Revelações de Jonas, Conspiração: Sexta Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Sexta Etapa do Plano
Pesadelo

Fernando e Renato eram puros abraços e beijos quando chegaram finalmente ao apartamento deles, na Rua Siqueira Campos, em Copacabana. Renato estava maravilhado pelo amor de sua vida ter conseguido se safar desse problema terrível. "Nunca mais comerá um camarão sequer, nem mesmo o cheiro dele.", prometia a Fernando, entre um beijo e outro. A euforia de ambos, principalmente de Renato, era tão grande que nem mesmo repararam nos olhares preconceituosos de seus vizinhos quando passaram pela portaria do prédio deles trocando carinhos. Em poucos minutos estavam no apartamento deles. Roupas, sapatos, lençóis emaranhados e travesseiros voaram pelo quarto durante as horas românticas que se seguiram. Passado todo o momento de amor, Renato se levantou e foi tomar uma ducha quente para tirar o suor e o cheiro ruim que isso resultaria. Já bastava o cheiro de sexo deles.

– Vem tomar banho comigo? – Convidou Renato, beijando Fernando na testa.

– Não, vou ficar relaxando na cama um pouco... Preciso me acostumar. – Respondeu Fernando, pensativo.

– Se acostumar com o que?

– Em ser um milagre... Era pra eu estar morto, e estou aqui, ao seu lado, e acabamos de transar como não transamos há tempos.

– E que mal há nisso?

– Não sei...

– Então fica pensando aí, que eu vou tomar banho... Estou te esperando.


Renato deu mais um beijo em Fernando e foi direto para o banheiro. Fernando continuou parado, pensando que tinha algo de errado, ele não se sentia ele mesmo. Até mesmo de seu amor por Renato duvidava, ainda assim não conseguia compreender o porque de toda essa dúvida. Havia algo estranho naquele ambiente todo, não se sentia ali, não conseguia compreender o que estava faltando. Sem obter respostas além de escutar Renato contando feliz no banheiro, Fernando se levantou da cama e foi pegar um copo de água na cozinha.

O apartamento dos dois era um local extremamente confortável para duas pessoas jovens. Graças as condições financeiras dos familiares de ambos, conseguiram juntar dinheiro pra alugar aquele apartamento. Um quarto, uma sala, um banheiro com banheira ampla e uma cozinha não muito pequena, mas longe de ser grande, no estilo americano. Jonas foi direto pra geladeira e serviu-se de água, então ele escutou o som de um trovão. "Renato! Vai chover!", berrou, sem resposta. Estranhamente o som do chuveiro cessara depois do trovão, tudo estava silencioso demais. Fernando deixou o copo sobre a bancada da cozinha e quando saiu daquele local todas as luzes da casa se apagaram. "Agora falta luz... Deve ser alguma peça do Renato.", pensou, mas se deu conta que a caixa de força ficava na cozinha, logo, Renato dessa vez não tinha culpa.

Continuou caminhando desconfiado pela sala em direção a cozinha. Em paralelo, uma chuva de proporções absurdas começa a cair sobre a janela do apartamento, e vários trovões iluminavam todo o apartamento. De repente Fernando foi tomado pela sensação de não estar sozinho naquele lugar, e tinha certeza que não era Renato. Correu imediatamente para o banheiro, procurando por Renato. O banheiro era pequeno, no formato retangular, tinha quatro metros de profundidade e dois metros e meio de largura, Fernando conhecia essas medidas por ter sido ele a azulejá-lo todo quando vieram se mudar. Os azulejos eram brancos e iam do chão até o teto. Do lado a esquerda de quem entra ficava um pequeno armário com pia embutida, ao lado da pia ficava a janela basculante. Do lado oposto ficava a privada e no final do banheiro tinha um box amplo, pois os dois tinham o hábito de tomarem banho juntos. Quando Fernando chegou ao banheiro o chuveiro estava ligado e aparentemente Renato estava no box tomando banho. Por causa da temperatura da água, estava difícil ver alguma coisa entre a névoa, mas Fernando conseguia identificar que Renato estava lá. Porém, estranhamente sentiu um calafrio.

"Rê, tudo bem?", perguntou Fernando, sem resposta. A figura reagiu timidamente ao chamado, aparentemente ignorando. Determinado a dar um basta no seu medo, Fernando avança em direção do box e o abre. Não tem nada no box, nem mesmo o chuveiro está ligado, o som que escutava era da chuva que caía torrencialmente na janela do banheiro. De repente um som vem do quarto e Fernando leva mais um susto, parece o de algo caindo no chão. Ele corre até o quarto e não encontra nada. Cansado dessa brincadeira sem graça Fernando senta na cama e olha para a Janela. Uma palavra está escrita na janela, como se feita recentemente com dedos.


Uma palavra, um choque...


"SanoDji", balbucia Fernando, dando passos para longe da janela e sentando-se na cama. Ele continua repetindo o nome diversas vezes e uma dor de cabeça enorme começa de imediato. Ele não consegue se concentrar e nem esquecer essa palavra, que finalmente percebe não ser uma palavra, e sim um nome. SanoDji é um nome, mas Fernando consegue entender de onde sente tanta familiaridade e nem porque sente-se mal ao pronunciá-lo, uma preocupação enorme toma conta dele. Ele abaixa a cabeça para respirar e quando torna a levantar, dá de cara com uma enorme sombra negra. A sombra não parece ser de Fernando e permanece parada por segundos que parecem horas. Fernando sente-se compelido a levantar e a encarar ela de frente, e quando se levanta a sombra vem em sua direção e o chama de Jonas. Novamente Fernando escuta esse maldito nome. Ele não entende porque tantas vezes escutou esse nome e porque o persegue de tal forma, pois apesar de aparentemente causar certa repulsa escutá-lo, ao mesmo tempo causa certo saudosismo.

– Precisamos conversar... – Diz a Sombra, com uma voz serena e horripilante.


Um braço negro surge da sombra e estica até o pescoço de Fernando tão rápido que ele não tem reação. Fernando é comprimido contra a parede do quarto e se sente completamente acuado, então segura a mão negra da sombra e tenta afastá-la antes que o mate, quando faz isso leva um susto. Ele vê que suas mãos estão completamente brancas. E algo vem a sua mente, ele não era negro, ele era branco. Ele não era Fernando, era Jonas. Mas ele também é Fernando, e se não for Jonas, quem Fernando é? Imerso em desespero ele olha em volta procurando algo com que se separar da criatura e vê seu corpo desmaiado na cama... Se aquele é seu corpo, quem seria? A confusão é tão grande que Fernando grita desesperado. De repente violentos tapas atingem o rosto de Fernando. Sente-se abrindo os olhos e a primeira coisa que vê é Renato, ao seu lado, com um semblante preocupado.

– Tudo bem, Fê? – Pergunta Renato, enquanto Fernando se senta na cama. – Você estava gritando muito durante o sono...

– O que aconteceu? – Pergunta Fernando, ainda em choque.

– Quando fui tomar banho você apagou na cama, dormiu que nem um anjo... – Respondeu Renato, reparando que ao dizer "anjo", o rosto de Fernando fez uma careta. – Acho que teve um pesadelo dos brabos... Quem é Jonas?

– Heim? – Escutar esse nome pela segunda vez na noite dá um novo susto em Fernando, que desperta de vez. – Jonas?

– É, Jonas? Por acaso está pensando em outro? – Riu Renato, tentando descontrair o clima tenso que a menção do nome causara.

– De forma alguma... Só que desde que acordei no hospital, tenho escutado esse nome... Sei lá.

– Será que algum enfermeiro tinha esse nome e você escutou muitas vezes no coma? Pode ser isso... Você nunca foi de ter pesadelos.

– Nunca?

– Nunca, não se lembra...


A afirmação de Renato soou estranha para Fernando. De algum modo se lembrava de uma senhora nordestina lhe acudindo em diversas noites. Fernando chorava enrolado no lençol e essa senhora dizia-lhe para que fizesse uma prece que os sonhos ruins acabariam. Fernando sentia muita saudade dessa mulher, mas sequer conseguia lembrar seu nome ou de onde a conhecia, apenas sentia muita saudade. Renato, desistindo de tentar compreender seu namorado, levantou-se da cama e foi até a cozinha buscar copos de água para ambos, já Fernando permaneceu sentado na cama imerso em suas preocupações. Minutos depois Renato retornou com os copos d'água e depois de beberem, Fernando voltou a falar:

– Sabe, quando fui no neurologista, ele me disse que eu perderia a memória de determinadas coisas, mas não sabia quais... – Comentou Fernando. – Me lembrei agora de minha infância, e vi uma senhora nordestina cuidando de mim enquanto tinha pesadelos.

– Nordestina? Impossível... – Questionou Renato. – Não lembra? Foi criado por seus pais, e eles podiam ser tudo menos nordestinos. Nem babá você teve.

– Estranho, a memória é tão perfeita que só me falta saber o nome dela...

– Deixa disso, Fernando, vamos dormir.

– Do que me chamou?

– Fernando, ué.

– Mas meu nome é Jonas.


Renato levou um susto ao escutar essa frase. "Fernando está pirado...", pensou, enquanto corria em direção ao telefone. Bem que o médico os advertira que distúrbios desse tipo poderiam acontecer. Pegou o telefone sem fio na sala e voltou para o quarto. Fernando estava agora de pé, na janela, fazendo movimentos com os dedos no vidro. Renato parou o que estava começando a fazer e prestou muita atenção em Fernando, se algo estava errado precisava primeiro entender o que acontecia. Passados alguns segundos na janela, Fernando foi calmamente até a sala, sempre seguido de perto por Renato, pegou uma folha de caderno e uma caneta em uma mesa e sentou-se na mesma. Escreveu algo bem rápido por alguns minutos e voltou para o quarto. Renato, estranhando tudo aquilo, pegou a folha de caderno discretamente e foi até onde Fernando fora. Para surpresa de Renato, Fernando estava agora dormindo tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. "Sonambulismo, só me faltava essa...", pensou Renato, colocando a folha de caderno em cima do criado-mudo da cama e deixando pra ler o que Fernando escrevera no dia seguinte.

A noite terminou rápido, e na manhã seguinte a primeira coisa que Renato fez foi perguntar a Fernando se ele lembrava de alguma coisa da noite anterior. Fernando estranhou a pergunta e disse apenas que se lembrava de ter tido um pesadelo, ter sido acordado por Renato e de depois ter dormido normalmente. Imediatamente Renato sacou a folha escrita e lhe mostrou. Fernando observou a folha estupefato e novamente amaldiçoou esse nome Jonas, algo estava acontecendo com ele e não conseguia entender o que exatamente ocorria. Fernando leu a folha diversas vezes e compreendeu que era um recado, preocupante, para ele, mas ainda não entendia direito o que era Jonas. Fernando e Renato eram pessoas levemente descrentes para assuntos estranhos, como mensagens escritas durante ataques de sonambulismo, só que os últimos dias tinham sido demais para eles. De comum acordo decidiram que teriam que ir a algum lugar que pudesse ajudá-los nesse problema, mesmo que não fosse o hospital ainda.

Um recado simpático...


– Ótimo, temos um desejo, mas pra onde vamos? – Perguntou Fernando.

– Para o hospital? – Respondeu Renato.

– Não, e mesmo que fôssemos, o resultado final do exame só sai semana que vem... E haja dinheiro pra tanto hospital. – Afirmou Fernando.

– Não sei então, podemos ver com o porteiro, ele deve saber onde tem alguma coisa que saiba como nos ajudar... – Disse Renato, sem saber se estava correto.

– Ele não é crente?

– Não... Esqueceu? Tá vendo coisas de novo?

– Coisas?

– Sim, ontem você disse da nordestina, agora nosso porteiro macumbeiro virou crente...

– Nordestina? Como assim? – Nesse momento Fernando se lembrou da senhora, e teve uma revelação. – Lembrei!

– Lembrou do que?

– Essa senhora que você falou... É a mãe desse Jonas!


Renato silenciou-se de vez e saiu da cama. Precisava tomar um banho e relaxar, era o segundo devaneio de Fernando em menos de doze horas, e estava resistindo bravamente para não ligar pro Doutor Eduardo. "Talvez algumas pílulas de prozac resolvam essa crise... Ou uma caixa inteira.", pensava Renato enquanto ligava o chuveiro. Fernando percebeu que seu amado estava nitidamente preocupado com sua saúde mental e pensou em fazer-lhe algum agrado. Levantou-se da cama e ligou o rádio relógio, colocando-o em uma estação de rádio que tocava música clássica. Depois caminhou para o banheiro e sorriu maliciosamente para Renato, que já estava aos poucos se envolvendo com o clima.

– Vamos relaxar um pouco... – Disse Fernando, sentindo um misto de agonia e prazer estranho, mas que preferiu ignorar em prol de Renato.

Revelações de Jonas, Conspiração: Quinta Etapa do Plano


Revelações de Jonas: Conspiração
Quinta Etapa do Plano
Tirolez?

Albano era uma pessoa de poucas palavras... Que lembrava muito.

Era um homem magro, alto, com traços europeus. Isso contrastava nitidamente com seu sotaque nordestino, mais especificamente do litoral do Sergipe. Ele era descendente de uma família holandesa que se estabeleceu no país durante a invasão da Holanda ao nordeste. Acabou vindo morar no bairro do Leme, Rio de Janeiro, de um modo diferente do tradicional em virtude da profissão de seu pai. Seu pai era piloto de testes de aviões da FAB e por motivos de força maior teve que ser transferido para a base do III Comar, localizado na Praça XV. Esse fato aconteceu em fevereiro de 1985, quando Albano ainda tinha dez anos. A maior parte de sua infância aconteceu dentro do quartel, pois aficionado pela vida e imagem perfeita do pai, sempre o acompanhava no serviço.

Em virtude disso deu seu primeiro tiro aos doze anos com uma arma surrupiada de um soldado dorminhoco na base aérea. Seu pai soube de tudo na hora do disparo (não era surdo, assim como todos do quartel). Albano tinha dado um tiro certeiro em uma latinha de refrigerante a cem metros dele, que colocara numa mureta da base. A pontaria do jovem acabou salvando-o de uma bronca do pai e, por sua vez, dos superiores e garantindo-lhe uma vaga única na Academia de Tiro das forças armadas. E isso com apenas doze anos.

Quando completou quinze anos foi campeão brasileiro em uma competição não-oficial militar de tiro, nas categorias Alvo Estático e Alvo em Movimento. Ganhou de prêmio um curso de tiro profissional, pago pelo dinheiro arrecadado pelo concurso e foi realizá-lo nos Estados Unidos. Lá aprendeu a manejar diversos tipos de munições e os mais diversos tipos de situações que poderia passar tanto com armas manuais quanto com automáticas. Voltou com dezessete anos de sua viagem e fez prova para fuzileiro da força aérea. Foi quando seu mundo até então perfeito deu suas caras.

Seu pai havia sido deslocado, em função da idade, para funções burocráticas dentro da Força Aérea e sua mãe estava cada vez mais preocupada com ele. Albano não conseguia entender o que acontecia, em meio a volúpia adolescente, e deixou escapar diversos sinais de que algo estava errado. Primeiro seu pai adquirira o hábito de beber, e depois disso sua mãe começou a aparecer com diversas marcas pelo corpo que diziam ser provenientes de quedas as quais Albano nunca testemunhava. Mas sua mãe sempre lhe dizia para orar e para pedir proteção a Deus, pois enquanto tivesse fé, Deus os protegeria de tudo. E como um bom filho, Albano sempre acompanhava sua mãe na igreja e orava, estranhando apenas a ausência cada vez mais constante de seu pai. Era algo doentio, a fé de sua mãe aumentava na mesma proporção que a ausência de seu pai, e simultaneamente viu várias vezes sua mãe dando muitas somas de dinheiro nas mãos dos pastores da igreja para providenciar milagres que Albano não entendia quais eram.

Um dia Albano retornou de seu quartel, já com vinte anos de idade, e viu uma cena que o deixaria chocado. Sua mãe estava sentada no sofá com os olhos voltados pra cima. Em seu treinamento já tinha visto pessoas mortas antes e ele sabia o que estava acontecendo, mas nada o prepararia para chegar em casa e ver sua própria mãe nesse estado. Albano tentou ainda reanimá-la sem sucesso, foi quando percebeu que o pescoço dela tinha sido esmigalhado com muita força. Imediatamente pegou o telefone e ligou para a polícia, mas o telefone estava mudo. Sentindo uma péssima sensação, Albano se levantou e correu para a rua, tentando procurar algum vizinho. Foi ajudado pela vizinha do lado, que disse que tinha escutado uma violenta discussão entre os pais de Albano e que no final de tudo se silenciou e então o pai dele saiu apressado de carro.

Albano não queria acreditar nos fatos que socavam sua moral e sua integridade mental, e se levantou mentalmente. Pediu a vizinha para que o ajudasse chamando a polícia e disse que desconfiava de onde o pai estivesse, e que o traria para obter explicações. Pegou um táxi que o levou rapidamente para o local onde provavelmente seu pai estaria, o III Comar. Assim que chegou foi avisado pelos soldados que seu pai chegara perturbado e que estava dentro de um avião tucano que havia descido ali para fazer manutenção. Albano chegou no hangar correndo, mas só a tempo de ver o pequeno avião de acrobacias decolando rapidamente pela pista, sendo perseguido pelos mecânicos desesperados. Rapidamente Albano chegou até a torre de comando e solicitou a um dos controladores de vôo que tentasse falar com seu pai.

– Avião Tucano T-27, responda. – Disse o controlador. – Você decolou sem autorização da Torre, solicitamos retorno imediato ao local de origem. Câmbio.

– T-27 respondendo. – Disse o pai de Albano, do outro lado.

– Pai! Volte! – Berrou Albano, no microfone. – O que está fazendo? Enlouqueceu?

– Não filho, eu voltei ao normal... Um monstro como eu não pode viver em sociedade. – Informou seu pai. – Se você está aqui, viu o que fiz... Foi quando me dei conta do que deixei acontecer comigo mesmo. Deus me perdoe pelo que fiz, e pelo que farei. Câmbio, desligo!

Sem dar tempo de Albano falar mais nada, seu pai desligou o rádio em definitivo. Os radares do CINDACTA I ainda acompanharam a viagem do EMB-12 pelo radar até que ele desapareceu na imensidão das águas do oceano atlântico. Albano acompanhou tudo isso pelos radares com lágrimas nos olhos. Mesmo depois que o radar cessou de emitir informações sobre o tucano, Albano permaneceu parado no mesmo local, sem emitir reações. Preocupados com a saúde mental dos fuzileiros, os controladores de vôo chamaram uma equipe médica para ajudá-lo.

Dois meses de terapia se passaram no centro de saúde das forças armadas, em completa internação. Albano parecia ter se desligado do mundo nesse período, pois tudo aquilo que considerava mais sólido esfacelou-se como castelo de areia ao ser atingindo por uma onda do mar. Nessas semanas todas pensava na fé de sua mãe e de seu pai, em sua própria fé, e indagou-se onde estaria Deus nisso tudo. Sua resposta foi tão silenciosa quanto o que julgara ter percebido naquele fatídico dia. Exatamente no dia 19 de Julho de 1995, Albano recebeu alta do hospital psiquiátrico das forças armadas e foi levado para uma nova casa nos alojamentos da Vila Militar, com o objetivo que esquecesse as cenas horríveis que passara no Leme. E Albano permaneceu trancado naquele lugar, de licença médica, sem dizer uma única palavra por mais quase um ano.

Em março de 1996, uma pessoa foi a casa de Albano. Era um homem branco de cabelos loiros compridos, com aparência alemã, olhos azuis e uma voz sedosa. As mulheres da Vila Militar que moravam próximas de Albano ficaram encantadas pelo homem, que além de bonito era um verdadeiro cavalheiro. Ele tocou a campainha diversas vezes, sem resposta, até que um transeunte disse que a porta ficava sempre aberta e que Albano nunca saía de casa. O homem sorriu e abriu a porta. Como se conhecesse a casa, ele foi direto até o quarto de Albano, onde o militar licenciado assistia televisão.

– Bom dia, jovem Albano. – Disse o homem.

– ... – Silenciou Albano, apenas virando seu rosto na direção do desconhecido.

– Meu nome é Felipe, sei que é uma pessoa de poucas palavras, mas vim aqui oferecer um emprego... Uma forma de expurgar toda essa dor que sente em você.

– ...

– Bem... Eu represento uma firma de advogados que fica localizada nesse endereço da Avenida Presidente Vargas. – O homem entrega um envelope fechado na mão de Albano. – E temos para você uma nova possibilidade em emprego, algo que vai te tirar desse marasmo a que se submeteu quando aquele incidente trágico ocorreu.

– Quem lhe falou? – Perguntou Albano, falando pela primeira vez naquele mês.

– Temos nossas fontes... Se quiser saber mais, procure-nos.

O homem saiu do quarto de Albano e desapareceu em minutos, sem deixar qualquer vestígio de sua presença. Albano se levantou e foi até a janela de seu quarto, segurando o envelope. Com um canivete o abriu, e nele apenas tinha uma seqüencia de 12 números, divididos em três grupos de quatro algarismos cada. "Um telefone e um ramal, acredito.", indagou Albano. Ele foi até sua sala e discou os números na ordem em que apareciam, e uma voz eletrônica atendeu. "Somente recebemos ligações de celular", dizia a voz. Albano estranhou e se lembrou que o homem falara que o escritório ficava na avenida Presidente Vargas, e decidiu ir para lá. Horas depois estava na avenida Presidente Vargas, próximo a igreja da Candelária. Pegou seu celular e discou para o número. A voz eletrônica foi substituída por outra gravação, de uma mulher de voz sexy.

- Boa tarde, nosso endereço é Av. Presidente Vargas 1056, Sala 1304, obrigado. – Disse a gravação, repetindo diversas vezes.

Albano imediatamente caminhou até esse prédio. Era um prédio próximo a sede do DETRAN, com uma bela portaria e muita gente entrando e saindo. Parecia ser um simples prédio comercial, e por esse motivo não foi necessário se identificar com o porteiro. Depois de alguns minutos de espera na portaria, o elevador chegou e ele subiu até o décimo - terceiro andar, para a sala 04, que, aliás, era o último andar do prédio. Quando a porta automática do elevador abriu, Albano levou um susto, não havia corredor nesse andar, apenas uma sala pequena com as paredes cobertas por espelhos que davam a ilusão de ser um local maior que seus aproximadamente quatro metros quadrados. Do lado esquerdo da sala tinha um banco acolchoado com encosto, onde Albano se sentou, e uma câmera de segurança ficava apontada diretamente para o banco, na parede oposta. Assim que o elevador fechou suas portas, as luzes da sala se apagaram, deixando à mostra somente um ponto vermelho do sensor da Câmera de segurança.

A espera durou pouco tempo. Albano escutou um clique e uma pequena fresta de luz apareceu na quina da parede, revelando que uma das paredes era na verdade uma imensa porta corrediça coberta por um espelho. As luzes tornaram a acender e um homem baixinho vestindo um terno negro, oriental, veio até ele vindo por essa porta.

– Boa tarde, Senhor, em que posso serví-lo? – Perguntou o homem, com um leve sotaque que Albano não sabia de onde era.

Albano nada disse, apenas entregou o envelope que recebera. O homem sorriu gentilmente e pediu a Albano que o acompanhasse. Eles seguiram por um corredor com pelo menos cinco portas que ia dar em uma curva, nessa curva aparecia outro corredor com apenas uma enorme porta de madeira no final. O chão daquele lugar era todo acarpetado em vermelho, exceto quando estavam a uns dois metros dessa porta de madeira, onde o carpete vermelho acabou dando lugar a um carpete negro. O oriental parou de acompanhar Albano e disse a ele que abrisse a porta e aguardasse que seu anfitrião estava aguardando-o.

Ao entrar na sala Albano deu de cara com um imenso saguão cinzento. O saguão era do mesmo tamanho de uma sala de cinema. Todas as paredes eram adornadas por cortinas negras com detalhes em dourado mostrando diversas cruzes nas mais diversas posições. A uns três metros de altura, oposto a porta, tinha um maravilhoso vitral mostrando a figura de um anjo com uma asa de penas do lado direito e uma asa de dragão do esquerdo. Logo abaixo desse vitral tinha uma enorme mesa de escritório com um jogo de duas cadeiras para visitas e uma bela cadeira de diretor para o provável dono de tudo aquilo. Sob a mesa tinha um terminal de computador e algumas papeladas.

Na parede a esquerda de Albano tinha um altar com um livro aberto sobre ele. Ao lado do altar estava uma estátua de um anjo feita em puro mármore, segurando imponente uma tocha. O altar e a estátua eram iluminados por uma luz branca direta, que dava uma posição de destaque interessante a tudo aquilo. Na parede oposta tinha outro altar com outro livro sobre ele, um livro de páginas negras. Ao lado desse livro também tinha um estátua de um anjo, mas sua posição não era altiva como a da outra estátua. Ele estava de joelhos, com as mãos abertas tocando chão, e olhando para o alto com lágrimas no rosto, dando-lhe um olhar sofrido. Suas asas estavam danificadas, parecendo que tinham sido quase totalmente destroçadas, e suas mãos seguravam penas, e tinham dessas penas esculpidas por toda a base da estátua. Nesse local a iluminação provinha de uma luz azul escura dando um aspecto sombrio a essa parede.

Albano ficou curioso em saber o que continha em cada um dos livros e caminhou afoito em direção do livro mais bem iluminado. Assim que chegou nele se decepcionou, o livro estava completamente em branco. Folheou outras páginas, sem desmarcar a original e continuou sem encontrar nenhum palavra, e decidiu ver sua capa. Nela estava escrito "Livro das Revelações". de uma forma muito antiga, aliás, o livro parecia ser muito antigo, dado que pelo que Albano percebeu era todo costurado a mão e com a capa feita do couro de algum animal. Depois disso voltou sua atenção para a estátua do anjo. Tinha nela uma assinatura e uma explicação, ambas em Italiano, as quais teriam sido completamente indecifráveis por Albano não fosse uma placa de vidro salvadora na parede, mostrando a tradução do que estava escrito.

L'Angelo di Verità.
Elemento portante della luce Divine, quell'che porterà la verità e la vergogna.
Di Raffaello de Urbino


"Anjo da verdade. O portador da luz divina, aquele que trará a verdade e a vergonha.", leu Albano, intrigado. Enquanto caminhava para o outro lado da sala, escutou o som de uma porta se abrindo e de trás das cortinas da parede onde estava saiu uma pessoa. Era uma mulher de pelo menos um metro e oitenta, de cabelos negros perfeitamente lisos e usando um óculos escuros. Vestia um blazer preto que exaltava suas formas perfeitas e usava um perfume que mexia com os brios de Albano. Ela se dirigiu calmamente até a grande mesa de escritório e sentou-se na cadeira que parecia ser a ela reservada, a do chefe.

– Pelo que v, gosta de boa arte... – Disse a mulher, enquanto apertava um botão na mesa. – Tragam vinho para mim e um... O que deseja beber?

– Um copo de água, apenas. – Respondeu Albano.

– ....Água para nosso convidado. – Pediu a mulher, soltando o botão da mesa. – Bem, meu nome é Regina, o que é?

– Albano.

– Albano, tudo bem. O que o trouxe aqui?

– Um de seus funcionários, Felipe... – Ao ouvir Albano dizer o nome de seu contato, Regina rapidamente mexeu no mouse do computador e depois de dedilhar muito no teclado ela se virou novamente para Albano.

– Ah, sim... Estou com seu histórico aqui. Diga-me, qual sua posição a respeito de Deus?

– Heim? Porque a pergunta?

– Dependendo da sua resposta, tenho algo a lhe dizer ou não...

– Quer saber se acredito em Deus? Isso?

– Não, quero saber o que diria dele se fosse uma pessoa... Se não acreditar, não faz diferença para o que quero saber.

Albano silenciou, nunca escutara uma pergunta desse tipo antes, pelo menos não nessas circunstâncias. A mulher parecia ter muito dinheiro e transpirava seriedade, mesmo com toda sua sensualidade. Albano sentiu que suava frio por algum motivo que desconhecia e mesmo assim não conseguia pensar em uma resposta a esse questionamento. Aliás, ele tinha uma resposta sim, sempre se perguntava onde estava Deus enquanto seu pai estrangulara sua mãe, e onde esse mesmo Deus estava quando seu pai voou em direção a morte. ele sentia certa raiva dessa entidade misteriosa, mas nada que lhe dessa ódio, apenas indiferença.

– Sou indiferente com relação a Deus, se quer saber... Ele lá, eu aqui. – Respondeu Albano.

– Ótimo... Então vamos conversar...


O tempo passou, dias viraram semanas, semanas viraram meses e meses tornaram-se anos. Albano fazia parte da Organização desde 13 de Março de 1996, e agora, dez anos depois, dia 13 de março de 2006 era uma das pessoas mais respeitadas da Organização. Ele realizava pequenos trabalhos para a organização, que envolviam desde a ameaças simples a até queima de arquivo. Era, segundo Regina, o líder do setor dele. Desde que entrara na Organização, Albano nunca fez perguntas, ele sentia-se compelido a servir essa Organização sem perguntar por suas intenções, exatamente como aprendera no quartel. "Soldados não questionam ordens, soldados cumprem ordens.", dizia para si mesmo quando alguma dúvida aparecia. Esses serviços eram perfeitos para liberar a raiva que sentia de tudo que acontecera com sua família no passado, e até mesmo dentro da organização ele tinha um apelido por causa de sua eficácia e mudez completa. Era Tirolez. Porque esse nome? Ninguém sabia responder... Mas Albano gostava desse nome.

Revelações de Jonas, Conspiração: Quarta Etapa do Plano


Revelações de Jonas: Conspiração
Quarta Etapa do Plano
Nova vida

Fernando acorda como se estivesse em uma espécie de transe estranho. Olha para os lados e se vê entrevado numa cama de hospital. Não lembra exatamente como veio parar aqui e nem o que o trouxera para cá, mas tem certeza que quer se levantar. Sem muita precaução arranca com violência os tubos que até momentos atrás faziam a função que seus pulmões faziam antes, o que lhe dá profunda dor, pois parecia não fazer isso há muito tempo, simplesmente respirar. A seguir arranca de seu braço direito a agulha de onde vinha o soro e os remédios que lhe mantinham alimentado. Um esguicho de sangue saiu de sangue em resposta a violência de seu ato, sujando toda a maca e parte dos equipamentos. "Preciso saber que dia é hoje... Preciso saber...", pensa enquanto caminha em direção a um espelho.

Ele leva um susto. Ao olhar no espelho vê diante dele um jovem de cor branca com aproximadamente dezessete anos, de cabelos emaranhados e desnudo. A imagem dura até Fernando coçar os olhos e se ver novamente como é. Fernando é um rapaz negro no auge de seus vinte e cinco anos, físico atlético e medindo aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura. Não possui cabelos, sempre os raspando pelo menos uma vez por semana, para manter sua cabeça sempre o mais lustrada possível. Recuperado da visão estranha que vira no espelho, Fernando sai de seu quarto no exato momento em que os enfermeiros do andar chegam para ver o que acontecera com o paciente, cujos sinais de vida subitamente desapareceram.

– Milagre! – Berra um dos enfermeiros ao ver Fernando de pé diante deles, saindo da sala.

– Heim? – Indaga Fernando. – Não estou entendendo nada...



Os enfermeiros ficam estáticos alguns segundos, na maioria do tempo se benzendo, e então, com a eficácia tradicional de quem trabalha naquele hospital, tratam do ferimento que Fernando fizera em si mesmo ao arrancar a agulha intravenosa. Um deles, uma senhora negra de aparentemente uns cinqüenta anos, corre até um terminal telefônico instalado no corredor e chama pelo médico de Fernando. "É um milagre doutor Eduardo... Ele está aqui no corredor, andando...", diz a mulher empolgada para alguém no fone, sendo escutada por Fernando. Depois disso ele não escuta mais nada, pois é guiado pelos demais enfermeiros de volta a sua cama de hospital. Com o cuidado tradicional eles limpam Fernando e colocam curativos nele, verificam também se quando ele retirou o respirador, se nada ficou dentro dele. Quando terminam todo o tratamento, é o tempo exato que leva para o Dr. Eduardo chegar correndo na sala.

– Oh, meu deus! – É a única coisa que Dr. Eduardo fala, ao ver Fernando sentado na maca.

– Boa... – Diz Fernando, dando uma pausa e olhando a janela, constatando que é o início da manhã. – Ops, bom dia doutor...

– Bom dia, Fernando. – Responde Dr. Eduardo, ainda chocado. – Como se sente?

– Confuso, não sei porque estou aqui e nem que dia é hoje...

– Hoje é dia 12 de maio de 2006, Fernando, e você está aqui por causa de um camarão que consumiu há pelo menos vinte e quatro horas atrás.



Imediatamente, como se pegasse no tranco, Fernando se lembra desse evento. Ele está na praia de Copacabana com amigos quando um deles lhe oferece um pedaço de seu salgado. Faminto, e como nunca nega comida mesmo sabendo dos males que comer na rua podem lhe causar, ele abocanha um bom pedaço da comida e engole sem mastigar muito. Em seguida bebe um bom gole de refrigerante e volta a conversar. "Muito bom... É o que?", pergunta ao amigo, gostando do sabor do salgado. "Risole de camarão, Fernando, gostou?", responde o amigo para seu desespero. Fernando é absolutamente alérgico a camarão, mesmo tocar seus dedos nele cru lhe dá ulcerações nas partes que tocaram o animal, um caso raro e perigoso de alergia. Fernando coloca o dedo na garganta tentando provocar o vômito enquanto os presentes que conhecem seu problema correm em seu auxílio. Sente uma dor horrível no estômago que passa rapidamente para o peito. Fecha os olhos e quando abre novamente vê o Dr. Eduardo falando com ele algo que não compreende, então simplesmente apaga.

– Foi uma situação complicada. – Diz o Dr. Eduardo. – Você chegou aqui com um choque anafilático dos mais complicados que já vi em minha carreira médica... E na dos demais especialistas daqui. Tivemos que reanimá-lo mais de quinze vezes durante o procedimento de retirada do alimento... Seu cérebro passou praticamente mais de quinze minutos sem oxigênio, é um milagre até que consiga falar algo que se compreenda.

– Nossa... – Balbuciou Fernando, olhando para uma imagem sacra no topo de seu quarto.

– Exato, e se tiver algum tipo de fé, aconselho-o a agradecer muito porque você teve muita sorte hoje.



Fernando comemorou por dentro, estava vivo e isso era maravilhoso. Uma morte ridícula dessas seria algo vergonhoso para ele, preferia morrer atropelado ou num assalto, mas por causa de um camarão... Dr. Eduardo aconselhou ele a passar mais dois dias no hospital para efetuarem alguns testes nele, mas o que Fernando mais queria era retornar para casa. Nesse momento teve um lapso de memória, não sabia porque queria voltar tanto para casa, mas queria voltar. Preocupado com isso, interrompeu Dr. Eduardo nos exames de praxe (como escutar o coração e a respiração) e começou a falar:

– Doutor, eu estou com a impressão de estar esquecendo algo... – Falou Fernando.

– Não se preocupe, esse problema é normal quando acontecem as coisas que te descrevi. – Respondeu o Dr. Eduardo – Amanhã o neurologista chefe do hospital vai examiná-lo antes de saber se levará alta ou não, até lá, descanse e relaxe, com o passar dos dias tudo vai voltar ao normal.



Algo no interior de Fernando gritava que as coisas jamais seriam normais para ele, mas ele preferiu ignorar essas impressões e relaxar um pouco. Com o término dos exames preliminares, Dr. Eduardo se despediu e saiu da sala, pedindo apenas a Fernando que mantivesse preso nele os eletrodos do monitor cardíaco, pois não queriam maiores problemas. Seguindo as orientações do médico, Fernando deixou as enfermeiras prenderem novamente o equipamento em seu peito e apesar do desconforto causado pelos fios, acabou cedendo ao tédio e adormecendo meia hora depois, pra querer acordar. Mal Fernando adormeceu começou a escutar vozes em volta dele, chamando por um nome que lhe era familiar, mas ao mesmo tempo sentia-se compelido a esquecê-lo. "Jonas! Jonas!", diziam diversas vozes, em torno de Fernando.

Incomodado com as vozes e uma sensação incômoda de estar sendo observado, Fernando abriu os olhos. Ele se viu cercado de muitas pessoas, com fisionomias as mais diversas, que olhavam ele com profundo pesar. Olhou para si mesmo e via que sua pele não era negra, mas branca. "Você não tem idéia do que fez Jonas.", disse uma senhora de aparentemente sessenta anos. "Seu egoísmo é terrível. Como pôde?", perguntou um senhor negro, com pelo menos trinta anos. "Não acreditamos que fosse capaz disso.", falou uma criança de no máximo doze anos. Fernando fechou os olhos e gritou que parassem de falar seu nome, que parassem de culpá-lo por algo que não entendia. Então sentiu mãos o sacudindo e abriu os olhos, era uma enfermeira.

– O senhor está bem? – Disse uma enfermeira, com olhar preocupado.

– Onde eles estão? – Perguntou Fernando, ainda grogue.

– Eles quem? – Respondeu a enfermeira. – Só estamos nós dois aqui... Deve ter sido um pesadelo, senhor.

– Pesadelo...?

– É, o senhor dormiu algumas horas atrás e não faz cinco minutos que começou a gritar e se debater na cama, no início pensei que fosse algo mais sério, mas pelo jeito foi só um sonho ruim.

– Faz quanto tempo que dormi?

– Seis horas pelo menos, não era meu turno, mas me avisaram do milagre que aconteceu contigo... Graças a deus o senhor está bem.

– Obrigado.



Fernando sentiu uma vontade absurda de ir no banheiro e perguntou onde ficava o mictório, a enfermeira apontou rindo para uma porta bem em frente a maca. "Ah, obrigado de novo...", respondeu Fernando sem graça e caminhou para o banheiro. Depois de aliviar sua vontade, perguntou a enfermeira se ela tinha alguma idéia de quando seria liberado, e ela deu com os ombros, sem saber. Disse apenas que o Dr. Felix, neurologista, tinha avisado que o exame de ressonância magnética seria feito as quinze horas, e que já eram quase quatorze horas. A enfermeira perguntou a Fernando se ele não havia sentido falta de algo, e Fernando estranhou a pergunta, querendo entender o motivo de sua dúvida.

Novamente a enfermeira deu com os ombros e avisou que mesmo que fosse embora, provavelmente só poderia fazer acompanhado, e isso aconteceria as dezoito horas, durante o horário de visitas. Ao escutar a palavra "visitas", Fernando ficou empolgado e ansioso por esse horário, mas não conseguia lembrar porque ficava ansioso, sequer desconfiar do motivo. Parecia um bloqueio na sua cabeça. Desistiu de entender o que se passava consigo e decidiu aguardar a hora do exame. Enquanto o tempo passava, a enfermeira deixou a refeição de Fernando e voltou para a sala das enfermeiras. E Fernando assistiu televisão pra passar o tempo, sentia-se como se não fizesse isso há meses.

Finalmente chegou a hora do exame, Fernando estava ansioso por ele pois isso definiria se ele voltaria para casa naquele dia ou se demoraria ainda mais naquele hospital. O responsável por isso seria o neurocirurgião Felix Almeida, o chefe dos neurocirurgiões do hospital Copa D´or, e com certeza, da rede D´or. Fernando foi deitado em outra maca e levado de elevador até o andar onde ficava a sala de ressonância. Ao entrar na sala sentiu o cheiro de limpeza do local e um frio absurdo gelou-lhe da cabeça aos pés, e estar nu vestindo apenas a fina roupa de hospital não ajudava nada. "O equipamento é caro, não podemos deixá-lo pifar por causa do calor do Rio, daí a necessidade do frio excessivo... Mas você vai sair daqui rápido.", explicou o enfermeiro que empurrava a maca.


Máquina de Ressonância Magnética.


Fernando se levantou e deitou sob a superfície gelada do aparelho de ressonância. Seria um exame rápido, assim esperava, senão provavelmente teriam que tirá-lo com um quebrador de gelo. O Doutor Felix chegou segundos depois, apresentando-se educadamente e com um ar de ceticismo que deixava Fernando assombrado.

– Bom dia, senhor Fernando, meu nome é Dr. Félix, mas se quiser me chamar de Almeida não tem problema. – Disse o Dr. – Como pode ver, estamos diante de um aparelho dos mais modernos do mundo, e apesar de você estar nitidamente saudável para seus próprios padrões e para os dos demais funcionários do hospital, não sou tão crente quanto eles em milagres, apenas acredito no deus ciência. Se pode ver, essa mesa possui um sistema de rolamento igual a aqueles de caixas de supermercado que vão levá-lo até o interior do aparelho. – Enquanto falava, apontou para o buraco branco do aparelho de ressonância. – Lá dentro será bombardeado por íons e outras coisas mais que irão mapear toda sua cabeça, de forma tal a procurarmos eventuais problemas que podem a longo prazo transformar seu dito milagre em tragédia.

– Quanto tempo isso leva? – Perguntou Fernando.

– De cinco a dez minutos. Devo lembrá-lo que tem que tentar ficar o mais calmo possível, não é comprovado que isso interfira no resultado, mas como a atividade intensa altera o fluxo de sangue no músculo, e o cérebro é um músculo, quanto menos pensar melhor para o exame. Consegue passar algum tempo sem pensar? Se não conseguir, tente prestar atenção na música, que coloco propositalmente nos exames para acalmar os pacientes. E tente não se mexer, mas com o frio intenso sei que vai tremer. Ah sim, feche os olhos, a luz é forte. Boa sorte, senhor Fernando.



O Dr. Felix saiu da área do aparelho e foi para a sala de operações, onde um outro funcionário aguarda para dar início ao exame. Com um apertar de botão, o mecanismo de rolamento da máquina se ativou e Fernando entrou vagarosamente na máquina, ao mesmo tempo em que luz brancas muito fortes se acendiam. "O resultado do exame preliminar será imediato... Mas ainda assim analisaremos o material por mais alguns dias, logo, mesmo que vá embora hoje, provavelmente voltará aqui semana que vem para o resultado preciso.", avisou Dr. Felix a Fernando, falando alto de forma que pôde ser ouvido por Fernando de dentro do aparelho. Em seguida Fernando começou a deixar-se levar pela música e pelo frio, relaxando completamente.

Vinte minutos depois Fernando estava novamente na cama do hospital. Tudo estava aparentemente bem, seu cérebro não tinha nenhum coágulo ou problema similar. Era o que Fernando precisava saber para ir embora do hospital. A única resposta que não lhe agradou foi quando perguntou a respeito dos lapsos de memória e o Dr. Feliz disse que provavelmente era por causa da falta de oxigenação do cérebro quando teve as paradas cardíacas, e que eventualmente algumas memórias voltariam do mesmo modo que outras jamais viriam, pois estavam em áreas mortas do cérebro. O dia passou novamente diante da televisão até que o horário de visitas chegou e Fernando foi tomado por uma empolgação tão grande que chegou a estranhar. Nesse momento um rapaz de boa aparência, com no máximo vinte e dois anos de idade, de corpo malhado e bronzeado de praia entrou no quarto de Fernando trazendo flores.

– Fernando... – Disse o jovem, com lágrimas nos olhos.

– Renato... – Respondeu Fernando, de instinto e para seu estranho espanto ao lembrar desse nome.



E os dois jovens rapazes se beijaram apaixonados...