos dentro de um ônibus que transpassou Jonas.



"É hoje que eu mato aquela cadela... Ninguém me trai!", passava pela cabeça de Raimundo, um nordestino de 40 anos que levava consigo um revólver e muito ódio no coração.



"Eu queria aquela bola, eu queria ela!", berrava Raquel, de 4 anos, reclamando pelos pais não terem parado na estrada pra pegar uma bola de futebol abandonada.



E mais uma infinidade de pensamentos em sua maioria pútridos demais para sequer serem lembrados por Jonas. Com dificuldade Jonas se concentrou em si mesmo e começou a ignorar essas invasões involuntárias. Olhou para os lados e viu a velha senhora de joelhos, contorcendo-se em dor e arrancando os próprios cabelos. O jovem fez menção de ajudá-la, mas quando faltavam poucos passos para isso, um enorme par de asas se colocou entre ele e a senhora.

– Dona Ieda? – Disse a voz, poderosa e ao mesmo tempo afável.

– Saia daqui! Vocês não vão me levar! – Berrava a Senhora, arrancando mais e mais cabelos.

– Não faremos nada de mal a senhora, somente quero conversar... Ele me mandou para conversar com a senhora.

– Cale-se! Passei a vida inteira naquele asilo rezando pra depois... Pra depois... – Dona Ieda começou a chorar copiosamente, encolhendo-se no chão como um feto. – Ele me abandonou por causa dela... Por causa dela...

– A senhora precisa se livrar desse ódio, dona Ieda. – Disse a voz, mais calma ainda. – Entenda, sua filha apenas queria o seu melhor, ela...

– Cale-se! O melhor para mim era estar com ela! Sempre com ela! – Berrou a senhora, ríspida.

– Nem sempre o que queremos é o melhor para nós...

– Cale-se! Eu vou ficar ao lado dela para sempre! Dela e daquele maldito marido dela... Como eu o odeio!



Antes que o ser angelical pudesse segurar nas mãos da senhora, ela se levantou e se jogou num carro em alta velocidade, desaparecendo em questão de segundos. Jonas não entendia absolutamente nada daquilo que estava acontecendo, quando fez menção de perguntar, o próprio ser alado lhe respondeu.

– Sim, sou um anjo... Da guarda, pra ser mais específico. – Respondeu o Anjo.

– Vocês existem? Realmente existem anjos da guarda? – Questionou Jonas, como que desperto de um transe.

– Existimos e tentamos ajudar, mas não podemos fazer nada que não nos seja permitido, como viu...

– Quem é essa senhora?

– É uma pessoa que morreu imersa em muita dor e ressentimento e que agora que deveria se livrar do sofrimento decidiu impô-lo a sua filha, independentemente de qualquer alma caridosa que tente convencê-la do contrário. É a vida carnal que se tornou mais forte que a alma... Apego.

– Já ouvi sobre isso.

– E você, Jonas, porque está ainda aqui? Já deveria ter subido há muito tempo... Não vejo apego em você, apenas muita dúvida. Cuidado com suas escolhas, apenas posso dizer isso a você.E aconselho-o a seguir a luz quando puder. Até mais ver... – Disse o Anjo, começando a voar.

– Para onde vais? – Perguntou Jonas.

– Atrás de dona Ieda, ela está tentando chegar a casa da filha... Quero convencê-la a desistir disso antes. Boa sorte em sua jornada. Ah, se quiser chegar a seu destino rápido, basta apenas que deseje muito...



"'Desejar'? Como assim 'desejar'?", indagou Jonas, enquanto via o anjo desaparecer no horizonte. Se o anjo queria lhe ensinar algo, não conseguiu. E Jonas nem se preocupou com as palavras finais do anjo, e apenas providenciou em poucos segundos um novo ônibus para si. Pelo menos daquele ponto da Avenida Brasil as opções de transporte eram maiores que próximo ao cemitério. Com isso acabou chegando rapidamente a Marina da Glória, onde em questões de minutos foi ter novamente com seu amigo Adalberto.

Adalberto também não entendeu as palavras do anjo e aparentemente não levou a sério as palavras da Sombra. Parecia até mesmo desconhecer ela totalmente, dizendo somente ao garoto para escolher com sabedoria seu próprio caminho, independentemente de ameaças. "A fé remove montanhas, lembre-se sempre disso.", disse Adalberto, afirmando sem enrolar que Jonas só precisava de fé em si próprio e em Deus para conseguir as coisas. Só que Adalberto não sabia que Jonas não era um jovem tão próximo de Deus quanto o velho fantasma imaginava.

E a noite virou dia e o dia virou novamente noite. A hora de dar a resposta a sombra havia chegado. Ao contrário do que fora dito, a luz não aparecera em nenhum momento e Jonas dava sinais que desistiria de toda essa dúvida cruel e seguiria sua não-vida em outro lugar. Foi quando ele chegou. Jonas e Adalberto foram tomados de súbito de uma sensação de perigo eminente e não tardou muito para que um cavalo completamente negro chegasse ao lugar tendo como seu dono o fatídico Cavaleiro Negro. Jonas fez menção que tentaria correr desesperadamente para salvar sua pele, mas quando o primeiro pé se mexeu, o cavaleiro negro já estava diante deles dois.

O cavaleiro negro trajava uma imponente couraça de placas negras completamente sem brilho adornadas com detalhes demoníacos em azul escuro. Seu elmo era completamente fechado permitindo-se somente que um brilho opaco branco pudesse ser visto e a silhueta quase oculta de seu rosto. As ombreiras da armadura eram largas e mostravam que o corpo do cavaleiro negro era muito forte, exalando confiança em si mesmo. Tinha presa na cintura uma enorme espada negra com seu cabo feito aparentemente em ossos e um crânio de onde saía a lâmina. Uma capa de pele de algum animal completava seu visual demoníaco. Seu corcel era tão negro quanto sua armadura e usava uma armadura adaptada também negra. Pendurados no cavalo estavam um enorme machado manchado de sangue e um escudo com o relevo de um crânio, de onde eram expelidos vermes os mais diversos.

– Nem adianta correr. – Afirmou o cavaleiro negro, exalando puro enxofre de seu capacete. – Vou te encontrar aonde quer que esteja...

– Saia daqui garoto, ele não é páreo para a força da... – Interrompeu Adalberto, colocando-se corajosamente entre o cavaleiro e Jonas.


"Calai a boca, filho de Deus!", berrou o cavaleiro negro. A pestilência de sua voz era tamanha que afetou até mesmo o mundo dos vivos, fazendo inúmeros peixes aparecerem boiando mortos em questão de segundos. Atormentado e sentindo-se compelido a proteger seu santuário, Adalberto se jogou diante do cavaleiro negro que num movimento limpo de sua lâmina dividiu o espírito em dois. Adalberto caiu no chão gritando de dor e tentando de qualquer jeito juntar as partes divididas. O cavaleiro negro não demonstrou nenhuma piedade do velho espírito e cravou sua espada na cabeça de Adalberto. Deu-se então um enorme flash luminoso e quando o mesmo cessou, não havia o menor sinal de Adalberto, sequer resquícios de sua presença.

Jonas foi tomado por uma sensação de perda maior que qualquer sensação que tivera. Era horrível e indescritível a sensação daquele momento, de ver uma energia divina e até certo ponto infinita se dispersar de tal modo, como se nunca tivesse existido. Adalberto não teria sequer um corpo pra enterrar, sequer alguém que lembrasse dele que não Jonas e talvez duas ou mais pessoas, ainda assim a dor naquele ambiente era absurda, pois mesmo a morte dos humanos não era finita, e sim um recomeço. O que acontecera ali era definitivamente o fim. E tomado por uma fúria sem igual Jonas saltou sobre o cavaleiro negro disposto a qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que sentia em sua alma, até mesmo morrer em função disso...

– Idiota. – Sussurrou o cavaleiro negro.

Revelações de Jonas: Quarta Etapa da Viagem

Quarta Etapa da Viagem
A Chegada


Ainda era o dia 23 de outubro de 2005 quando Jonas acordou sem dor. Sentiu um súbito alívio ao se levantar e constatar que as marcas de bala haviam desaparecido. Estava novamente de pé, em pleno Largo dos Guimarães, sentindo-se bem como não se sentia há muito tempo. Mas a sensação passou ao escutar sirenes. Viu duas viaturas da polícia militar descerem a rua em alta velocidade e parando justamente no mesmo arbusto onde Jonas se lembrou que deveria estar. Muitas pessoas se aglomeravam em torno de algo que Jonas não conseguia ver, mas em seu íntimo sabia que não seria a melhor visão de todas.

Incapaz de resistir à própria tentação, Jonas se esgueirou entre as pessoas da multidão até se dar conta que não precisaria fazer isso, elas simplesmente o atravessavam. Antes que pudesse compreender em definitivo sua situação viu a si mesmo caído no chão. Seu corpo estava completamente parado e sem vida, os orifícios dos tiros que levava já tinham quase que coagulado e uma poça de sangue cobria o chão. Seu corpo segurava uma arma, de calibre 38, e ao seu lado estava seu executor, o Cavaleiro Negro. Jonas sentiu um novo calafrio quando se deu conta que o Cavaleiro Negro o conseguia ver, lhe olhava diretamente nos olhos.

"Desapareça", escutou em sua mente e de imediato obedeceu. Correu sem se preocupar com as condições físicas do local e foi atravessando inúmeras paredes até que de repente se chocou com algo sólido e caiu no chão devido à violência do impacto. Coçou os olhos por causa da dor e observou exatamente qual era o local onde havia se chocado. Era com uma casa de candomblé. Estranhou que não pudesse atravessar suas paredes e tateou procurando uma brecha, e a encontrou exatamente na porta do local. A atravessou curioso, e então foi tomado de assalto por uma visão estarrecedora.

O outro lado do muro daquela casa de candomblé dava para um pequeno pátio com bancos de madeira velha e algumas estátuas de santos da religião. Até aí, nenhuma surpresa, pois pessoas provavelmente iam naquele lugar procurando respostas ou algo semelhante. O que lhe causou a surpresa foi ver algumas pessoas que o viam e acenavam para ele, literalmente mescladas a outras que estavam sentadas nos bancos esperando atendimento. Outra pessoa, uma senhora negra aparentando quarenta anos vestindo túnicas brancas e de aparência bondosa, veio de dentro da casa e tocou Jonas.

– Eu sinto que esse não é seu lugar... – Disse a mulher. – Sente-se confuso?

– Como a senhora me vê? Onde estou? – Disse Jonas.

– No inferno! – Berrou um das pessoas mescladas a outras. – Só esqueceram de ligar a fornalha!

– Não meu jovem, ignore a revolta dele... Estamos do outro lado. – Interrompeu a mulher, tocando no ombro de Jonas e trazendo-o uma sensação profunda de paz.

– Outro lado de onde? Porque não consegui atravessar as paredes daqui?

– Estamos mortos, para os que dependem da matéria. E não atravessamos essa parede por força da fé.

– Fé! Outra vez essa palavra... – Praguejou Jonas, pensando seriamente em ir embora.

– Tenhas calma, jovem, quando vierem lhe buscar tudo vai se explicar...

– Quem?

– Nossos irmãos encarregados disso. Quando a luz aparecer caminhe em direção a ela e encontrará seu caminho. Não se torne como nossos irmãos aqui presentes que por falta de força de vontade não conseguiram se desgarrar de seus vínculos terrenos.

– Porque me agarraria?

– Fará, disso tenho a certeza, dado que quando encontrar sua família terrena e tiver plena consciência que jamais terá nada do que tem na terra...

– Nunca tive nada. – Praguejou novamente.

– Nunca? E o amor de seus pais? De seus amigos? Não pode levar a presença deles contigo... Ou mesmo apego por algum bem ou bens. Alguns estão agarrados a terra não por questões afetivas, mas por simples apego material. Uma moto que compraram, uma casa que se esforçaram pra construir, coisas mundanas. Sempre há algo que deixamos para trás na Terra.

As palavras da mulher bateram forte no coração de Jonas. Nesse exato momento deu-se conta de tudo que deixara para trás e das coisas que abandonara ainda em vida. Lembrou-se de toda a revolta que tinha dentro de seu coração pela situação financeira da família e de toda a inutilidade disso. Percebeu finalmente o esforço de seus pais em dar a ele condições mínimas de dignidade, quando na época em que receberam a indenização decidiram ao invés de comprar um carro – como Jonas queria, para curtir a vida. – optaram por um apartamento próximo do trabalho de seu pai. Percebeu o quanto fora ingrato em entrar na vida do crime ao invés de ter estudado e retribuído tudo que lhe fora dado de coração. E a pior coisa de todas, tinha completa noção que jamais poderia agradecê-los por isso, pois abraços seriam inúteis naquele momento. E Jonas chorou.

– Sinto alegria em ver que ao menos reconhece seus erros... Independente de quais foram eles. – Disse a mulher. – Meu nome é Glória, e o seu?

– Jonas. – Disse, enxugando as lágrimas e com a voz embargada.

– Bonito nome... Bem, infelizmente não posso ser muito útil a você nesse momento. Como pode ver a nossa volta, tenho muitas pessoas em uma situação pior precisando de muita ajuda, e você é inteligente para resistir a tentação que aparece a cada minuto em seu peito.

– Tentação?

– Sim, de tentar abraçar e agradecer seus pais, independentemente de qualquer consequência.

– Não, dona Glória, desse mal não sofro mais...

– Graças a Deus.

Jonas sentiu certa inquietação ao escutar o nome de Deus naquele momento. Uma sensação de revolta tomou seu peito ao mesmo tempo em que dona Glória se afastava dele e voltava a seus afazeres. Perguntava-se onde estaria Deus naquele exato momento. Gostaria de encontrar com Ele e dizer-Lhe boas verdades. Entender por que deixara tudo aquilo acontecer com ele, toda aquela revolta e todo aquele sonho que lhe ampliara sua visão e reduzira seu discernimento. Cansado de ficar parado naquele lugar estranho, saiu porta a fora e começou a caminhar aborrecido.

Seguiu acompanhando a linha do bonde no sentido do centro da cidade até a Estação Covanca de Bondes, onde graças a uma ruela de pedestres localizada nas proximidades chegou a rua Cândido Mendes na Glória. Jonas já fizera esse caminho algumas vezes, quando ia tomar banho na praia do Flamengo, e dessa vez faria o mesmo. Descendo a rua Cândido Mendes atravessou a Rua da Glória e avançou reto, indo em direção as proximidades da Marina da Glória. Ali um pensamento esguio passou pela sua cabeça e foi direto até a ponta do píer mais próximo. "Se Ele pôde, porque eu não poderia?", pensou Jonas e colocou seu pé esquerdo nas águas turvas da Baia de Guanabara. Nada acontecera. Seus pés afundaram na água e se molharam, somente isso.

– Falta um pouco mais de desapego, jovem. – Disse um marinheiro, vestindo roupas típicas e antigas, saindo de dentro de um dos barcos.

– Você? – Espantou-se Jonas. – Como?

– Estou morto, oras... Que nem você! Vira e mexe vem algum espertinho e tenta repetir aquele trecho da bíblia aqui, e sempre acabam mais molhados que peixe. – Riu o velho, estendendo a mão para Jonas amigavelmente. – Prazer, meu nome é Adalberto, qual a sua graça?

– Jonas.

– Vejo que é jovem, pelo jeito foi mais uma morte trágica, não foi?

– Como sabe?

– Estou aqui nesse cais desde 1825 quando me afoguei bêbado depois de uma farra de marujos, acompanhei a evolução, opa, INvolução da raça humana nesse cais por mais de cem anos e hoje em dia tenho visto muitos jovens que nem você morrendo antes da hora, se é que existe hora certa pra morrer...

– E porque está aqui a tanto tempo? Apego?

– Opção. Preferi continuar na Terra, somos livres para fazermos o que quiser. Apesar dos conselhos de nossos conterrâneos, preferi evoluir aqui mesmo, cercado pelo meio em que sempre vivi... Acabei me tornando protetor dessas águas. Além da brincadeira com a água, o que lhe trouxe aqui, Jonas?

– Pensar na vida... Aliás, além vida. Senti muita raiva e agora queria extravasar um pouco mergulhando...

– Raiva de quem?

– De Deus... Sabe de algum modo sinto que Ele é o culpado por minha condição, ele deixou coisas acontecerem comigo e com aspectos que me cercam que...

– Desculpa interromper, mas você está redondamente enganado.

– Por que estou enganado?

– Porque está. Coloca uma coisa na sua cabeça, só uma palavra: livre-arbítrio.

– Heim?

– Isso mesmo, você fez suas escolhas, Deus deu algumas opções, e acredito que você sabe quais são, mas Ele não escolhe. Você escreveu seu destino, Deus apenas dá o livro e o lápis. Está escrito.

Jonas agradeceu ao marinheiro pela lição e sentou-se no cais para observar o horizonte. Sentia a brisa do mar e todo o conforto que ela trazia. Não estava mais com a raiva de antes e nem com sua tristeza, apenas um pequeno resquício de mágoa por ter constatado que somente a sua própria morte o fez perceber nuances de sua própria vida e a quantidade impressionante de erros que cometeu desde que despertara do coma, aliás, desde que ele e sua bicicleta se chocaram contra um caminhão. Passou todo o dia e a noite sentado, observando o horizonte, como se estivesse em transe de tão calmo. No dia seguinte sua serenidade foi interrompida por Adalberto, chamando-o com extremo interesse.

– Hei! Jonas vem correndo até os escritórios... Tenho que te mostrar algo rápido!



Jonas correu o mais rápido que conseguia, e isso era bem rápido, e foi até um pequeno escritório que ficava na parte administrativa da Marina da Glória. Duas mulheres, provavelmente que trabalhavam ali, discutiam a respeito da violência da cidade. Uma delas apontava para uma notícia e disse que tinha ouvido os tiros de perto, porque morava perto do Largo dos Guimarães. Imediatamente Jonas sentiu um arrepio na nuca e foi ver a página da internet mais de perto. Realmente, estavam justamente falando dele no jornal. Ao que parece Jonas havia ficado famoso do pior modo, morrendo de maneira trágica. Seu enterro, pelo que informava na notícia seria ainda nesse dia e até dizia o local. Algo palpitou na alma de Jonas.


A fama vem rápido... Infelizmente.


– Quando eu morri não tinha dessa parafernália não... Não fui citado nem nas fofocas das madames da corte... – Comentou Adalberto. – E olha que pra isso acontecer era difícil.

– Você acha que devo fazer isso? – Perguntou Jonas.

– Isso o que? Assistir seu enterro?

– Exato.

– Olha, se eu fosse aquelas madames que pregam o desapego da carne, te diria pra não ir, mas você me parece um menino porreta, vai resistir a abraçar seus pais. Sabe o que acontece se tentar abraçá-los, né?

– Tenho idéia...

– Olha, já vi muita gente boa se perder assim... Quando um de nós toca um vivo com quem tinha laços muito fortes que não tenha dons causa um troço que chamo de "grude", porque é isso mesmo que acontece, você gruda num vivo e pra sair é um Deus nos acuda.

– Eu vi? Mas não é voluntário? Pensei que pra sair fosse só sair...

– Não é assim não, você toca e se vicia nos sentimentos da carne. Toda aquela volúpia de sentimentos a seu respeito se eleva muito e você acaba ficando viciado em vida material, que nem uma droga. Só que o dono do corpo tá lá e você não tem como possuir e nem ele te expulsar na maioria das vezes. Geralmente sai com o tempo, pois a pessoa te supera e vice-versa, mas...

– Mas o quê?

– Se a pessoa não ia com a sua cara, se ela queria teu mal e você gostava muito dela sem saber dos reais sentimentos dela.... Bem, você pode ser tomado pelo sentimento de vingança e aí é um mal pior que qualquer outra coisa... Você fica louco, transtornado só querendo que ela sofra o que está sofrendo por se sentir enganado. É ruim demais isso.

– E como se escapa disso?

– Geralmente com ajuda... As vezes acontece de desistir e partir, mas pior é quando a pessoa vai na intenção. Assim que descobre que pode tudo decide se vingar nos seus inimigos. Haja força nesses casos... Mas aí estou entrando demais na história e você tem muito tempo pra aprender isso.

– Queria saber mais...

– Procure um professor, sou apenas um marinheiro... Agora, você vai ou não no seu enterro?

– Acha que devo?

– Você decide, és o senhor de seu destino.

– Irei... Temo cair na tentação, mas vou do mesmo jeito.

– Boa sorte, aqui nos separamos.

– Não vem comigo?

– Não saio desse lugar, por coisa alguma no mundo...

Jonas não procurou entender os motivos desse simpático fantasma e pegou carona em um ônibus até chegar ao Cemitério do Caju. Precisava ver seus pais uma última vez, nem que fosse para se despedir do jeito que desse, sem tocá-los. Sua experiência prévia com o Rio cinzento já lhe fazia temer suficiente tentações, e desse acontecimento nenhum de seus recém encontrados fantasmas parecia ter idéia. Jonas inicialmente pegou um ônibus que saltou na Praça 15 e depois pegou o 290 com destino ao Cemitério do Caju. O ônibus estava deserto, exceto pela presença do motorista e de uma funcionária da empresa de ônibus que durante a viagem toda reclamava de sentir calafrios sempre que olhava para o lugar onde Jonas se sentara. Jonas apenas riu da situação e dos comentários e deixou o tempo passar. Do mesmo modo que ocorrera na casa de candomblé, Jonas só conseguiu atravessar as portas do cemitério, suas paredes eram intransponíveis. E somado ao fato da área do cemitério do Caju ser gigantesca, ele somente conseguiu encontrar seus familiares e amigos depois de mais de três horas de procura.

A capela era pequena, algo bem típico dos cemitérios mais baratos. Apenas o espaço do caixão e bancos de cimento para os presentes ao enterro. O padre entrava na capela do mesmo modo que os demais, sem nenhuma entrada especial que fosse. A mãe de Jonas chorava copiosamente sobre o corpo de seu filho. Intercalava com essa tristeza momentos de profunda revolta, onde xingava de toda forma o sistema e a polícia, principalmente a polícia, que lhe arrancara seu filho. O pai de Jonas parecia mais controlado, mas por dentro estava completamente revoltado, e mais consigo mesmo, pois a seu ver falhara em dar ao filho condições morais para ter escolhido o caminho certo e não o errado. Jonas via tudo aquilo e falava sem sucesso com os pais. "Estou aqui! Pai! Mãe!", gritava sem sucesso, sendo ignorado e às vezes tendo a impressão de que sua mãe sofria mais quando ele falava. Por um instante pensou em abraçar a mãe, mas as palavras do velho marinheiro, muito mais eficientes que as de Glória, o fizeram parar antes que fizesse qualquer besteira.

Cansado de sofrer, Jonas saiu da capela e deixou sua família para trás, não fazia mais sentido tudo aquilo, nada daquilo. Foi quando se sentiu profundamente observado. Jonas correu as lápides e o terreno do cemitério com os olhos, deu pulos e subiu em caixões para ver se conseguia encontrar seu observador. Nada. Assim que desistiu de procurar escutou o som de algo escorrendo para próximo dele. Era a sombra.

– Precisamos conversar, Jonas... – Disse a Sombra.

Revelações de Jonas: Terceira Etapa da Viagem

Terceira Etapa da Viagem
A Revelação 


Como uma sombra...


"Comigo.", escutam ambos quando uma sombra negra se esgueira pelo chão e dele se ergue como uma massa disforme com dois olhos cintilantes em um branco calmo e ao mesmo tempo vazio de qualquer sentimento ou mesmo presença. O anjo faz menção de puxar sua espada e voar contra a massa negra, mas prefere optar pelo diálogo. Algo lhe diz para escutar as palavras da Sombra dessa vez, pelo menos por enquanto.

– Vejo que realmente vocês tiraram lições disso... Ele precisou ser humilhado e ver várias de Suas colônias dizimadas para aprender a olhar para baixo de vez em quando e se preocupar com as formigas do quintal... – Disse a Sombra, com uma voz suave e afiada. – Bom escutar isso de você, mesmo preferindo que outro o dissesse... Jonas, deve ter visto meu amigo por aqui, não?

– Quem? – Perguntou Jonas.

– Não se faça de rogado, me refiro ao cavaleiro negro... É, não foi uma ilusão de seus olhos o que viu, sua sanidade está perfeita. – Respondeu a Sombra.

– O que deseja aqui? Não vê que o momento não é propício... – Interrompeu o anjo, segurando no cabo de sua espada.

– Tenha calma, jovem Taniel... Não vou fazer mal algum a vocês, só vim dar uma informação útil a todos vocês do andar de cima. – Discursou a Sombra.

– Que tipo de informação?

– O Devorador de Almas se tornará meu contratado ao final desse ano terrestre, e, além disso, me tornarei seu mestre.

– Mas... Mas...

– Nada de "mas", você sabe no fundo de sua alma que seu amigo só possui dois caminhos agora, um leva a aniquilação total e outro o leva a meu caminho, a neutralidade. E a neutralidade a meu ver é menos destrutiva que qualquer outra coisa. E acrescento, meu servo irá bloquear os dons de seu amigo de comum acordo, até uma data por mim estipulada, e você será informado quando será esse limite. A mulher pensará que foi ela quem fez isso, deixemos a tola pensar assim.

– E o que você ganha com isso?

– Ora, que isso meu amigo... Até parece que não me conhece melhor que todos os papagaios de Deus... Ganho status quo, somente isso. Agora, quando o pai do Devorador de Almas vier em meu encalço terei os dois únicos que o feriram ao meu lado. Eles pela força de nosso acordo, me protegerão dele... Antes que pergunte, nunca te direi por que Mahl me quer, isso você vai ter que descobrir sozinho.

– E porque eu tenho que assistir isso? – Interrompeu Jonas, se colocando entre eles.

– Porque eu, tanto quanto o anjo sabemos que ninguém vai acreditar em você. E se insistir será tomado como louco e sofrerá por causa disso. – Afirmou a Sombra. – E, o melhor, ninguém pode culpá–lo por não querer dizer, ou melhor, se quiser esquecer tudo que viu hoje. Ninguém, pois você não pediu por isso. E mais, precisamos sempre de testemunhas, sempre. Senão, não terá acontecido.

– Então estou ouvindo tudo isso a toa?

– Sim e não. Depende do uso que fará do que ouviu... A informação é sua, mas o que fará com ela é que vai definir a utilidade disso, logo, garoto, boa sorte.


Antes que Jonas pudesse dizer algo mais a Sombra escorreu pelas pedras e desapareceu nas frestas do desfiladeiro. O anjo sentou–se sobre uma pedra e aquieceu–se. Jonas sentou ao seu lado e preferiu o silêncio. Sua cabeça latejava tentando entender tudo aquilo. O sonho a cada minuto estava se tornando lógico demais e ao mesmo tempo insólito. Era coisa demais para ele e esse pesadelo estava começando a perder a graça, "graça" que por sinal nunca teve. "Como eu acordo?", se perguntava cada vez mais. Então a imagem do rio cinzento brilhou forte em sua mente.

Cansado de tantos questionamentos e de toda aquela bagunça, Jonas se levantou e procurou por outra trilha de modo discreto, sem que o Anjo percebesse. Dificilmente o anjo perceberia, dado que estava imerso em seus próprios problemas. Assim que encontrou uma trilha desceu por ela o mais rápido que pôde. Tamanha foi a irresponsabilidade de Jonas que ele simplesmente despencou pela trilha, caindo a poucos metros da margem do rio. Enquanto caía escutou com nitidez o bater das asas do anjo, sabia que tinha pouco tempo antes que aquele anjo chamado Taniel viesse salvá–lo do rio, portanto, tinha que ser rápido. E foi, Jonas nem se levantou direito e pulou no Rio Cinzento.

Quando faltava menos de um metro para tocar a água do rio cinzento, os braços surgiram para buscá–lo. A princípio Jonas sentou o tocar delicado das mãos o erguendo sobre as águas, parecendo aqueles roqueiros em shows quando pulam no público e são carregados. Mas aí veio a dor. As mãos que o seguravam começaram a puxar partes de seu corpo em várias direções, desesperadas e sem soltar. Nenhuma parte de seu corpo era poupada e a dor era indescritível, parecia que seria completamente despedaçado e depois afundado. Sentiu quando seus braços e pernas foram deslocados pela força desses braços e quando estava quase desmaiando de dor viu o braço do anjo surgindo acima dele e erguendo–o velozmente para longe de rio. Estava salvo, completamente ferido e dolorido, mas estava salvo. O anjo depositou–o novamente no mesmo lugar onde estavam antes e fez menção que esbravejaria com Jonas, mas aparentemente desistiu e começou a voar novamente, mas dessa vez iria embora.

– Fique com Deus, Jonas... E cuide-se muito bem... Provavelmente não o verei mais. – Despediu–se o Anjo. – E desculpe-me pelo que assistiu hoje...

Jonas estranhou a atitude do anjo, quando percebeu que tinha algo errado com si próprio. Sua visão não estava, mas tão bem assim, não conseguia mais sentir do mesmo modo suas mãos e seus pés. Sentia cheiros pela primeira vez desde que chegara ali e escutava vozes ao longe, mas que se aproximavam mais. À medida que os segundos passavam, ele reconhecia nessas vozes os lamentos de sua mãe e seu pai. Reconhecia também pequenas agulhadas no braço. Então mais um flash, igual ao que vira no início de tudo. E voltava a se sentir naquela maca do hospital Souza Aguiar. Pela primeira vez estava grato de sentir o fedor daquele lugar. E para sua surpresa, conseguiu acordar.


Hospital Souza Aguiar, Centro - Rio de Janeiro, RJ.


Seu pai e sua mãe o abraçaram forte e o beijaram com muito carinho. Finalmente depois de três anos seu filho acordara. Já tinham perdido as esperanças, mas desde que a diretoria do hospital mudara dois meses antes, levando com ela os médicos corruptos que mantinham Jonas sedado, o jovem já demonstrara súbita melhora. Era dia vinte e quatro de Novembro de dois mil e dois, o incidente tinha acontecido em abril de dois mil e um, ou seja, Jonas sem perceber tinha passado quase um ano naquele lugar. E talvez nem se daria conta disso, pois ao despertar ele fez questão de considerar o ocorrido apenas como um sonho ruim e seguiu sua vida.

E seguiu sua vida. Seus pais processaram o hospital pelo ocorrido, pois foi descoberta a irregularidade dos médicos de Jonas, e conseguiram juntar dinheiro suficiente com a indenização para comprarem um apartamento em Santa Tereza. Considerando que antes eles moravam nos arredores de Nova Iguaçu, era uma ótima mudança, ainda mais que o pai de Jonas era porteiro em um prédio de Copacabana, isso acontecendo já em junho de dois mil e quatro. Mas para Jonas essas melhorias não foram suficientes. O sonho, mesmo sendo esquecido, deixou marcas na consciência de Jonas que o fizeram se revoltar com a vida que levava. Ainda eram pobres, apesar de possuírem casa própria, e, como se sabe, quando um adolescente pobre se revolta com a vida numa cidade como o Rio de Janeiro somente existem dois caminhos. E ele escolheu o do crime.

Dia vinte e três de Outubro de dois mil e cinco, Jonas e outros comparsas tinham acabado de assaltar um banco na Avenida Mem de Sá. Eram ele e mais quatro garotos, todos inexperientes. Tinham que roubar porque não faziam nem dois dias uma operação do Bope tinha levado embora toda a droga que eles tinham na boca de fumo, e agora tinham que pagar pelos produtos perdidos ou em dinheiro ou com a vida deles e de familiares. O próprio bandido do morro deu pra eles o serviço, era dia de pagamento dos funcionários das redondezas e nem precisariam entrar, só ficar na moita e esperar o office-boy responsável por depositar o dinheiro chegar para assaltá–lo.

Preferiram assaltar o banco e deu tudo errado. Os funcionários chamaram a polícia e sendo o batalhão muito perto dali, em poucos minutos o lugar estava repleto de policiais, todos dispostos a garantir que nenhum daqueles bandidos voltasse vivo pra casa. Jonas, aproveitando–se de sua cor de pele, conseguiu sair do cerco se passando por refém e correu para Santa Tereza. A farsa não durou muito, mas durou o suficiente para ele escapar da Mem de Sá e deixar pra trás seus companheiros, que foram mortos pouco depois na troca de tiros. Mas o que Jonas não sabia é que o destino conspirava contra ele.


Largo dos Guimarães, Santa Tereza - Rio de Janeiro, RJ.


Quando chegou a Santa Tereza, próximo ao Largo dos Guimarães, viu que estava sendo seguido por alguém muito rápido. Esgueirou-se por entre os becos e árvores do local até que julgou estar em segurança. Ficaria ali algumas horas até tudo se acalmar e passaria uns dias em outra cidade ou até mesmo em algum lugar distante até que esquecessem o crime. De repente escutou um disparo e sentiu uma dor forte na barriga. Tinha sido atingido. Seus olhos procuraram pela fonte e então viu o cavaleiro negro de seu sonho. Forçou os olhos com dor e viu um policial baixinho, de arma em punho, olhando para ele com muito ódio.

– Você é o cavaleiro negro... Você... – Balbuciou Jonas, sentindo muita dor.

– Então agora entendi porque algo me disse pra atirar sem perguntar... Eu me lembro de você. – Disse o policial.

– Porque atirou...?

– Porque você sabe demais, mesmo que apenas em sonho você vislumbrou coisas e descobriu coisas que te dariam outra vida que não essa de bandido, mas cada um faz suas escolhas... Ele pode não te matar pelo que sabe, mas eu sim por ter me reconhecido, antes ficasse de bico fechado... E quando chegar ao Inferno vou até você e destruirei sua alma. Você teve tudo e desperdiçou... É sempre assim.

– Por quê? Por quê?

– Porque quero! Ah... Cala a boca!

O policial deu mais três tiros no garoto. Enquanto a vida de Jonas escorria pelo chão e sua alma alçava vôo, o policial pegava seu celular e ligava para alguns amigos. Iam desovar o cadáver nas paineiras todo coberto de pó de pólvora. Se acaso alguém o encontrasse dariam como execução dos traficantes por causa do fracasso do roubo e só. Assim terminava a vida de Jonas, alguém que por algum tempo teve conhecimento e uma possibilidade que poderiam ter dado a ele outra vida, mas ele negou tudo. E como tal, pagou o preço em não ter feito uso do que sabia. Pois aqui se faz e aqui se paga.