Revelações de Jonas: Sexta Etapa da Viagem

Sexta Etapa da Viagem
Vendido!
 
 
Cavaleiro Negro... (Fonte)


Jonas saltou violentamente em cima do Cavaleiro Negro, que apenas riu e deu dois galopes para trás, deixando Jonas cair no chão. Jonas se levantou novamente e tentou pegar uma pedra para golpear o Cavaleiro. Esforço inútil, pois suas mãos atravessaram a pedra. "Mortos geralmente não erguem pedras, garoto.", disse o Cavaleiro. Com muito mais raiva Jonas chutou a perna do cavalo. Tentativa inútil, sua perna bateu em cheio nas proteções do animal para derrubá-lo, mas quem tombou com dor foi Jonas. "Humano demais...", disse o cavaleiro, enquanto erguia seu cavalo pelas rédeas e tentava acertar Jonas com um coice. Jonas consegue rolar pelo chão milésimos de segundo antes de o cavalo esmagar o lugar onde estava sua cabeça, mas quando tenta se levantar é subitamente preso ao chão pela pata dianteira esquerda do cavalo.

– Moleque idiota, se eu quisesse matá-lo teria feito isso agora... – Bradou o cavaleiro negro, imobilizando Jonas com a pata do cavalo e tocando sua testa com a ponta da espada. Jonas sente uma leve dor na testa.

– Então o que quer? – Pergunta Jonas, olhando em volta dele procurando por alguma espécie de arma.

– Esperar.

– Esperar pelo quê?

– Por mim. – Diz uma voz completamente familiar, a voz da Sombra. Ela se esgueira pelo chão noturno com suavidade e completamente despercebida, não fosse ter se anunciado. – Meu velho amigo aguarda somente uma resposta sua...

– Resposta? É desse modo que vai me dar livre arbítrio pra escolher?

– Você é realmente um completo imbecil... – Interrompe o Cavaleiro Negro. – Ele vale para todos, ou melhor, quase todos e você tem a opção de viver sob as regras da Sombra ou morrer pela minha espada... Se escolher o lado dos anjos está escolhendo por morrer pelas minhas mãos. Olhe a sua volte e procure pelo seu anjo da guarda? Onde ele está?

– Estou aqui. – Diz uma voz sublime, que vêem acompanhada de uma luz forte que cobre todo o ambiente, exceto nos locais que a Sombra e o Cavaleiro tocam. – Vim buscá-lo, Jonas, tive dificuldades em encontrá-lo, mas agora podemos partir...

– Nem pensar, borboleta. – Interrompe, dessa vez, a Sombra. – Essa jovem criatura de Deus tem uma resposta a me dar e antes de qualquer "pití" seu, espero que se lembre das regras...

– Não preciso de sua ajuda para lembrar-me. – Responde o anjo, olhando piedosamente para Jonas a seguir. – O que desejas nesse momento?



Se Jonas estivesse vivo, suaria frio. Mas ele não estava e todo esse nervosismo exalava de sua aura. Ele estava caído no chão, mantido nele pelos cascos do cavalo do Cavaleiro. Não faziam nem três minutos e seu novo, aliás, único amigo naquela nova situação estava morto em definitivo e nem sequer se acostumado com tudo aquilo. Diante dele naquele momento estavam um anjo, a Sombra e o Cavaleiro Negro. E todos eles queriam uma decisão dele. Apenas uma decisão.

– Chega! – Berrou Jonas. – Eu não faço a menor idéia de quem ou quê vocês são... Chego até mesmo a duvidar de meu estado atual... E vocês querem que eu tome uma decisão que envolve até onde vi minha própria destruição... Vocês são malucos por acaso e querem compartilhar comigo sua loucura? Ou me tomam por completo imbecil?

– Eu tomo-lhe por imbecil. – Respondeu o Cavaleiro Negro.

– Quieto meu fiel ajudante. – Interrompeu a Sombra. – O que o rapaz deseja apenas é informação, acredito que nosso amigo emplumado seja capaz de fornecer... Ou estaria enganado?

– ... – Silenciou o anjo.

– Então, jovem Jonas, vamos começar da maneira mais simples de todas, você me pergunta e eu respondo, se for para a borboleta dos céus, ela responde. – Falou a Sombra, aparentemente sentando em uma cadeira feita de si mesma. – É justo, concorda, pombo?

– Isso não me agrada, mas se assim poderei salvar sua alma... Deixemos ele em paz. – Assentiu o Anjo.

– Pra começar, o que está acontecendo? – Perguntou Jonas.

– Essa eu respondo. – Disse a Sombra. – Simples, você morreu! "Pou! Pou! Pou!", vários tiros certeiros em você que espalharam pedaços seus por toda a calçada próxima daquele arbusto do Largo dos Guimarães. Agora você tem a possibilidade de escolher qual lado decidir... E quer saber porquê? – Perguntou a Sombra, sabendo que sua insinuação obrigaria o anjo a ver respondidas questões que Jonas não estivesse disposto a entender.

– Diga, se já está falando... – Respondeu Jonas.

– Bem, quando você esteve em coma ouviu conversas e situações que não são dadas a um espírito de sua categoria. Foi testemunha de fatos que provavelmente apenas um grupo mínimo de pessoas na Terra, e até mesmo fora dela, foi capaz de escutar. E de posse disso nada fez, tanto para o bem quanto para o mal... Mas em compensação a revolta que a desolação trouxe a sua alma foi grande o suficiente para abalar sua noção de certo e errado na Terra. E deu no que deu... O Primeiro Tiro.

– E no que isso interfere em decisão?

– Em nada, mas me interessei por você em especial... Por causa da sua informação, não quero ela de posse de qualquer um.

– Quer dizer que estou passando por isso tudo só pro causa de segredinhos?

– Sim, e por gosto pessoal meu, mas acontece que quando você morreu o meu lacaio decidiu dar cabo definitivo de você... E não gostaria de ver algo ruim acontecer a um espírito tão novo quanto você. Ele sempre destrói suas vítimas na Terra, pra evitar aumentar o Carma dele... O "Aqui se Faz, Aqui se Paga"... Inteligente até, se não tem cobradores não tem dívida, apenas a consciência dele e ele não é o tipo de ser que se culpa muito... – Quando a Sombra falou isso, Jonas observou para o Cavaleiro Negro e teve a certeza de que ele sorria com tudo aquilo. – Em suma, se está até agora aqui existindo, é porque eu pedi a ele que o mantivesse vivo.

– E porque esse interesse súbito por minha pessoa? Não seria mais fácil me matar simplesmente?

– Porque vi que seria algo bem interessante... Demais, mas não posso falar até você aceitar minha oferta. Entenda, você só terá significado até o momento que disser "sim" ou "não", depois disso é consequência de suas escolhas, e entenda uma coisa: um "não" será desagradável, pois não poderei conter meu fiel amigo...

– Eu o conterei. – Interrompe o anjo. – Escolha com seu coração, não com seu medo. Estou aqui para protegê-lo de qualquer coisa, tenho Ele a meu lado...

– "Ele" não está aqui... – Fala a Sombra, devolvendo a interrupção. – E nós dois sabemos o que vai acontecer se vocês entrarem em conflito.

– Sei, e nada tenho a temer com Ele a meu lado... – Disse o anjo.



O Cavaleiro Negro embainhou sua espada novamente, observando atentamente Jonas a medida que deixava o jovem livre para se levantar. "Ótimo, civilizadamente...", disse a Sombra, irônica. O anjo se postou entre o Cavaleiro Negro e o jovem, deixando bem claro, sem uso de palavras, que o Cavaleiro Negro teria que passar por ele para conseguir algo. Jonas apenas ficava mais desnorteado com isso tudo.

– Isso vai me enlouquecer... – Balbuciou Jonas, já em pé.

– Não, a não ser que deseje isso... – Disse a Sombra, em seu ouvido. – Bem, se não tem mais perguntas, gostaria de uma resposta, não tenho toda a eternidade a sua disposição... E a espada de meu amigo quer aplacar a fome de sangue... Ops, você não tem mais sangue.

– Eu não posso escolher ser deixado em paz e longe de tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Não de minha parte. – Disse o Cavaleiro Negro. – Só uma palavra e atravesso a cabeça de seu protetor e depois arranco a sua.



Jonas travou. Sabia que estava em uma encruzilhada e algo dentro de si garantia que apesar de toda a balela a respeito de livre arbítrio na realidade não tinha escolha alguma. Fitava o anjo e teve uma estranha impressão a respeito dele. Apesar de toda a aparência pomposa do ser divino, seu semblante mascarava algum sentimento diferente em relação à aquele momento, soava-lhe como se o anjo soubesse de algo ou tivesse alguma ordem que era segredo a senão todos ali, mas com certeza a Jonas.

– Diga-me, uma coisa, anjo. – Falou Jonas. – Você me responderia qualquer pergunta, qualquer coisa que lhe perguntasse, não?

– Sim. – Respondeu o anjo, com semblante mais preocupado ainda.

– Bem, gostaria de saber o motivo de tamanha preocupação... Existe algo que eu deveria não saber?

– Como assim?

– Exato, existe algo que se eu perguntar a você serei desviado da linha de pensamento e forçado a tomar conclusões erradas?

– Não. – Respondeu, demonstrando total sinceridade em suas palavras.

– Então se não é isso, do que se trata então?

– ... – Silenciou o anjo e Jonas teve certeza, existia algo mais.



Naquele instante Jonas teve certeza que muito mais estava em jogo do que simplesmente sua existência. "Adalberto morrera e nenhum anjo aparecera para salvá-lo", pensou, "porque então para mim teria?". Essa dúvida assombrou-lhe de tal forma que sentiu-se então satisfeito com apenas uma coisa. Se queria saber o que a Sombra planejava, jamais obteria tal informação da parte do anjo. Ele provavelmente o levaria para um lugar bem longe de onde jamais saberia porque tudo aquilo aconteceu. E Jonas, como dito no início de tudo, era tudo menos sensato. E ele tinha curiosidade em saber.

– Sombra, eu aceito sua proposta. – Afirmou.


O anjo deu de ombros e voou sem se despedir. Apenas desejou sorte a Jonas em sua decisão e que lembrasse sempre de Deus. Jonas não se importava mais com nada. A sombra pela primeira vez deixava transparecer algo em sua escuridão além de seus olhos brancos, deixou aparecer um largo sorriso. Ela pela primeira vez fez aparecer sua mão, uma mão feminina e delicada, estendeu-a até Jonas e os dois fecharam o acordo com um aperto de mãos. "Agora, precisamos apenas tornar oficial isso...", disse a Sombra enquanto ela mesma recobria o corpo todo de Jonas e deixava-o com uma pequena marca no braço direito, era um risco negro, semelhante a uma tatuagem. Começava grosso de um lado e afinava até desaparecer do outro. "Minha assinatura, todos os meus contratados possuem...".

– Marcado como gado... – Disse Jonas.

– Não, você tem toda a sua liberdade, contanto que me acate quando sua liberdade interferir em meus interesses durante nossos trabalhos.

Jonas apenas assentiu com um gesto com a cabeça. Sem dar tempo de processar a informação a sombra cresceu de tamanho e envolveu Jonas e o cavaleiro em uma completa escuridão. Jonas teve a sensação de voar muito rápido e quando a escuridão cessou ele, acompanhado da Sombra e do Cavaleiro, estava novamente onde tudo começara, naquele mesmo desfiladeiro vermelho...

 
De volta... ao início de tudo... Fim das Revelações.
 
Próxima parte: Conspiração.

Revelações de Jonas: Quinta Etapa da Viagem

Quinta Etapa da Viagem
Fim Real



Um Cemitério... Uma Sombra...



– Que tipo de conversa você quer ter comigo agora? – Pergunta Jonas.

– A que vai mantê-lo vivo, repare que está anoitecendo novamente. – Respondeu a Sombra.

– E daí? Que tipo de perigo me atinge agora? Já estou morto mesmo...

– Já se esqueceu de alguém quem disse que o buscaria? Realmente esqueceu?

– Do que fala? – Questionou Jonas.


A Sombra se espantou, e com razão. Quando a Sombra impediu que a luz levasse Jonas para seu destino, ela iniciou a contra-gosto um processo de esquecimento voluntário em Jonas. Por desejo próprio e por vergonha de seus atos, Jonas estava apagando de sua alma acontecimentos traumáticos. Todos eles.

– Não recorda de seus últimos momentos de vida? De um aviso de alguém que nós dois conhecemos? Esquecer nem sempre é remédio pra tudo... Ainda mais quando lidamos com a destruição do espírito...

– Se refere a...



Jonas congelou. Seu corpo tremeu por completo e ele se recordou das palavras do Cavaleiro Negro. "E quando chegar no Inferno vou até você e destruirei sua alma...", essas palavras invadiram a mente de Jonas causando enorme desconforto e pavor. A Sombra percebendo nitidamente que o recém falecido estava desesperado, não hesitou em fazer uma proposta.

– Bem, existe uma chance de você sobreviver... Basta que me deixe levá-lo de volta para aquele mesmo cenário desolado de anos atrás. – Propôs a Sombra. – Está disposto?

– Porque me oferece tanta ajuda? – Questionou Jonas. – Você não me parece o tipo de ser altruísta, que concede favores sem cobrar...

– Decerto, mas o preço que vou lhe cobrar te garanto que será menor que o cobrado pelo Cavaleiro Negro... Bem menor... A opção é deixar senhoras bondosas como aquela que viu ontem se encarregarem de morrer te protegendo. Não acredito que sejas do tipo que se deixaria proteger por senhoras, ou seria?

– ...

– Vou lhe dar tempo pra pensar, você têm vinte e quatro horas, depois disso, venho buscá-lo ou assistir o resultado de sua decisão. Até lá alguns emplumados virão visitá-lo, pois eles já o procuram, decida o que melhor lhe convier, mas arque com a conseqüência de seus atos... Livre Arbítrio é o que há de mais sagrado...



A Sombra não deu tempo de Jonas perguntar nada mais. Esgueirou-se rápida como água em enxurrada pelo chão e desapareceu na escuridão da noite que começara. Jonas ficou parado ainda alguns segundos, imerso na própria preocupação, literalmente entre a cruz e a espada. E ele não sabia sequer manejar ambas. O jovem vagou sem rumo pelo cemitério ainda por mais duas horas, quando decidiu observar sua cova. Seguiu um de seus familiares que ainda estava no lugar arrumando a papelada e viu que seu corpo fora enterrado nos arredores do cemitério, quase nos muros, em uma cova rasa coberta apenas por um tampo de cimento sem identificação. Apesar de um ou outro coveiro ainda terminar de vedá-lo, era óbvio que quando seu corpo esfriasse e a família esquecesse a cova seria reaberta, seu corpo vendido a alguma faculdade e seu jazigo reaproveitado. "Simples comércio...", indagou.

Decepcionado com tudo que via e percebendo que não ganharia mais nada estando ali, Jonas pegou outra carona em um ônibus e recomeçou sua viagem de volta para seu único ponto de referência naquele mundo novo, eu recém conhecido amigo Adalberto. Durante o caminho teve a certeza que era seguido de perto por alguma coisa desconhecida, mas não conseguia ver nem ouvir nada. Então algo lhe tocou os ombros. Era uma senhora de aparência de pelo menos 90 anos e com os olhos completamente negros e fundos.

– Diga logo! Diga! – Berrou a senhora.

– Hã! O que? – Disse Jonas, sem entender nada.

– Diga! Diga! Fale logo pra eles pararem!

– Eles quem! De quem está falando!

– Eles! Diga logo! Eles vão me levar!

– Quem? Quem vai te levar?

– Eles! Eles!



Um imenso jato de luz atravessou o ônibus, cegando Jonas completamente. Uma sensação de paz e conforto como nunca sentira antes percorreu toda a sua alma, como se estivesse nascendo novamente e livre de todos os seus pecados. Escutou um bater leve de asas e teve a impressão de escutar harpas tocando. Era uma sensação maravilhosa e ao mesmo tempo, lá no fundo, causava-lhe um pavor proporcional ao conforto momentâneo. Jonas esforçou-se para abrir os olhos e quando conseguiu estavam ele e a senhora caídos no meio da Avenida Brasil, próximo a entrada para o elevado que levava a Ponte Rio Niterói. O desconforto era absurdo, pois a cada segundo uma série de veículos literalmente os atravessavam em alta velocidade e Jonas em frações de segundo era capaz de ouvir e sentir tudo que se passava pela cabeça dos ocupantes de todos esses veículos.



"Tenho que pegar essa estrada de novo?", pensava uma mulher de nome Júlia, no auge de seus 32 anos.



"Hoje vou me casar, estou feliz demais!", pensava Aderbal, aos 42 anos dentro de um ônibus que transpassou Jonas.



"É hoje que eu mato aquela cadela... Ninguém me trai!", passava pela cabeça de Raimundo, um nordestino de 40 anos que levava consigo um revólver e muito ódio no coração.



"Eu queria aquela bola, eu queria ela!", berrava Raquel, de 4 anos, reclamando pelos pais não terem parado na estrada pra pegar uma bola de futebol abandonada.



E mais uma infinidade de pensamentos em sua maioria pútridos demais para sequer serem lembrados por Jonas. Com dificuldade Jonas se concentrou em si mesmo e começou a ignorar essas invasões involuntárias. Olhou para os lados e viu a velha senhora de joelhos, contorcendo-se em dor e arrancando os próprios cabelos. O jovem fez menção de ajudá-la, mas quando faltavam poucos passos para isso, um enorme par de asas se colocou entre ele e a senhora.

– Dona Ieda? – Disse a voz, poderosa e ao mesmo tempo afável.

– Saia daqui! Vocês não vão me levar! – Berrava a Senhora, arrancando mais e mais cabelos.

– Não faremos nada de mal a senhora, somente quero conversar... Ele me mandou para conversar com a senhora.

– Cale-se! Passei a vida inteira naquele asilo rezando pra depois... Pra depois... – Dona Ieda começou a chorar copiosamente, encolhendo-se no chão como um feto. – Ele me abandonou por causa dela... Por causa dela...

– A senhora precisa se livrar desse ódio, dona Ieda. – Disse a voz, mais calma ainda. – Entenda, sua filha apenas queria o seu melhor, ela...

– Cale-se! O melhor para mim era estar com ela! Sempre com ela! – Berrou a senhora, ríspida.

– Nem sempre o que queremos é o melhor para nós...

– Cale-se! Eu vou ficar ao lado dela para sempre! Dela e daquele maldito marido dela... Como eu o odeio!



Antes que o ser angelical pudesse segurar nas mãos da senhora, ela se levantou e se jogou num carro em alta velocidade, desaparecendo em questão de segundos. Jonas não entendia absolutamente nada daquilo que estava acontecendo, quando fez menção de perguntar, o próprio ser alado lhe respondeu.

– Sim, sou um anjo... Da guarda, pra ser mais específico. – Respondeu o Anjo.

– Vocês existem? Realmente existem anjos da guarda? – Questionou Jonas, como que desperto de um transe.

– Existimos e tentamos ajudar, mas não podemos fazer nada que não nos seja permitido, como viu...

– Quem é essa senhora?

– É uma pessoa que morreu imersa em muita dor e ressentimento e que agora que deveria se livrar do sofrimento decidiu impô-lo a sua filha, independentemente de qualquer alma caridosa que tente convencê-la do contrário. É a vida carnal que se tornou mais forte que a alma... Apego.

– Já ouvi sobre isso.

– E você, Jonas, porque está ainda aqui? Já deveria ter subido há muito tempo... Não vejo apego em você, apenas muita dúvida. Cuidado com suas escolhas, apenas posso dizer isso a você.E aconselho-o a seguir a luz quando puder. Até mais ver... – Disse o Anjo, começando a voar.

– Para onde vais? – Perguntou Jonas.

– Atrás de dona Ieda, ela está tentando chegar a casa da filha... Quero convencê-la a desistir disso antes. Boa sorte em sua jornada. Ah, se quiser chegar a seu destino rápido, basta apenas que deseje muito...



"'Desejar'? Como assim 'desejar'?", indagou Jonas, enquanto via o anjo desaparecer no horizonte. Se o anjo queria lhe ensinar algo, não conseguiu. E Jonas nem se preocupou com as palavras finais do anjo, e apenas providenciou em poucos segundos um novo ônibus para si. Pelo menos daquele ponto da Avenida Brasil as opções de transporte eram maiores que próximo ao cemitério. Com isso acabou chegando rapidamente a Marina da Glória, onde em questões de minutos foi ter novamente com seu amigo Adalberto.

Adalberto também não entendeu as palavras do anjo e aparentemente não levou a sério as palavras da Sombra. Parecia até mesmo desconhecer ela totalmente, dizendo somente ao garoto para escolher com sabedoria seu próprio caminho, independentemente de ameaças. "A fé remove montanhas, lembre-se sempre disso.", disse Adalberto, afirmando sem enrolar que Jonas só precisava de fé em si próprio e em Deus para conseguir as coisas. Só que Adalberto não sabia que Jonas não era um jovem tão próximo de Deus quanto o velho fantasma imaginava.

E a noite virou dia e o dia virou novamente noite. A hora de dar a resposta a sombra havia chegado. Ao contrário do que fora dito, a luz não aparecera em nenhum momento e Jonas dava sinais que desistiria de toda essa dúvida cruel e seguiria sua não-vida em outro lugar. Foi quando ele chegou. Jonas e Adalberto foram tomados de súbito de uma sensação de perigo eminente e não tardou muito para que um cavalo completamente negro chegasse ao lugar tendo como seu dono o fatídico Cavaleiro Negro. Jonas fez menção que tentaria correr desesperadamente para salvar sua pele, mas quando o primeiro pé se mexeu, o cavaleiro negro já estava diante deles dois.

O cavaleiro negro trajava uma imponente couraça de placas negras completamente sem brilho adornadas com detalhes demoníacos em azul escuro. Seu elmo era completamente fechado permitindo-se somente que um brilho opaco branco pudesse ser visto e a silhueta quase oculta de seu rosto. As ombreiras da armadura eram largas e mostravam que o corpo do cavaleiro negro era muito forte, exalando confiança em si mesmo. Tinha presa na cintura uma enorme espada negra com seu cabo feito aparentemente em ossos e um crânio de onde saía a lâmina. Uma capa de pele de algum animal completava seu visual demoníaco. Seu corcel era tão negro quanto sua armadura e usava uma armadura adaptada também negra. Pendurados no cavalo estavam um enorme machado manchado de sangue e um escudo com o relevo de um crânio, de onde eram expelidos vermes os mais diversos.

– Nem adianta correr. – Afirmou o cavaleiro negro, exalando puro enxofre de seu capacete. – Vou te encontrar aonde quer que esteja...

– Saia daqui garoto, ele não é páreo para a força da... – Interrompeu Adalberto, colocando-se corajosamente entre o cavaleiro e Jonas.


"Calai a boca, filho de Deus!", berrou o cavaleiro negro. A pestilência de sua voz era tamanha que afetou até mesmo o mundo dos vivos, fazendo inúmeros peixes aparecerem boiando mortos em questão de segundos. Atormentado e sentindo-se compelido a proteger seu santuário, Adalberto se jogou diante do cavaleiro negro que num movimento limpo de sua lâmina dividiu o espírito em dois. Adalberto caiu no chão gritando de dor e tentando de qualquer jeito juntar as partes divididas. O cavaleiro negro não demonstrou nenhuma piedade do velho espírito e cravou sua espada na cabeça de Adalberto. Deu-se então um enorme flash luminoso e quando o mesmo cessou, não havia o menor sinal de Adalberto, sequer resquícios de sua presença.

Jonas foi tomado por uma sensação de perda maior que qualquer sensação que tivera. Era horrível e indescritível a sensação daquele momento, de ver uma energia divina e até certo ponto infinita se dispersar de tal modo, como se nunca tivesse existido. Adalberto não teria sequer um corpo pra enterrar, sequer alguém que lembrasse dele que não Jonas e talvez duas ou mais pessoas, ainda assim a dor naquele ambiente era absurda, pois mesmo a morte dos humanos não era finita, e sim um recomeço. O que acontecera ali era definitivamente o fim. E tomado por uma fúria sem igual Jonas saltou sobre o cavaleiro negro disposto a qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que sentia em sua alma, até mesmo morrer em função disso...

– Idiota. – Sussurrou o cavaleiro negro.

Revelações de Jonas: Quarta Etapa da Viagem

Quarta Etapa da Viagem
A Chegada


Ainda era o dia 23 de outubro de 2005 quando Jonas acordou sem dor. Sentiu um súbito alívio ao se levantar e constatar que as marcas de bala haviam desaparecido. Estava novamente de pé, em pleno Largo dos Guimarães, sentindo-se bem como não se sentia há muito tempo. Mas a sensação passou ao escutar sirenes. Viu duas viaturas da polícia militar descerem a rua em alta velocidade e parando justamente no mesmo arbusto onde Jonas se lembrou que deveria estar. Muitas pessoas se aglomeravam em torno de algo que Jonas não conseguia ver, mas em seu íntimo sabia que não seria a melhor visão de todas.

Incapaz de resistir à própria tentação, Jonas se esgueirou entre as pessoas da multidão até se dar conta que não precisaria fazer isso, elas simplesmente o atravessavam. Antes que pudesse compreender em definitivo sua situação viu a si mesmo caído no chão. Seu corpo estava completamente parado e sem vida, os orifícios dos tiros que levava já tinham quase que coagulado e uma poça de sangue cobria o chão. Seu corpo segurava uma arma, de calibre 38, e ao seu lado estava seu executor, o Cavaleiro Negro. Jonas sentiu um novo calafrio quando se deu conta que o Cavaleiro Negro o conseguia ver, lhe olhava diretamente nos olhos.

"Desapareça", escutou em sua mente e de imediato obedeceu. Correu sem se preocupar com as condições físicas do local e foi atravessando inúmeras paredes até que de repente se chocou com algo sólido e caiu no chão devido à violência do impacto. Coçou os olhos por causa da dor e observou exatamente qual era o local onde havia se chocado. Era com uma casa de candomblé. Estranhou que não pudesse atravessar suas paredes e tateou procurando uma brecha, e a encontrou exatamente na porta do local. A atravessou curioso, e então foi tomado de assalto por uma visão estarrecedora.

O outro lado do muro daquela casa de candomblé dava para um pequeno pátio com bancos de madeira velha e algumas estátuas de santos da religião. Até aí, nenhuma surpresa, pois pessoas provavelmente iam naquele lugar procurando respostas ou algo semelhante. O que lhe causou a surpresa foi ver algumas pessoas que o viam e acenavam para ele, literalmente mescladas a outras que estavam sentadas nos bancos esperando atendimento. Outra pessoa, uma senhora negra aparentando quarenta anos vestindo túnicas brancas e de aparência bondosa, veio de dentro da casa e tocou Jonas.

– Eu sinto que esse não é seu lugar... – Disse a mulher. – Sente-se confuso?

– Como a senhora me vê? Onde estou? – Disse Jonas.

– No inferno! – Berrou um das pessoas mescladas a outras. – Só esqueceram de ligar a fornalha!

– Não meu jovem, ignore a revolta dele... Estamos do outro lado. – Interrompeu a mulher, tocando no ombro de Jonas e trazendo-o uma sensação profunda de paz.

– Outro lado de onde? Porque não consegui atravessar as paredes daqui?

– Estamos mortos, para os que dependem da matéria. E não atravessamos essa parede por força da fé.

– Fé! Outra vez essa palavra... – Praguejou Jonas, pensando seriamente em ir embora.

– Tenhas calma, jovem, quando vierem lhe buscar tudo vai se explicar...

– Quem?

– Nossos irmãos encarregados disso. Quando a luz aparecer caminhe em direção a ela e encontrará seu caminho. Não se torne como nossos irmãos aqui presentes que por falta de força de vontade não conseguiram se desgarrar de seus vínculos terrenos.

– Porque me agarraria?

– Fará, disso tenho a certeza, dado que quando encontrar sua família terrena e tiver plena consciência que jamais terá nada do que tem na terra...

– Nunca tive nada. – Praguejou novamente.

– Nunca? E o amor de seus pais? De seus amigos? Não pode levar a presença deles contigo... Ou mesmo apego por algum bem ou bens. Alguns estão agarrados a terra não por questões afetivas, mas por simples apego material. Uma moto que compraram, uma casa que se esforçaram pra construir, coisas mundanas. Sempre há algo que deixamos para trás na Terra.

As palavras da mulher bateram forte no coração de Jonas. Nesse exato momento deu-se conta de tudo que deixara para trás e das coisas que abandonara ainda em vida. Lembrou-se de toda a revolta que tinha dentro de seu coração pela situação financeira da família e de toda a inutilidade disso. Percebeu finalmente o esforço de seus pais em dar a ele condições mínimas de dignidade, quando na época em que receberam a indenização decidiram ao invés de comprar um carro – como Jonas queria, para curtir a vida. – optaram por um apartamento próximo do trabalho de seu pai. Percebeu o quanto fora ingrato em entrar na vida do crime ao invés de ter estudado e retribuído tudo que lhe fora dado de coração. E a pior coisa de todas, tinha completa noção que jamais poderia agradecê-los por isso, pois abraços seriam inúteis naquele momento. E Jonas chorou.

– Sinto alegria em ver que ao menos reconhece seus erros... Independente de quais foram eles. – Disse a mulher. – Meu nome é Glória, e o seu?

– Jonas. – Disse, enxugando as lágrimas e com a voz embargada.

– Bonito nome... Bem, infelizmente não posso ser muito útil a você nesse momento. Como pode ver a nossa volta, tenho muitas pessoas em uma situação pior precisando de muita ajuda, e você é inteligente para resistir a tentação que aparece a cada minuto em seu peito.

– Tentação?

– Sim, de tentar abraçar e agradecer seus pais, independentemente de qualquer consequência.

– Não, dona Glória, desse mal não sofro mais...

– Graças a Deus.

Jonas sentiu certa inquietação ao escutar o nome de Deus naquele momento. Uma sensação de revolta tomou seu peito ao mesmo tempo em que dona Glória se afastava dele e voltava a seus afazeres. Perguntava-se onde estaria Deus naquele exato momento. Gostaria de encontrar com Ele e dizer-Lhe boas verdades. Entender por que deixara tudo aquilo acontecer com ele, toda aquela revolta e todo aquele sonho que lhe ampliara sua visão e reduzira seu discernimento. Cansado de ficar parado naquele lugar estranho, saiu porta a fora e começou a caminhar aborrecido.

Seguiu acompanhando a linha do bonde no sentido do centro da cidade até a Estação Covanca de Bondes, onde graças a uma ruela de pedestres localizada nas proximidades chegou a rua Cândido Mendes na Glória. Jonas já fizera esse caminho algumas vezes, quando ia tomar banho na praia do Flamengo, e dessa vez faria o mesmo. Descendo a rua Cândido Mendes atravessou a Rua da Glória e avançou reto, indo em direção as proximidades da Marina da Glória. Ali um pensamento esguio passou pela sua cabeça e foi direto até a ponta do píer mais próximo. "Se Ele pôde, porque eu não poderia?", pensou Jonas e colocou seu pé esquerdo nas águas turvas da Baia de Guanabara. Nada acontecera. Seus pés afundaram na água e se molharam, somente isso.

– Falta um pouco mais de desapego, jovem. – Disse um marinheiro, vestindo roupas típicas e antigas, saindo de dentro de um dos barcos.

– Você? – Espantou-se Jonas. – Como?

– Estou morto, oras... Que nem você! Vira e mexe vem algum espertinho e tenta repetir aquele trecho da bíblia aqui, e sempre acabam mais molhados que peixe. – Riu o velho, estendendo a mão para Jonas amigavelmente. – Prazer, meu nome é Adalberto, qual a sua graça?

– Jonas.

– Vejo que é jovem, pelo jeito foi mais uma morte trágica, não foi?

– Como sabe?

– Estou aqui nesse cais desde 1825 quando me afoguei bêbado depois de uma farra de marujos, acompanhei a evolução, opa, INvolução da raça humana nesse cais por mais de cem anos e hoje em dia tenho visto muitos jovens que nem você morrendo antes da hora, se é que existe hora certa pra morrer...

– E porque está aqui a tanto tempo? Apego?

– Opção. Preferi continuar na Terra, somos livres para fazermos o que quiser. Apesar dos conselhos de nossos conterrâneos, preferi evoluir aqui mesmo, cercado pelo meio em que sempre vivi... Acabei me tornando protetor dessas águas. Além da brincadeira com a água, o que lhe trouxe aqui, Jonas?

– Pensar na vida... Aliás, além vida. Senti muita raiva e agora queria extravasar um pouco mergulhando...

– Raiva de quem?

– De Deus... Sabe de algum modo sinto que Ele é o culpado por minha condição, ele deixou coisas acontecerem comigo e com aspectos que me cercam que...

– Desculpa interromper, mas você está redondamente enganado.

– Por que estou enganado?

– Porque está. Coloca uma coisa na sua cabeça, só uma palavra: livre-arbítrio.

– Heim?

– Isso mesmo, você fez suas escolhas, Deus deu algumas opções, e acredito que você sabe quais são, mas Ele não escolhe. Você escreveu seu destino, Deus apenas dá o livro e o lápis. Está escrito.

Jonas agradeceu ao marinheiro pela lição e sentou-se no cais para observar o horizonte. Sentia a brisa do mar e todo o conforto que ela trazia. Não estava mais com a raiva de antes e nem com sua tristeza, apenas um pequeno resquício de mágoa por ter constatado que somente a sua própria morte o fez perceber nuances de sua própria vida e a quantidade impressionante de erros que cometeu desde que despertara do coma, aliás, desde que ele e sua bicicleta se chocaram contra um caminhão. Passou todo o dia e a noite sentado, observando o horizonte, como se estivesse em transe de tão calmo. No dia seguinte sua serenidade foi interrompida por Adalberto, chamando-o com extremo interesse.

– Hei! Jonas vem correndo até os escritórios... Tenho que te mostrar algo rápido!



Jonas correu o mais rápido que conseguia, e isso era bem rápido, e foi até um pequeno escritório que ficava na parte administrativa da Marina da Glória. Duas mulheres, provavelmente que trabalhavam ali, discutiam a respeito da violência da cidade. Uma delas apontava para uma notícia e disse que tinha ouvido os tiros de perto, porque morava perto do Largo dos Guimarães. Imediatamente Jonas sentiu um arrepio na nuca e foi ver a página da internet mais de perto. Realmente, estavam justamente falando dele no jornal. Ao que parece Jonas havia ficado famoso do pior modo, morrendo de maneira trágica. Seu enterro, pelo que informava na notícia seria ainda nesse dia e até dizia o local. Algo palpitou na alma de Jonas.


A fama vem rápido... Infelizmente.


– Quando eu morri não tinha dessa parafernália não... Não fui citado nem nas fofocas das madames da corte... – Comentou Adalberto. – E olha que pra isso acontecer era difícil.

– Você acha que devo fazer isso? – Perguntou Jonas.

– Isso o que? Assistir seu enterro?

– Exato.

– Olha, se eu fosse aquelas madames que pregam o desapego da carne, te diria pra não ir, mas você me parece um menino porreta, vai resistir a abraçar seus pais. Sabe o que acontece se tentar abraçá-los, né?

– Tenho idéia...

– Olha, já vi muita gente boa se perder assim... Quando um de nós toca um vivo com quem tinha laços muito fortes que não tenha dons causa um troço que chamo de "grude", porque é isso mesmo que acontece, você gruda num vivo e pra sair é um Deus nos acuda.

– Eu vi? Mas não é voluntário? Pensei que pra sair fosse só sair...

– Não é assim não, você toca e se vicia nos sentimentos da carne. Toda aquela volúpia de sentimentos a seu respeito se eleva muito e você acaba ficando viciado em vida material, que nem uma droga. Só que o dono do corpo tá lá e você não tem como possuir e nem ele te expulsar na maioria das vezes. Geralmente sai com o tempo, pois a pessoa te supera e vice-versa, mas...

– Mas o quê?

– Se a pessoa não ia com a sua cara, se ela queria teu mal e você gostava muito dela sem saber dos reais sentimentos dela.... Bem, você pode ser tomado pelo sentimento de vingança e aí é um mal pior que qualquer outra coisa... Você fica louco, transtornado só querendo que ela sofra o que está sofrendo por se sentir enganado. É ruim demais isso.

– E como se escapa disso?

– Geralmente com ajuda... As vezes acontece de desistir e partir, mas pior é quando a pessoa vai na intenção. Assim que descobre que pode tudo decide se vingar nos seus inimigos. Haja força nesses casos... Mas aí estou entrando demais na história e você tem muito tempo pra aprender isso.

– Queria saber mais...

– Procure um professor, sou apenas um marinheiro... Agora, você vai ou não no seu enterro?

– Acha que devo?

– Você decide, és o senhor de seu destino.

– Irei... Temo cair na tentação, mas vou do mesmo jeito.

– Boa sorte, aqui nos separamos.

– Não vem comigo?

– Não saio desse lugar, por coisa alguma no mundo...

Jonas não procurou entender os motivos desse simpático fantasma e pegou carona em um ônibus até chegar ao Cemitério do Caju. Precisava ver seus pais uma última vez, nem que fosse para se despedir do jeito que desse, sem tocá-los. Sua experiência prévia com o Rio cinzento já lhe fazia temer suficiente tentações, e desse acontecimento nenhum de seus recém encontrados fantasmas parecia ter idéia. Jonas inicialmente pegou um ônibus que saltou na Praça 15 e depois pegou o 290 com destino ao Cemitério do Caju. O ônibus estava deserto, exceto pela presença do motorista e de uma funcionária da empresa de ônibus que durante a viagem toda reclamava de sentir calafrios sempre que olhava para o lugar onde Jonas se sentara. Jonas apenas riu da situação e dos comentários e deixou o tempo passar. Do mesmo modo que ocorrera na casa de candomblé, Jonas só conseguiu atravessar as portas do cemitério, suas paredes eram intransponíveis. E somado ao fato da área do cemitério do Caju ser gigantesca, ele somente conseguiu encontrar seus familiares e amigos depois de mais de três horas de procura.

A capela era pequena, algo bem típico dos cemitérios mais baratos. Apenas o espaço do caixão e bancos de cimento para os presentes ao enterro. O padre entrava na capela do mesmo modo que os demais, sem nenhuma entrada especial que fosse. A mãe de Jonas chorava copiosamente sobre o corpo de seu filho. Intercalava com essa tristeza momentos de profunda revolta, onde xingava de toda forma o sistema e a polícia, principalmente a polícia, que lhe arrancara seu filho. O pai de Jonas parecia mais controlado, mas por dentro estava completamente revoltado, e mais consigo mesmo, pois a seu ver falhara em dar ao filho condições morais para ter escolhido o caminho certo e não o errado. Jonas via tudo aquilo e falava sem sucesso com os pais. "Estou aqui! Pai! Mãe!", gritava sem sucesso, sendo ignorado e às vezes tendo a impressão de que sua mãe sofria mais quando ele falava. Por um instante pensou em abraçar a mãe, mas as palavras do velho marinheiro, muito mais eficientes que as de Glória, o fizeram parar antes que fizesse qualquer besteira.

Cansado de sofrer, Jonas saiu da capela e deixou sua família para trás, não fazia mais sentido tudo aquilo, nada daquilo. Foi quando se sentiu profundamente observado. Jonas correu as lápides e o terreno do cemitério com os olhos, deu pulos e subiu em caixões para ver se conseguia encontrar seu observador. Nada. Assim que desistiu de procurar escutou o som de algo escorrendo para próximo dele. Era a sombra.

– Precisamos conversar, Jonas... – Disse a Sombra.