Revelações de Jonas: Quinta Etapa da Viagem

Quinta Etapa da Viagem
Fim Real



Um Cemitério... Uma Sombra...



– Que tipo de conversa você quer ter comigo agora? – Pergunta Jonas.

– A que vai mantê-lo vivo, repare que está anoitecendo novamente. – Respondeu a Sombra.

– E daí? Que tipo de perigo me atinge agora? Já estou morto mesmo...

– Já se esqueceu de alguém quem disse que o buscaria? Realmente esqueceu?

– Do que fala? – Questionou Jonas.


A Sombra se espantou, e com razão. Quando a Sombra impediu que a luz levasse Jonas para seu destino, ela iniciou a contra-gosto um processo de esquecimento voluntário em Jonas. Por desejo próprio e por vergonha de seus atos, Jonas estava apagando de sua alma acontecimentos traumáticos. Todos eles.

– Não recorda de seus últimos momentos de vida? De um aviso de alguém que nós dois conhecemos? Esquecer nem sempre é remédio pra tudo... Ainda mais quando lidamos com a destruição do espírito...

– Se refere a...



Jonas congelou. Seu corpo tremeu por completo e ele se recordou das palavras do Cavaleiro Negro. "E quando chegar no Inferno vou até você e destruirei sua alma...", essas palavras invadiram a mente de Jonas causando enorme desconforto e pavor. A Sombra percebendo nitidamente que o recém falecido estava desesperado, não hesitou em fazer uma proposta.

– Bem, existe uma chance de você sobreviver... Basta que me deixe levá-lo de volta para aquele mesmo cenário desolado de anos atrás. – Propôs a Sombra. – Está disposto?

– Porque me oferece tanta ajuda? – Questionou Jonas. – Você não me parece o tipo de ser altruísta, que concede favores sem cobrar...

– Decerto, mas o preço que vou lhe cobrar te garanto que será menor que o cobrado pelo Cavaleiro Negro... Bem menor... A opção é deixar senhoras bondosas como aquela que viu ontem se encarregarem de morrer te protegendo. Não acredito que sejas do tipo que se deixaria proteger por senhoras, ou seria?

– ...

– Vou lhe dar tempo pra pensar, você têm vinte e quatro horas, depois disso, venho buscá-lo ou assistir o resultado de sua decisão. Até lá alguns emplumados virão visitá-lo, pois eles já o procuram, decida o que melhor lhe convier, mas arque com a conseqüência de seus atos... Livre Arbítrio é o que há de mais sagrado...



A Sombra não deu tempo de Jonas perguntar nada mais. Esgueirou-se rápida como água em enxurrada pelo chão e desapareceu na escuridão da noite que começara. Jonas ficou parado ainda alguns segundos, imerso na própria preocupação, literalmente entre a cruz e a espada. E ele não sabia sequer manejar ambas. O jovem vagou sem rumo pelo cemitério ainda por mais duas horas, quando decidiu observar sua cova. Seguiu um de seus familiares que ainda estava no lugar arrumando a papelada e viu que seu corpo fora enterrado nos arredores do cemitério, quase nos muros, em uma cova rasa coberta apenas por um tampo de cimento sem identificação. Apesar de um ou outro coveiro ainda terminar de vedá-lo, era óbvio que quando seu corpo esfriasse e a família esquecesse a cova seria reaberta, seu corpo vendido a alguma faculdade e seu jazigo reaproveitado. "Simples comércio...", indagou.

Decepcionado com tudo que via e percebendo que não ganharia mais nada estando ali, Jonas pegou outra carona em um ônibus e recomeçou sua viagem de volta para seu único ponto de referência naquele mundo novo, eu recém conhecido amigo Adalberto. Durante o caminho teve a certeza que era seguido de perto por alguma coisa desconhecida, mas não conseguia ver nem ouvir nada. Então algo lhe tocou os ombros. Era uma senhora de aparência de pelo menos 90 anos e com os olhos completamente negros e fundos.

– Diga logo! Diga! – Berrou a senhora.

– Hã! O que? – Disse Jonas, sem entender nada.

– Diga! Diga! Fale logo pra eles pararem!

– Eles quem! De quem está falando!

– Eles! Diga logo! Eles vão me levar!

– Quem? Quem vai te levar?

– Eles! Eles!



Um imenso jato de luz atravessou o ônibus, cegando Jonas completamente. Uma sensação de paz e conforto como nunca sentira antes percorreu toda a sua alma, como se estivesse nascendo novamente e livre de todos os seus pecados. Escutou um bater leve de asas e teve a impressão de escutar harpas tocando. Era uma sensação maravilhosa e ao mesmo tempo, lá no fundo, causava-lhe um pavor proporcional ao conforto momentâneo. Jonas esforçou-se para abrir os olhos e quando conseguiu estavam ele e a senhora caídos no meio da Avenida Brasil, próximo a entrada para o elevado que levava a Ponte Rio Niterói. O desconforto era absurdo, pois a cada segundo uma série de veículos literalmente os atravessavam em alta velocidade e Jonas em frações de segundo era capaz de ouvir e sentir tudo que se passava pela cabeça dos ocupantes de todos esses veículos.



"Tenho que pegar essa estrada de novo?", pensava uma mulher de nome Júlia, no auge de seus 32 anos.



"Hoje vou me casar, estou feliz demais!", pensava Aderbal, aos 42 anos dentro de um ônibus que transpassou Jonas.



"É hoje que eu mato aquela cadela... Ninguém me trai!", passava pela cabeça de Raimundo, um nordestino de 40 anos que levava consigo um revólver e muito ódio no coração.



"Eu queria aquela bola, eu queria ela!", berrava Raquel, de 4 anos, reclamando pelos pais não terem parado na estrada pra pegar uma bola de futebol abandonada.



E mais uma infinidade de pensamentos em sua maioria pútridos demais para sequer serem lembrados por Jonas. Com dificuldade Jonas se concentrou em si mesmo e começou a ignorar essas invasões involuntárias. Olhou para os lados e viu a velha senhora de joelhos, contorcendo-se em dor e arrancando os próprios cabelos. O jovem fez menção de ajudá-la, mas quando faltavam poucos passos para isso, um enorme par de asas se colocou entre ele e a senhora.

– Dona Ieda? – Disse a voz, poderosa e ao mesmo tempo afável.

– Saia daqui! Vocês não vão me levar! – Berrava a Senhora, arrancando mais e mais cabelos.

– Não faremos nada de mal a senhora, somente quero conversar... Ele me mandou para conversar com a senhora.

– Cale-se! Passei a vida inteira naquele asilo rezando pra depois... Pra depois... – Dona Ieda começou a chorar copiosamente, encolhendo-se no chão como um feto. – Ele me abandonou por causa dela... Por causa dela...

– A senhora precisa se livrar desse ódio, dona Ieda. – Disse a voz, mais calma ainda. – Entenda, sua filha apenas queria o seu melhor, ela...

– Cale-se! O melhor para mim era estar com ela! Sempre com ela! – Berrou a senhora, ríspida.

– Nem sempre o que queremos é o melhor para nós...

– Cale-se! Eu vou ficar ao lado dela para sempre! Dela e daquele maldito marido dela... Como eu o odeio!



Antes que o ser angelical pudesse segurar nas mãos da senhora, ela se levantou e se jogou num carro em alta velocidade, desaparecendo em questão de segundos. Jonas não entendia absolutamente nada daquilo que estava acontecendo, quando fez menção de perguntar, o próprio ser alado lhe respondeu.

– Sim, sou um anjo... Da guarda, pra ser mais específico. – Respondeu o Anjo.

– Vocês existem? Realmente existem anjos da guarda? – Questionou Jonas, como que desperto de um transe.

– Existimos e tentamos ajudar, mas não podemos fazer nada que não nos seja permitido, como viu...

– Quem é essa senhora?

– É uma pessoa que morreu imersa em muita dor e ressentimento e que agora que deveria se livrar do sofrimento decidiu impô-lo a sua filha, independentemente de qualquer alma caridosa que tente convencê-la do contrário. É a vida carnal que se tornou mais forte que a alma... Apego.

– Já ouvi sobre isso.

– E você, Jonas, porque está ainda aqui? Já deveria ter subido há muito tempo... Não vejo apego em você, apenas muita dúvida. Cuidado com suas escolhas, apenas posso dizer isso a você.E aconselho-o a seguir a luz quando puder. Até mais ver... – Disse o Anjo, começando a voar.

– Para onde vais? – Perguntou Jonas.

– Atrás de dona Ieda, ela está tentando chegar a casa da filha... Quero convencê-la a desistir disso antes. Boa sorte em sua jornada. Ah, se quiser chegar a seu destino rápido, basta apenas que deseje muito...



"'Desejar'? Como assim 'desejar'?", indagou Jonas, enquanto via o anjo desaparecer no horizonte. Se o anjo queria lhe ensinar algo, não conseguiu. E Jonas nem se preocupou com as palavras finais do anjo, e apenas providenciou em poucos segundos um novo ônibus para si. Pelo menos daquele ponto da Avenida Brasil as opções de transporte eram maiores que próximo ao cemitério. Com isso acabou chegando rapidamente a Marina da Glória, onde em questões de minutos foi ter novamente com seu amigo Adalberto.

Adalberto também não entendeu as palavras do anjo e aparentemente não levou a sério as palavras da Sombra. Parecia até mesmo desconhecer ela totalmente, dizendo somente ao garoto para escolher com sabedoria seu próprio caminho, independentemente de ameaças. "A fé remove montanhas, lembre-se sempre disso.", disse Adalberto, afirmando sem enrolar que Jonas só precisava de fé em si próprio e em Deus para conseguir as coisas. Só que Adalberto não sabia que Jonas não era um jovem tão próximo de Deus quanto o velho fantasma imaginava.

E a noite virou dia e o dia virou novamente noite. A hora de dar a resposta a sombra havia chegado. Ao contrário do que fora dito, a luz não aparecera em nenhum momento e Jonas dava sinais que desistiria de toda essa dúvida cruel e seguiria sua não-vida em outro lugar. Foi quando ele chegou. Jonas e Adalberto foram tomados de súbito de uma sensação de perigo eminente e não tardou muito para que um cavalo completamente negro chegasse ao lugar tendo como seu dono o fatídico Cavaleiro Negro. Jonas fez menção que tentaria correr desesperadamente para salvar sua pele, mas quando o primeiro pé se mexeu, o cavaleiro negro já estava diante deles dois.

O cavaleiro negro trajava uma imponente couraça de placas negras completamente sem brilho adornadas com detalhes demoníacos em azul escuro. Seu elmo era completamente fechado permitindo-se somente que um brilho opaco branco pudesse ser visto e a silhueta quase oculta de seu rosto. As ombreiras da armadura eram largas e mostravam que o corpo do cavaleiro negro era muito forte, exalando confiança em si mesmo. Tinha presa na cintura uma enorme espada negra com seu cabo feito aparentemente em ossos e um crânio de onde saía a lâmina. Uma capa de pele de algum animal completava seu visual demoníaco. Seu corcel era tão negro quanto sua armadura e usava uma armadura adaptada também negra. Pendurados no cavalo estavam um enorme machado manchado de sangue e um escudo com o relevo de um crânio, de onde eram expelidos vermes os mais diversos.

– Nem adianta correr. – Afirmou o cavaleiro negro, exalando puro enxofre de seu capacete. – Vou te encontrar aonde quer que esteja...

– Saia daqui garoto, ele não é páreo para a força da... – Interrompeu Adalberto, colocando-se corajosamente entre o cavaleiro e Jonas.


"Calai a boca, filho de Deus!", berrou o cavaleiro negro. A pestilência de sua voz era tamanha que afetou até mesmo o mundo dos vivos, fazendo inúmeros peixes aparecerem boiando mortos em questão de segundos. Atormentado e sentindo-se compelido a proteger seu santuário, Adalberto se jogou diante do cavaleiro negro que num movimento limpo de sua lâmina dividiu o espírito em dois. Adalberto caiu no chão gritando de dor e tentando de qualquer jeito juntar as partes divididas. O cavaleiro negro não demonstrou nenhuma piedade do velho espírito e cravou sua espada na cabeça de Adalberto. Deu-se então um enorme flash luminoso e quando o mesmo cessou, não havia o menor sinal de Adalberto, sequer resquícios de sua presença.

Jonas foi tomado por uma sensação de perda maior que qualquer sensação que tivera. Era horrível e indescritível a sensação daquele momento, de ver uma energia divina e até certo ponto infinita se dispersar de tal modo, como se nunca tivesse existido. Adalberto não teria sequer um corpo pra enterrar, sequer alguém que lembrasse dele que não Jonas e talvez duas ou mais pessoas, ainda assim a dor naquele ambiente era absurda, pois mesmo a morte dos humanos não era finita, e sim um recomeço. O que acontecera ali era definitivamente o fim. E tomado por uma fúria sem igual Jonas saltou sobre o cavaleiro negro disposto a qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que sentia em sua alma, até mesmo morrer em função disso...

– Idiota. – Sussurrou o cavaleiro negro.

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