Revelações de Jonas: Terceira Etapa da Viagem

Terceira Etapa da Viagem
A Revelação 


Como uma sombra...


"Comigo.", escutam ambos quando uma sombra negra se esgueira pelo chão e dele se ergue como uma massa disforme com dois olhos cintilantes em um branco calmo e ao mesmo tempo vazio de qualquer sentimento ou mesmo presença. O anjo faz menção de puxar sua espada e voar contra a massa negra, mas prefere optar pelo diálogo. Algo lhe diz para escutar as palavras da Sombra dessa vez, pelo menos por enquanto.

– Vejo que realmente vocês tiraram lições disso... Ele precisou ser humilhado e ver várias de Suas colônias dizimadas para aprender a olhar para baixo de vez em quando e se preocupar com as formigas do quintal... – Disse a Sombra, com uma voz suave e afiada. – Bom escutar isso de você, mesmo preferindo que outro o dissesse... Jonas, deve ter visto meu amigo por aqui, não?

– Quem? – Perguntou Jonas.

– Não se faça de rogado, me refiro ao cavaleiro negro... É, não foi uma ilusão de seus olhos o que viu, sua sanidade está perfeita. – Respondeu a Sombra.

– O que deseja aqui? Não vê que o momento não é propício... – Interrompeu o anjo, segurando no cabo de sua espada.

– Tenha calma, jovem Taniel... Não vou fazer mal algum a vocês, só vim dar uma informação útil a todos vocês do andar de cima. – Discursou a Sombra.

– Que tipo de informação?

– O Devorador de Almas se tornará meu contratado ao final desse ano terrestre, e, além disso, me tornarei seu mestre.

– Mas... Mas...

– Nada de "mas", você sabe no fundo de sua alma que seu amigo só possui dois caminhos agora, um leva a aniquilação total e outro o leva a meu caminho, a neutralidade. E a neutralidade a meu ver é menos destrutiva que qualquer outra coisa. E acrescento, meu servo irá bloquear os dons de seu amigo de comum acordo, até uma data por mim estipulada, e você será informado quando será esse limite. A mulher pensará que foi ela quem fez isso, deixemos a tola pensar assim.

– E o que você ganha com isso?

– Ora, que isso meu amigo... Até parece que não me conhece melhor que todos os papagaios de Deus... Ganho status quo, somente isso. Agora, quando o pai do Devorador de Almas vier em meu encalço terei os dois únicos que o feriram ao meu lado. Eles pela força de nosso acordo, me protegerão dele... Antes que pergunte, nunca te direi por que Mahl me quer, isso você vai ter que descobrir sozinho.

– E porque eu tenho que assistir isso? – Interrompeu Jonas, se colocando entre eles.

– Porque eu, tanto quanto o anjo sabemos que ninguém vai acreditar em você. E se insistir será tomado como louco e sofrerá por causa disso. – Afirmou a Sombra. – E, o melhor, ninguém pode culpá–lo por não querer dizer, ou melhor, se quiser esquecer tudo que viu hoje. Ninguém, pois você não pediu por isso. E mais, precisamos sempre de testemunhas, sempre. Senão, não terá acontecido.

– Então estou ouvindo tudo isso a toa?

– Sim e não. Depende do uso que fará do que ouviu... A informação é sua, mas o que fará com ela é que vai definir a utilidade disso, logo, garoto, boa sorte.


Antes que Jonas pudesse dizer algo mais a Sombra escorreu pelas pedras e desapareceu nas frestas do desfiladeiro. O anjo sentou–se sobre uma pedra e aquieceu–se. Jonas sentou ao seu lado e preferiu o silêncio. Sua cabeça latejava tentando entender tudo aquilo. O sonho a cada minuto estava se tornando lógico demais e ao mesmo tempo insólito. Era coisa demais para ele e esse pesadelo estava começando a perder a graça, "graça" que por sinal nunca teve. "Como eu acordo?", se perguntava cada vez mais. Então a imagem do rio cinzento brilhou forte em sua mente.

Cansado de tantos questionamentos e de toda aquela bagunça, Jonas se levantou e procurou por outra trilha de modo discreto, sem que o Anjo percebesse. Dificilmente o anjo perceberia, dado que estava imerso em seus próprios problemas. Assim que encontrou uma trilha desceu por ela o mais rápido que pôde. Tamanha foi a irresponsabilidade de Jonas que ele simplesmente despencou pela trilha, caindo a poucos metros da margem do rio. Enquanto caía escutou com nitidez o bater das asas do anjo, sabia que tinha pouco tempo antes que aquele anjo chamado Taniel viesse salvá–lo do rio, portanto, tinha que ser rápido. E foi, Jonas nem se levantou direito e pulou no Rio Cinzento.

Quando faltava menos de um metro para tocar a água do rio cinzento, os braços surgiram para buscá–lo. A princípio Jonas sentou o tocar delicado das mãos o erguendo sobre as águas, parecendo aqueles roqueiros em shows quando pulam no público e são carregados. Mas aí veio a dor. As mãos que o seguravam começaram a puxar partes de seu corpo em várias direções, desesperadas e sem soltar. Nenhuma parte de seu corpo era poupada e a dor era indescritível, parecia que seria completamente despedaçado e depois afundado. Sentiu quando seus braços e pernas foram deslocados pela força desses braços e quando estava quase desmaiando de dor viu o braço do anjo surgindo acima dele e erguendo–o velozmente para longe de rio. Estava salvo, completamente ferido e dolorido, mas estava salvo. O anjo depositou–o novamente no mesmo lugar onde estavam antes e fez menção que esbravejaria com Jonas, mas aparentemente desistiu e começou a voar novamente, mas dessa vez iria embora.

– Fique com Deus, Jonas... E cuide-se muito bem... Provavelmente não o verei mais. – Despediu–se o Anjo. – E desculpe-me pelo que assistiu hoje...

Jonas estranhou a atitude do anjo, quando percebeu que tinha algo errado com si próprio. Sua visão não estava, mas tão bem assim, não conseguia mais sentir do mesmo modo suas mãos e seus pés. Sentia cheiros pela primeira vez desde que chegara ali e escutava vozes ao longe, mas que se aproximavam mais. À medida que os segundos passavam, ele reconhecia nessas vozes os lamentos de sua mãe e seu pai. Reconhecia também pequenas agulhadas no braço. Então mais um flash, igual ao que vira no início de tudo. E voltava a se sentir naquela maca do hospital Souza Aguiar. Pela primeira vez estava grato de sentir o fedor daquele lugar. E para sua surpresa, conseguiu acordar.


Hospital Souza Aguiar, Centro - Rio de Janeiro, RJ.


Seu pai e sua mãe o abraçaram forte e o beijaram com muito carinho. Finalmente depois de três anos seu filho acordara. Já tinham perdido as esperanças, mas desde que a diretoria do hospital mudara dois meses antes, levando com ela os médicos corruptos que mantinham Jonas sedado, o jovem já demonstrara súbita melhora. Era dia vinte e quatro de Novembro de dois mil e dois, o incidente tinha acontecido em abril de dois mil e um, ou seja, Jonas sem perceber tinha passado quase um ano naquele lugar. E talvez nem se daria conta disso, pois ao despertar ele fez questão de considerar o ocorrido apenas como um sonho ruim e seguiu sua vida.

E seguiu sua vida. Seus pais processaram o hospital pelo ocorrido, pois foi descoberta a irregularidade dos médicos de Jonas, e conseguiram juntar dinheiro suficiente com a indenização para comprarem um apartamento em Santa Tereza. Considerando que antes eles moravam nos arredores de Nova Iguaçu, era uma ótima mudança, ainda mais que o pai de Jonas era porteiro em um prédio de Copacabana, isso acontecendo já em junho de dois mil e quatro. Mas para Jonas essas melhorias não foram suficientes. O sonho, mesmo sendo esquecido, deixou marcas na consciência de Jonas que o fizeram se revoltar com a vida que levava. Ainda eram pobres, apesar de possuírem casa própria, e, como se sabe, quando um adolescente pobre se revolta com a vida numa cidade como o Rio de Janeiro somente existem dois caminhos. E ele escolheu o do crime.

Dia vinte e três de Outubro de dois mil e cinco, Jonas e outros comparsas tinham acabado de assaltar um banco na Avenida Mem de Sá. Eram ele e mais quatro garotos, todos inexperientes. Tinham que roubar porque não faziam nem dois dias uma operação do Bope tinha levado embora toda a droga que eles tinham na boca de fumo, e agora tinham que pagar pelos produtos perdidos ou em dinheiro ou com a vida deles e de familiares. O próprio bandido do morro deu pra eles o serviço, era dia de pagamento dos funcionários das redondezas e nem precisariam entrar, só ficar na moita e esperar o office-boy responsável por depositar o dinheiro chegar para assaltá–lo.

Preferiram assaltar o banco e deu tudo errado. Os funcionários chamaram a polícia e sendo o batalhão muito perto dali, em poucos minutos o lugar estava repleto de policiais, todos dispostos a garantir que nenhum daqueles bandidos voltasse vivo pra casa. Jonas, aproveitando–se de sua cor de pele, conseguiu sair do cerco se passando por refém e correu para Santa Tereza. A farsa não durou muito, mas durou o suficiente para ele escapar da Mem de Sá e deixar pra trás seus companheiros, que foram mortos pouco depois na troca de tiros. Mas o que Jonas não sabia é que o destino conspirava contra ele.


Largo dos Guimarães, Santa Tereza - Rio de Janeiro, RJ.


Quando chegou a Santa Tereza, próximo ao Largo dos Guimarães, viu que estava sendo seguido por alguém muito rápido. Esgueirou-se por entre os becos e árvores do local até que julgou estar em segurança. Ficaria ali algumas horas até tudo se acalmar e passaria uns dias em outra cidade ou até mesmo em algum lugar distante até que esquecessem o crime. De repente escutou um disparo e sentiu uma dor forte na barriga. Tinha sido atingido. Seus olhos procuraram pela fonte e então viu o cavaleiro negro de seu sonho. Forçou os olhos com dor e viu um policial baixinho, de arma em punho, olhando para ele com muito ódio.

– Você é o cavaleiro negro... Você... – Balbuciou Jonas, sentindo muita dor.

– Então agora entendi porque algo me disse pra atirar sem perguntar... Eu me lembro de você. – Disse o policial.

– Porque atirou...?

– Porque você sabe demais, mesmo que apenas em sonho você vislumbrou coisas e descobriu coisas que te dariam outra vida que não essa de bandido, mas cada um faz suas escolhas... Ele pode não te matar pelo que sabe, mas eu sim por ter me reconhecido, antes ficasse de bico fechado... E quando chegar ao Inferno vou até você e destruirei sua alma. Você teve tudo e desperdiçou... É sempre assim.

– Por quê? Por quê?

– Porque quero! Ah... Cala a boca!

O policial deu mais três tiros no garoto. Enquanto a vida de Jonas escorria pelo chão e sua alma alçava vôo, o policial pegava seu celular e ligava para alguns amigos. Iam desovar o cadáver nas paineiras todo coberto de pó de pólvora. Se acaso alguém o encontrasse dariam como execução dos traficantes por causa do fracasso do roubo e só. Assim terminava a vida de Jonas, alguém que por algum tempo teve conhecimento e uma possibilidade que poderiam ter dado a ele outra vida, mas ele negou tudo. E como tal, pagou o preço em não ter feito uso do que sabia. Pois aqui se faz e aqui se paga.

Revelações de Jonas: Segunda Etapa da Viagem

Segunda Etapa da Viagem
A Folha de Parreira

Depois de muito esforço Jonas finalmente conseguiu chegar novamente a borda do desfiladeiro. Deixava para trás o rio cinzento de muitos braços e carregava consigo uma grande questão, se esse era um sonho ou algo mais. Jonas tornou a tatear o chão, buscando alteração no que percebia, para comprovar se era ou não um sonho, porém nada encontrou de diferente. Procurou a seguir por pontos de referência de quanto recém despertara. Se acaso tivessem mudado de lugar ou desaparecido, com certeza se tratava de apenas um sonho, ruim, mas ainda assim um sonho. Nada mudara, estava tudo igual. Ou esse era um sonho muito mais complexo que todos que tivera ou algo muito estranho estava acontecendo.

Foi então que percebeu que estava completamente só. Calculava que já tinham se passado pelo menos uma hora desde que acordara e ainda assim não tinha visto nenhuma pessoa, nenhum pássaro no céu ou mesmo tinha sentido uma brisa sequer, mas também não fazia calor. Simplesmente sentia nada, o lugar parecia completamente morto. O único som que escutava vinha da tentação do rio cinzento, do qual queria distância. Nunca tinha se dado conta do quanto à solidão era ruim até aquele momento, mesmo enfermo naquela cama de hospital Jonas ainda sentia a presença humana ou mesmo a presença irritante dos ratos que dividiam o espaço dos pacientes do Souza Aguiar. Naquele momento até mesmo a presença dos médicos que lhe faziam tanto mal seria bem vinda para o adolescente.

Jonas respirou fundo e seguiu seu caminho. Pensou em se guiar pela luz do sol, mas ao olhar para o céu viu apenas densas e pesadas nuvens em uma tonalidade também vermelha, mas muito próxima do negro. Amaldiçoou-se por não ter reparado nesse detalhe antes. Viu no horizonte uma montanha maior que as demais, parecendo até mesmo estar além do cânion. Tomou–a como direção a seguir e começou a caminhar. Jonas andou por horas nesse rumo fixo, sempre em linha reta até finalmente conseguir sair do cânion vermelho. Mas a montanha continuava distante e de agora em diante entre eles havia um deserto aparentemente sem fim, e completamente vermelho. Mas um vermelho mais escuro, mais enegrecido pelo tempo.


Vermelho... O tom predominante...


Completamente exausto da caminhada, Jonas sentou no chão e preparou–se para a grande caminhada que faria. Teve a estranha impressão de que algo estava errado. Olhou para trás e viu o caminho que percorrera, mas ainda assim não era o que lhe causava a sensação. Tornou a olhar em torno de si até que finalmente percebeu que o tempo não havia passado, pelo menos não no seu conceito de dia e noite. Apesar de caminhar por horas no desfiladeiro não havia acontecido nenhuma alteração no que dizia respeito à luminosidade do local. Tudo continuava sempre da mesma forma, a única alteração que existia no seu ponto de vista eram suas pegadas marcando o caminho de onde viera e mais nada.

Jonas se levantou, respirou fundo e recomeçou seu caminho. Ele precisava se focar em alguma coisa para não enlouquecer, a solidão estava começando a fazê–lo ver coisas. Pensava nisso porque alguns minutos antes de chegar ao deserto, podia jurar ter visto ao longe a figura de um cavaleiro negro montado em um corcel negro exatamente na divisória entre o cânion e o deserto. Era impossível que em pleno século vinte e um Jonas ainda avistasse cavaleiros, e realmente parecia ter sido, dado que o cavaleiro desapareceu sem deixar rastros quando Jonas coçou os olhos pra forçar a lucidez.

Com o passar das horas caminhando, Jonas começou finalmente a sentir algo que tinha esquecido como era, sentiu sede. Por um segundo lamentou estar longe do rio cinzento, mas uma tapa na testa o fez deixar de lado essa maldita vontade. Caminhou até o topo da duna mais alta que conseguia distinguir e tentou procurar por algum oásis. Durante a procura viu que estava finalmente próximo de seu objetivo, a montanha, pelo menos era o que lhe parecia. Por mais que esforçasse a visão Jonas não viu sequer a ilusão de um oásis, e apenas sentia sua sede aumentar. Já tinha ouvido histórias, principalmente em quadrinhos, de pessoas que sobreviviam no deserto se alimentando de cactos. "Ótimo, posso comer cactos... Mas onde encontro um?", indagou Jonas, sem localizar nenhum no vazio do deserto. 



No topo... No alto...


Sem nenhuma esperança de encontra água, ou mesmo que fosse começar a chover, Jonas começou a descer lentamente a duna rumo à montanha. Se algo tinha que acontecer de bom, esperava que acontecesse naquele momento. Foi quando escutou o bater de asas sobre sua cabeça. Jonas olhou para o alto procurando pela fonte do som, mas nada encontrou. O que quer que esteja por ali, provavelmente estaria além das nuvens, ou oculto por elas. Sentiu medo e correu muito.

Não foi uma decisão sábia. Imerso em seu pavor pelo som que não cessava Jonas acabou se desequilibrando e rolou pela duna até chegar a sua base. Ainda assim, com muita dor e parecendo um bife empanado, Jonas se levantou e tornou a correr. E correu muito, mesmo sentindo o esforço de se locomover na areia desse deserto. Sem olhar para trás nem pôde perceber quando algo saiu das nuvens e deu um rasante em sua direção, e no final não conseguiu escapar de fortes mãos que agarraram seus ombros e levaram Jonas para o alto. Completamente apavorado, Jonas simplesmente desmaiou.

A consciência de Jonas tardou a voltar, mas quando voltou Jonas tentou fazer isso de modo que quem quer que o tenha pegado não percebesse. Escutava novamente o som de rio próximo, e com o canto do olho conseguiu ver que estava novamente no mesmo desfiladeiro de onde saíra. Tornou a passear pela área com seus olhos e viu dos pés descalços próximos a ele, e uma profunda sensação de paz percorreu todo seu corpo. Ergueu a cabeça confiante, procurando pelo dono dos pés e tamanho foi seu espanto que se levantou rápido. Era um anjo.

O anjo vestia um manto azul celeste brilhante e portava um cinturão dourado onde nele estava presa uma enorme espada cuja bainha arrastava no chão. Tinha dois pares de asas nas costas, sendo um par maior que o outro, dando alguma semelhança com o formato das asas de borboletas. Seu semblante parecia castigado por batalhas e no olho esquerdo tinha a cicatriz de algum corte, mas o olhar permanecia o mesmo, tranquilo e sereno. Seu cabelo era negro e comprido, mas completamente liso. Sua mão direita carregava um belo arco composto, ricamente detalhado e aparentemente feito de ouro mesclado a alguma madeira. A mochila de flechas provavelmente estaria nas costas do anjo, logo atrás das asas, como indicavam duas tiras douradas nos ombros do anjo. Imediatamente Jonas se deu conta de estar completamente nu e sem nenhuma vestimenta apropriada, tratou de esconder sua genitália com as mãos. Imediatamente o anjo o interpelou:

– Não há necessidade de folha de parreira nesses domínios, Jonas. – Disse o Anjo.

– Como? Como sabe o meu nome? – Perguntou Jonas, obedecendo ao anjo com receio e se enchendo de dúvidas.

– Não há nada que Ele não saiba, e como parte Dele... Apenas sei que sei.

– Se sabe tanto, onde eu estou? – Perguntou o jovem.

– Onde julgas estar?

– No inferno! Isso aqui não tem nada, apenas essa terra vermelha e aquele maldito rio que parece que quer me tragar pra suas profundezas! Eu sei que você é alucinação causada pela solidão...

– Se assim o diz, assim o é...

– Em? Está querendo insinuar que isso só é assim porque eu acredito que seja assim?

– Talvez sim, talvez não... Tudo é complexo demais para ser resumido numa simples cor ou mesmo em um rio, e ao mesmo tempo é mais simples do que supõe.

– Aonde quer chegar com essa filosofia? Eu não entendo...

– Lugar nenhum, apenas sempre quis dizer isso...

– Hã? Você disse isso tudo "apenas" porque sempre quis dizer?

– Onde está escrito na Bíblia que somos desprovidos de humor?

– ...

– Imaginava essa reação, vocês quando chegam sempre reagem dessa forma...

– E então, onde estou?

– Bem, apesar de toda essa desolação, este aqui é, ou melhor, deveria ser o seu lar. Já leu ou ouviu falar de Chico Xavier?

– Já, minha avó estava lendo coisa dele algum tempo atrás, quando meu avô morreu...

– Bem, em alguns dos livros dele ele descreve com certa perfeição, auxiliado claro, como é o mundo dos mortos.

– Então estou morto?

– Ainda não... Diria que em um profundo coma... Continuando, decerto sabe algo sobre colônias para onde os espíritos vão quando desencarnam e tudo o mais. Bem, essa aqui é a sua colônia, para onde deverá ir quando morrer. Ou melhor, deveria, já que pelo que podemos ver ela não está exatamente do jeito que você esperava. Lembra que nos livros de Xavier diziam que as colônias tinham suas proteções contra invasões de outros seres? Pois bem, se olhar em volta vai ver o que acontece quando tudo dá errado. Ah sim, já olhou bastante.

“Deve estar se perguntando como tudo isso aconteceu? Bem, faz alguns anos que isso aconteceu e de certa forma tenho que admitir que foi um erro puramente nosso. Quando digo nosso, me refiro a nós, o que chama de "anjos". Por muitos anos nossos narizes estiveram mais erguidos que até mesmo a divindade e quando isso acontece, quando cremos sermos perfeitos, é quando cometemos os maiores erros. E esse ano cometemos o pior de todos. Enviamos para seu mundo diversos espíritos que tinham uma profunda responsabilidade sobre o que viria a acontecer na Terra, e que ainda há de acontecer. Demos a eles treinamento e um sentido para viver, deixamos eles informados de tudo a nosso respeito, demos a eles as memórias necessárias e a esse grupo foram acrescentados alguns de nossos melhores Arcanjos, e para resumir, enviamos com eles a Voz e a Justiça.”

“Mas fomos soberbos e subestimamos nossos inimigos. Acreditávamos tanto em nossa superioridade que não percebemos que nossos irmãos tinham sido enviados para a derrota total. Erramos em julgar que poderíamos realmente fazer diferente do que está escrito no apocalipse de João. Tentamos fazer antes o que tem momento certo de acontecer, e nossos irmãos pagaram o preço. E nós também.”

“Certos da vitória, deixamos que o Primogênito de Mahl, conhecido como o 'Devorador de Almas' encarnasse. Ele surgiu de uma parte de todo o mal que existe, sua cria direta, mas há eras havia abandonado a causa de seu criador e se tornado uma das forças do bem maior, adotando Deus em seu coração. Porém subestimamos o planeta Terra e as regras da encarnação. E encarnado o filho de Mahl era presa fácil para que outros encarnados, associados a espíritos malignos, instigassem-no até despertar novamente seu mal. Quando isso aconteceu o Filho de Mahl voltou seu ódio contra todos nós.” 


O Mal Em Tudo Que Existe.


“Essa colônia estava em seu caminho. O filho de Mahl, mesmo preso a Terra, conseguiu manifestar tamanha força que sozinho destruiu todo esse mundo, deixando dele apenas as cinzas dos espíritos que aqui residiam. O rio cinzento que viu é formado pelos restos das energias provenientes do desespero dos espíritos ao serem devorados. E sempre que alguém se aproxima de seu leito os vestígios tentam desesperadamente buscar ajuda e acabam com isso destruindo todos que tocam. Teve sorte, ou habilidade, para escapar do Rio. Agora estamos tentando descobrir o que fazer para contê–lo e não temos nenhuma ideia de como e nem quando faremos. Até lá a esperança será substituída pelo desespero. E pela culpa de nosso erro.”

– E porque está me contando tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Nunca teve desejo de desabafar um pouco? No fundo, somos todos iguais... Precisava disso, e sei que é seguro contar tudo a você.

– Porque é seguro?

– Quem, no mundo onde você vive, vai tomar como verdadeiras as palavras de um jovem que despertou de um coma profundo depois de dois anos sendo sedado pelos médicos? Considerarão como devaneios resultantes do coma e das inúmeras vezes que escutava pessoas rezando pelas almas de seus entes queridos nas camas daquele hospital.

– Mas tem sempre alguém que acredita...

– Mas a maioria das pessoas da Terra é incrédula. Até mesmo você não está acreditando no que digo, eu sinto isso, e apenas deve julgar ser resultado dos sedativos nesse exato instante... O que não deixa de ser verdade... Mesmo que eu lhe diga isso com todas as letras, que isso que lhe passo é real, você e as demais pessoas têm uma visão muito romantizada do além para crerem que as coisas estão indo mal.

– Você fala como se a culpa fosse nossa...

– E é. Se existe alguma culpa pelo despertar do Devorador de Almas essa culpa é também da humanidade. Vocês deixaram o mundo ficar do jeito que está. Nós, anjos, apesar de nossa soberba, não tivemos nenhuma participação nisso desde o Pacto das Águas. Entenda, Deus não interfere na Terra desde que deu a vocês o livre arbítrio. Nós apenas tentamos proteger vocês de ameaças externas, mas de vocês mesmos nunca mais os protegemos, exceto quando vêem a nós com suas súplicas. Quando enviamos o Devorador das Almas e seus guardiões para a Terra não esperávamos que a mesma tática que destruiu Adão fosse usada novamente por vocês.

– Como assim? O que Adão tem a ver com isso?

– O Devorador das Almas foi enganado por uma mulher em sua busca, mulher essa que aceitou fazer o que fez em troca de uma enorme recompensa. Ela fez o que fez sem ter noção das consequências e quando essas apareceram, ela pegou sua recompensa e partiu sem olhar para trás. Deixando ele sozinho.

– E agora? Onde ele está?

Revelações de Jonas: Primeira Etapa da Viagem


Primeira Etapa da Viagem
 O Embarque

As pessoas sempre imaginam que exista algo belo e bonito no além-vida, sempre esperam que em algum instante de suas ridículas passagens pelo planeta Terra passem a ter algum significado.

Doce mentira.

Anos atrás o pequeno Jonas teve uma experiência fora de seu corpo completamente contrária a qualquer coisa que muitos entendidos do "além-vida" pregam. Ele estava internado entre a vida e a morte há pelo menos dois anos no hospital Souza Aguiar, Rio de Janeiro, após um trágico acidente envolvendo bicicleta, um caminhão e muita imprudência. Seus pobres pais não tinham nenhuma condição de arcar com custos de hospitalização particular, o que significava que literalmente ele estava nas mãos de Deus.

Claro, quando se está predestinado a morrer não importa onde esteja internado, isso há de ocorrer. Entretanto, no caso dele o motivo real de sua condição era apenas um coma induzido por médicos corruptos que queriam faturar alguns trocados a mais desviando dinheiro do SUS que seria necessário para o suposto tratamento do menino. Na noite de vinte e um de abril de dois mil e um, um dos médicos errou na dose de sedativo, e, por não se importar efetivamente com o jovem, tudo começou.

Primeiro o de sempre. Um pequeno formigamento em seus pés, algo tênue, imperceptível não fosse o seu estado semiconsciente. Como parte do tempo ou sonhava ou ouvia as vozes das pessoas a sua volta, sem jamais conseguir acordar ou dar sinais, julgou estar novamente entrando no seu sono diário. Considerando a frequência com que acontecia desde sua internação, ele já não se desesperava como antes e deixava simplesmente acontecer. Nada podia fazer a não ser se deixar levar, era menos traumático que qualquer tipo de resistência.

Porém dessa vez algo de diferente aconteceu. Apesar de muitos amigos, colegas e parentes já terem comentado disso e nunca tinha dado razão a essas palavras, soube identificar de imediato o que estava acontecendo consigo. O sono desapareceu, dando lugar a uma profunda leveza. A seguir passou a ver seu corpo com uma nitidez completa, de suas mãos até a ponta de seus pés. Daí a leveza foi substituída pela impressão de que flutuava em uma piscina. Sentia–se livre de qualquer um de seus sentidos e, principalmente, de todo o sofrimento dos últimos anos. Então viu uma luz acender sobre sua cabeça em um flash intenso que lhe ofuscou a visão e levou embora sua consciência.

Jonas acordou algum tempo depois. Se foram dias ou horas não tinha como saber, mas não gostou do que viu. Estava nu, na borda de um imenso cânion. Seus olhos doíam muito, devido ao tom avermelhado do ambiente. "Será que estou no inferno? Ou é algum sonho?", pensou enquanto vagava cambaleante pelo cenário desolado. Tentando sentir um pouco do local onde estava, Jonas pegou um pouco da terra local. O material era ralo e fino, semelhante a açúcar de confeiteiro, com odor acre parecido com o de sangue, com textura úmida. E as rochas pareciam ser feitas de material semelhante. 

 
Longe... Muito longe...


Olhando para o interior do cânion, conseguia ver um pequeno rio de águas cinzentas correndo em direção a algum lugar por entre as curvas do desfiladeiro. Jonas misteriosamente sentia–se atraído por esse rio ao mesmo tempo em que uma sensação lhe compelia a se afastar o máximo possível dele. Mas o jovem tinha um defeito, ele era profundamente curioso, e imprudente – óbvio, pois se não fosse não teria parado no hospital. – e começou a se esgueirar pela borda do desfiladeiro procurando uma trilha onde pudesse alcançar esse rio.

Passados alguns minutos e alguns metros beirando a borda do cânion, Jonas conseguiu finalmente encontrar uma trilha ao menos aparentemente segura, apesar de fina. Lenta e cautelosamente ele desceu um pé após o outro, tomando todo o cuidado para não machucar nenhuma parte de seu corpo nas poucas pedras vermelhas que conseguia distinguir, pois se não houvesse caminho logo abaixo, teria que usar essa mesma trilha para subir novamente.

Finalmente, após muita paciência mesclada a um esforço compenetrado, Jonas atingiu seu objetivo e estava a poucos metros do rio cinzento. Sem a menor preocupação correu até sua margem e viu o reflexo de seu rosto na água. O jovem berrou escandalizado ao ver o estado de sua face na água. Imensas feridas e cicatrizes pareciam cobrir o rosto todo. Seu cabelo estava raspado e com buracos que mostravam mais cicatrizes do que tinha em sua face. Sentia–se uma verdadeira colcha de retalhos. Pela primeira vez em muito tempo de desespero, Jonas chorou. E para sua surpresa e terror, Jonas chorou sangue.

Jonas apalpava seus olhos e sentia o líquido viscoso e vermelho escorrendo por sua face e banhando–o. Tentava parar de chorar, mas tal qual uma ferida aberta o sangue parecia até mesmo sair mais forte que quando chorava com vontade. Isso apenas aumentava mais e mais seu desejo de pular no rio, agora sob a justificativa de se sentir limpo, porém proporcionalmente a esse desejo aumentava o terror de estar próximo dessa água. Hesitando Jonas procurou a parede do desfiladeiro e ali se apoiou, deixando a cabeça relativamente arqueada permitindo ao sangue que caísse diretamente no chão, ao invés de banhá–lo. Porém, quando tocou na parede imediatamente parou de chorar e o sangue desapareceu num piscar de olhos, como se nunca tivesse caído. Procurou por vestígios dessa estranha lágrima e apenas encontrou lágrimas comuns. Teve uma impressão estranha e arriscou jogar uma pedra no rio, escolheu qualquer dentre as milhares de pedras vermelhas que ali tinham e a arremessou.

A pedra vermelha fez um arco perfeito no céu em direção ao rio, mas antes de atingir a superfície do rio algo pavoroso aconteceu. Como se atraídos pela chegada repentina daquele objeto, dezenas de braços cinzentos saíram do espelho d'água e brigaram entre si por ela. A briga continuou até todos os vestígios das pedras e dos braços tivessem desaparecido por completo nas profundezas do rio. Jonas caiu sentado no chão de susto quando os braços agarraram a pedra. No âmago de seu ser, Jonas agradecia por dessa vez ter sido prudente e não ter se arriscado como algo lhe dissera antes para fazer. Sem ter mais o que fazer naquela parte do rio, Jonas procurou alguma espécie de caminho, mas ao dar os primeiros passos concluiu que seria mais seguro subir a trilha de volta ao topo do desfiladeiro ao invés de se arriscar pelas beiradas de um rio onde a qualquer momento braços poderiam surgir e puxá–lo para dentro, ou pior ainda, ele poderia ceder à tentação de pular no rio cinzento, e ele tinha certeza que isso não seria bom. Novamente, dessa vez com o dobro de cautela, Jonas seguiu a trilha, só que dessa vez para bem longe do rio cinzento...