Revelações de Jonas - Conspiração: Primeira Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Primeira Etapa do Plano
Nomes e professores


Jonas esperou por alguma espécie de explicação por parte da sombra sobre o que estavam fazendo novamente naquele local. Sentia-se mal por depois de tudo que passara ainda ter que encarar o motivo de sua desgraça mais uma vez. A Sombra o ignorava solenemente e conversava com seu Cavaleiro Negro ignorando completamente todos os apelos de Jonas. Jonas sentia próximo deles mais uma vez o Rio Cinzento, e se perguntava se em algum momento aquele anjo que vira da primeira vez apareceria.

– Não, Taniel não aparecerá aqui, e é provável que nunca mais o veja... – Disse a Sombra, retornando a seu diálogo com o Cavaleiro.



Desistindo de esperar qualquer tipo de manifestação por parte daqueles dois, Jonas se afastou e começou a caminhar pelas redondezas. "Me encontrarão se quiserem", admitiu enquanto andava. Ao menos dessa vez não esta nu como da outra vez e apesar de algo lhe dizer que era evidente que não estava usando roupas também naquele momento, estar vendo com seus olhos os trapos que vestia na hora que morreu lhe davam certo conforto. Sentia falta de Adalberto, apesar de tê-lo visto tão pouco sua curta convivência abrandou um pouco o ódio que sentira. Intimamente desejava se vingar a todo custo do Cavaleiro Negro, e conseguiria isso de alguma forma.

De repente, Jonas se deparou com algo inusitado em suas andanças pelo desfiladeiro. Viu a uns trezentos metros de onde estava uma caverna. A princípio não deu muita importância a ela, mas quando escutou um gemido e o som de correntes batendo umas as outras, levou um susto absurdo e foi tomado por sua curiosidade. Pensou muito se deveria ou não entrar naquela caverna para ver o que estava ali dentro, mas não tempo o suficiente para desistir. Acabou entrando na caverna.

Era uma caverna escura e úmida. Gostas de água vermelha caiam do teto e parecia ser uma formação bem antiga pela presença de muitas estalagmites e estalactites. Era escuro, mas por alguma razão que Jonas ainda não compreendia, conseguia enxergar perfeitamente bem ali dentro, detalhe por detalhe. "Que bom... pelo menos mortos não usam lanterna.", pensou Jonas. Apesar de curioso, Jonas estava cauteloso, não queria para ele o mesmo cruel destino de Adalberto, pois saber que almas não eram indestrutíveis era algo novo e aterrador para ele. Foi quando viu chumbado no chão o começo de uma grossa corrente. Era uma corrente negra e seus elos eram do mesmo tamanho dos elos de correntes que prendiam as âncoras de navios petroleiros, pareciam pesadas demais e balançavam um pouco.

Jonas acompanhou a corrente até sua fonte e levou um susto. Ela dava em uma câmara completamente lisa da caverna onde no meio dela jazia um homem nu, preso por um total de quatro correntes idênticas, contando com a que Jonas seguira. Elas estavam dispostas de forma tal que o homem não conseguiria avançar mais que dois passos daquele lugar. Mas o estado deplorável do homem era suficiente para mostrar que sequer meio passo daria. O único traço marcante e presente no homem era que ele possuía cabelos loiros lisos e completamente em pé, lembrando alguns cortes militares. Sua pele estava toda coberta de hematomas e ele parecia dormir. Foi quando Jonas, como se hipnotizado pela presença estranha dessa pessoa, chutou uma pedra que foi quicando sonoramente até chegar a essa figura.

De sobressalto Jonas se escondeu atrás de uma saliência nas paredes da caverna e esperou, completamente apavorado. Não sabia com o que se apavorara, era um medo que teve a certeza de ser antigo. Imediatamente sua mente foi tomada com lembranças de outras vidas, outras mortes, de um mal presságio anterior até mesmo a existência do planeta Terra. E Jonas decidiu voltar o quanto antes. Ele saiu da saliência da caverna e pé ante pé foi se afastando de tudo aquilo, quando sentiu um arrepio e olhou para o homem. O homem levantara a cabeça e olhava fixamente para Jonas. O jovem sentiu um novo arrepio começando na ponta dos cabelos e indo até a ponta das unhas do pé. "Seus olhos são vermelho sangue... E bifurcados...", constatou Jonas a si mesmo. O homem levantou-se tomado de uma fúria aparentemente incontrolável e agitou as correntes. Jonas não teve nenhuma curiosidade e começou a correr.



Ele vira o invasor. Era impressionante como ele nunca tinha paz. Sempre, por mais isolado e imerso em sua dor estivesse e o quanto nas profundezas estivesse, sempre apareceria alguém para perturbá-lo em seus pensamentos. Era jovem o invasor, provavelmente algum curioso, amedrontado demais para entender o tamanho do problema em que se metera. Ele se levanta em meio as correntes que o prendem e escolhe a corrente que está na mesma direção aonde o jovem corre. E puxa forte a corrente, fazendo um estrondo que poderia ser ouvido a quilômetros dali. Com a força de sua mente poderosa a corrente se contrai e se molda a sua vontade, agarrando desprevenido seu invasor e trazendo-o até ele. "Será divertido", pensa, enquanto os gritos de pavor de seu invasor se aproximam mais e mais.



Jonas não soube o que o antigo. Estava tão preocupado correndo que não viu quando as correntes enrolaram seus pés e o derrubaram no chão. Escutou o barulho ensurdecedor a sua frente, mas isso não tinha sido o suficiente. Agora as correntes o amarravam da cabeça aos pés e seu corpo era arrastado pelo chão de volta para a câmara 0nde aquele homem estava. Sua cabeça batia violentamente nas sinuosidades da caverna, provavelmente se estivesse vivo sangraria.

Mais uma vez via um lado bom em estar morto. Ele chegou rápido ao local onde o homem agora estava de pé o aguardando. Mas o homem não estava mais nu, ele vestia uma armadura negra e dois pares de asas negras lhe adornavam as costas. Ao contrário do Cavaleiro Negro, não usava capacete, apenas uma espécie de tiara que deixava seu cabelo a mostra e seu rosto assombroso idem. As correntes giraram e se prenderam ao teto da caverna, se enrolando nas estalactites. Jonas ficou então dependurado de cabeça para baixo, face a face com o misterioso ser de olhos bifurcados, que agora brilhavam.

– Invasor... – Disse o homem, com sua voz parecendo um rosnado de leão, com o rosto tão próximo de Jonas que dava para sentir sua respiração.

– Não... Eu escutei um barulho e vim ver... – Balbuciou Jonas, apavorado. – Foi sem querer... Foi...

– Se não quisesse não teria entrado. – Falou o homem, apertando mais as correntes. – Agora, como gostaria de morrer? Como uma passa ou pelo fio da espada?

– Não... Não...



O homem se irritou com o medo de Jonas e socou-o como se fosse um saco de pancadas. Jonas bateu várias vezes contra o teto da caverna, levantando muita poeira. Apesar disso as correntes não se soltaram. Com um gesto do homem as correntes pararam de balançar e ele voltou-se novamente para Jonas.

– Já decidiu? – Perguntou o homem, segurando a cabeça de Jonas, que para seu pavor viu que os dedos do homem tinham garras invertidas na armadura.

– Não haverá mortes hoje, pelo menos de nenhum Jonas. – Disse uma voz sombria vindo pela caverna. Era a Sombra, que finalmente chegara para salvar Jonas de mais um problema. O homem reagiu com raiva a misteriosa chegada.

– Ah, é você... – Falou o homem, acalmando-se por completo. Até mesmo seus olhos bifurcados tornaram-se olhos normais e de um azul completamente sereno, um contraste com os últimos segundos. – Por acaso esse infeliz é coisa sua?

– Sim e não... Se ele está aqui é por SUA causa. – Disse a Sombra, dando ênfase a culpa do homem. – Daik-Haniah, não sente nele o cheiro dos habitantes locais daqui?

– Sinto...

– Então, ele apareceu aqui anos atrás, logo depois do que VOCÊ fez a essa colônia, e escutou uma conversa minha com seu amigo Taniel... Bem, pra resumir tudo, no final, por causa do que sabia, ou ele seria destruído ou se juntaria a nós.

– Você? Destruindo alguém?

– Não exatamente, Mizovitan o viu... E sabe como ele reage a intrusos nesses locais...

– É... Então posso soltar esse moleque.



Jonas não entendia muito bem a situação toda, mas entendeu bem o que queria dizer a respeito de soltar, e ao invés de desabar no chão como fruta podre conseguiu cair de maneira menos vergonhosa. Ergueu-se desastrado limpando a poeira e então finalmente entrou em sua cabeça quem era aquele homem diante dele, o destruidor daquele local.

– Você! Você fez tudo isso aqui... – Falou Jonas.

– Sim, ou acaso é surdo? – Questionou o homem. – Acabamos de falar sobre minha culpa...

– Você é o destrinchador de mundos?

– Não, " destrinchador" não, "devorador"... Daik-Haniah, meu real nome. Diga-me jovem, qual seu nome?

– Jonas.

– Bem, Jonas, a mancha negra já disse a você por que recrutou uma pessoa como você para trabalhar com ele?

– Não.

– Então... – O homem olhou para a Sombra. – Não me incomodo de saber, mas diga isso em português, acredito que ele não esteja familiarizado com nosso idioma.

– Bem, como bem devem saber não existe força no universo que possa superar os anjos. – Falou a Sombra. – Que eles são os mais próximos de Deus e todo aquele blábláblá que corre nisso... O tal do Graal.

– Mas eu, você e Mitzrael superamos... – Interrompeu o homem.

– Não é bem assim... Nós somos diferentes... – disse a Sombra, dando continuidade. – E como tal, a força de fé manifestada pelos anjos, o Graal, é considerada a força suprema. Nenhum habitante das profundezas ou desse parâmetro são capazes de superar. Até aí acredito que todos saibam... – Jonas assentiu com a cabeça, estranhando saber disso mesmo sem ter escutado nunca em sua vida na Terra... provavelmente informações de outras vidas. – Bem, Jonas pertence a uma classe de seres que entre os anjos é dado como certo que jamais conseguirão superá-los em relação ao Graal... Alegam que Anjos são perfeitos e crias diretas do Pai Celestial, diferentes dos espíritos comuns, que no máximo conseguirão arranhar a couraça de um anjo.

– E onde eu me encaixo? – Perguntou Jonas.

– Você é uma experiência que quero há muito tempo fazer... Eu há algum tempo atrás desafiei o Pai Celestial para um embate justo e o ganhei. Tal vitória, legítima, foi contestada pelos anjos e por todos que souberam disso...

– Você enfrentou Deus... E Ganhou? – indagou Jonas. – É impossível...

– NADA é impossível... Basta ter fé. – Afirmou a Sombra, vendo que o uso da palavra "fé", causara espanto a Jonas. – Bem, não vem ao caso... Desde então planejei treinar um espírito dos mais fracos em todos os aspectos para provar aos anjos que eles não são os seres supremos... Literalmente, quebrar seus salto-altos divinos.

– E esse espírito fraco seria eu? – Perguntou Jonas.

– Exato, o terceiro pra ser mais preciso... Os dois anteriores não sobreviveram ao treinamento... Mas foi há muito tempo atrás, antes da queda do Devorador de Almas e do Cavaleiro Negro. E agora vou treiná-lo junto com meus dois asseclas, o Cavaleiro Negro e o Devorador de Almas.



Um arrepio passou pela nuca de Jonas. Ele escutou que seria treinado pela Sombra, pelo Cavaleiro Negro e pelo Devorador de Almas. Um trio estranho e assombroso demais para seus padrões, aliás, nem sabia se sobreviveria a isso. Por um momento pensou em se forçar a acordar desse pesadelo, mas tinha certeza que não estava em coma como da outra vez. Era uma realidade confusa e cheia de informação com a qual jamais entenderia sem muito esforço.

– E porque a necessidade de nós três? – Indagou Daik-Haniah.

– Individualmente somos os mais poderosos em nossas categorias... Subterfúgio, Investigação e Guerra, um triunvirato difícil de superar senão por você-sabe-quem, quando treinei os dois anteriores, falhei porque por mais perfeitos que fossem no meu quesito, nos demais eram insuficientes e eram destruídos na hora da prática. Com vocês dois auxiliando, criaremos um ser mais equilibrado, capaz de sobreviver ao que planejo para ele, e vocês sabem o que é.



Daik-Haniah se afastou e sentou em uma pedra da caverna. Pensou por um tempo e abriu um largo sorriso. Havia lógica naquilo que a Sombra falava. Ele e Mitzrael eram exemplos vivos disso, assim como seu amigo Taniel. Eram seres completamente inferiores nos patamares locais, e por sua vez desprezados, que conseguiram em um curto espaço de tempo superar todos os adversários no quesito prático. Tudo bem que como no conto de Sansão, uma mulher derrotou os dois e outros usando dois músculos mais desenvolvidos que os punhos, o cérebro e a vulva, mas era passado, somente os ferira e com o tempo ficariam mais fortes que antes. Jonas tinha potencial, todos tinham... Daik-Haniah não era cria do Pai Celestial, mas reconhecia a capacidade de evoluir da linhagem de Taniel, e isso podia ser transmitido, mesmo que demorasse, a alguém da linhagem de Jonas. Daria trabalho? Muito, mas compensaria.

– Perfeito, começamos agora... – Falou Daik-Haniah, olhando para Jonas e sorrindo. – Se você achava que sofreu muito... Prepare-se...

Revelações de Jonas: Sexta Etapa da Viagem

Sexta Etapa da Viagem
Vendido!
 
 
Cavaleiro Negro... (Fonte)


Jonas saltou violentamente em cima do Cavaleiro Negro, que apenas riu e deu dois galopes para trás, deixando Jonas cair no chão. Jonas se levantou novamente e tentou pegar uma pedra para golpear o Cavaleiro. Esforço inútil, pois suas mãos atravessaram a pedra. "Mortos geralmente não erguem pedras, garoto.", disse o Cavaleiro. Com muito mais raiva Jonas chutou a perna do cavalo. Tentativa inútil, sua perna bateu em cheio nas proteções do animal para derrubá-lo, mas quem tombou com dor foi Jonas. "Humano demais...", disse o cavaleiro, enquanto erguia seu cavalo pelas rédeas e tentava acertar Jonas com um coice. Jonas consegue rolar pelo chão milésimos de segundo antes de o cavalo esmagar o lugar onde estava sua cabeça, mas quando tenta se levantar é subitamente preso ao chão pela pata dianteira esquerda do cavalo.

– Moleque idiota, se eu quisesse matá-lo teria feito isso agora... – Bradou o cavaleiro negro, imobilizando Jonas com a pata do cavalo e tocando sua testa com a ponta da espada. Jonas sente uma leve dor na testa.

– Então o que quer? – Pergunta Jonas, olhando em volta dele procurando por alguma espécie de arma.

– Esperar.

– Esperar pelo quê?

– Por mim. – Diz uma voz completamente familiar, a voz da Sombra. Ela se esgueira pelo chão noturno com suavidade e completamente despercebida, não fosse ter se anunciado. – Meu velho amigo aguarda somente uma resposta sua...

– Resposta? É desse modo que vai me dar livre arbítrio pra escolher?

– Você é realmente um completo imbecil... – Interrompe o Cavaleiro Negro. – Ele vale para todos, ou melhor, quase todos e você tem a opção de viver sob as regras da Sombra ou morrer pela minha espada... Se escolher o lado dos anjos está escolhendo por morrer pelas minhas mãos. Olhe a sua volte e procure pelo seu anjo da guarda? Onde ele está?

– Estou aqui. – Diz uma voz sublime, que vêem acompanhada de uma luz forte que cobre todo o ambiente, exceto nos locais que a Sombra e o Cavaleiro tocam. – Vim buscá-lo, Jonas, tive dificuldades em encontrá-lo, mas agora podemos partir...

– Nem pensar, borboleta. – Interrompe, dessa vez, a Sombra. – Essa jovem criatura de Deus tem uma resposta a me dar e antes de qualquer "pití" seu, espero que se lembre das regras...

– Não preciso de sua ajuda para lembrar-me. – Responde o anjo, olhando piedosamente para Jonas a seguir. – O que desejas nesse momento?



Se Jonas estivesse vivo, suaria frio. Mas ele não estava e todo esse nervosismo exalava de sua aura. Ele estava caído no chão, mantido nele pelos cascos do cavalo do Cavaleiro. Não faziam nem três minutos e seu novo, aliás, único amigo naquela nova situação estava morto em definitivo e nem sequer se acostumado com tudo aquilo. Diante dele naquele momento estavam um anjo, a Sombra e o Cavaleiro Negro. E todos eles queriam uma decisão dele. Apenas uma decisão.

– Chega! – Berrou Jonas. – Eu não faço a menor idéia de quem ou quê vocês são... Chego até mesmo a duvidar de meu estado atual... E vocês querem que eu tome uma decisão que envolve até onde vi minha própria destruição... Vocês são malucos por acaso e querem compartilhar comigo sua loucura? Ou me tomam por completo imbecil?

– Eu tomo-lhe por imbecil. – Respondeu o Cavaleiro Negro.

– Quieto meu fiel ajudante. – Interrompeu a Sombra. – O que o rapaz deseja apenas é informação, acredito que nosso amigo emplumado seja capaz de fornecer... Ou estaria enganado?

– ... – Silenciou o anjo.

– Então, jovem Jonas, vamos começar da maneira mais simples de todas, você me pergunta e eu respondo, se for para a borboleta dos céus, ela responde. – Falou a Sombra, aparentemente sentando em uma cadeira feita de si mesma. – É justo, concorda, pombo?

– Isso não me agrada, mas se assim poderei salvar sua alma... Deixemos ele em paz. – Assentiu o Anjo.

– Pra começar, o que está acontecendo? – Perguntou Jonas.

– Essa eu respondo. – Disse a Sombra. – Simples, você morreu! "Pou! Pou! Pou!", vários tiros certeiros em você que espalharam pedaços seus por toda a calçada próxima daquele arbusto do Largo dos Guimarães. Agora você tem a possibilidade de escolher qual lado decidir... E quer saber porquê? – Perguntou a Sombra, sabendo que sua insinuação obrigaria o anjo a ver respondidas questões que Jonas não estivesse disposto a entender.

– Diga, se já está falando... – Respondeu Jonas.

– Bem, quando você esteve em coma ouviu conversas e situações que não são dadas a um espírito de sua categoria. Foi testemunha de fatos que provavelmente apenas um grupo mínimo de pessoas na Terra, e até mesmo fora dela, foi capaz de escutar. E de posse disso nada fez, tanto para o bem quanto para o mal... Mas em compensação a revolta que a desolação trouxe a sua alma foi grande o suficiente para abalar sua noção de certo e errado na Terra. E deu no que deu... O Primeiro Tiro.

– E no que isso interfere em decisão?

– Em nada, mas me interessei por você em especial... Por causa da sua informação, não quero ela de posse de qualquer um.

– Quer dizer que estou passando por isso tudo só pro causa de segredinhos?

– Sim, e por gosto pessoal meu, mas acontece que quando você morreu o meu lacaio decidiu dar cabo definitivo de você... E não gostaria de ver algo ruim acontecer a um espírito tão novo quanto você. Ele sempre destrói suas vítimas na Terra, pra evitar aumentar o Carma dele... O "Aqui se Faz, Aqui se Paga"... Inteligente até, se não tem cobradores não tem dívida, apenas a consciência dele e ele não é o tipo de ser que se culpa muito... – Quando a Sombra falou isso, Jonas observou para o Cavaleiro Negro e teve a certeza de que ele sorria com tudo aquilo. – Em suma, se está até agora aqui existindo, é porque eu pedi a ele que o mantivesse vivo.

– E porque esse interesse súbito por minha pessoa? Não seria mais fácil me matar simplesmente?

– Porque vi que seria algo bem interessante... Demais, mas não posso falar até você aceitar minha oferta. Entenda, você só terá significado até o momento que disser "sim" ou "não", depois disso é consequência de suas escolhas, e entenda uma coisa: um "não" será desagradável, pois não poderei conter meu fiel amigo...

– Eu o conterei. – Interrompe o anjo. – Escolha com seu coração, não com seu medo. Estou aqui para protegê-lo de qualquer coisa, tenho Ele a meu lado...

– "Ele" não está aqui... – Fala a Sombra, devolvendo a interrupção. – E nós dois sabemos o que vai acontecer se vocês entrarem em conflito.

– Sei, e nada tenho a temer com Ele a meu lado... – Disse o anjo.



O Cavaleiro Negro embainhou sua espada novamente, observando atentamente Jonas a medida que deixava o jovem livre para se levantar. "Ótimo, civilizadamente...", disse a Sombra, irônica. O anjo se postou entre o Cavaleiro Negro e o jovem, deixando bem claro, sem uso de palavras, que o Cavaleiro Negro teria que passar por ele para conseguir algo. Jonas apenas ficava mais desnorteado com isso tudo.

– Isso vai me enlouquecer... – Balbuciou Jonas, já em pé.

– Não, a não ser que deseje isso... – Disse a Sombra, em seu ouvido. – Bem, se não tem mais perguntas, gostaria de uma resposta, não tenho toda a eternidade a sua disposição... E a espada de meu amigo quer aplacar a fome de sangue... Ops, você não tem mais sangue.

– Eu não posso escolher ser deixado em paz e longe de tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Não de minha parte. – Disse o Cavaleiro Negro. – Só uma palavra e atravesso a cabeça de seu protetor e depois arranco a sua.



Jonas travou. Sabia que estava em uma encruzilhada e algo dentro de si garantia que apesar de toda a balela a respeito de livre arbítrio na realidade não tinha escolha alguma. Fitava o anjo e teve uma estranha impressão a respeito dele. Apesar de toda a aparência pomposa do ser divino, seu semblante mascarava algum sentimento diferente em relação à aquele momento, soava-lhe como se o anjo soubesse de algo ou tivesse alguma ordem que era segredo a senão todos ali, mas com certeza a Jonas.

– Diga-me, uma coisa, anjo. – Falou Jonas. – Você me responderia qualquer pergunta, qualquer coisa que lhe perguntasse, não?

– Sim. – Respondeu o anjo, com semblante mais preocupado ainda.

– Bem, gostaria de saber o motivo de tamanha preocupação... Existe algo que eu deveria não saber?

– Como assim?

– Exato, existe algo que se eu perguntar a você serei desviado da linha de pensamento e forçado a tomar conclusões erradas?

– Não. – Respondeu, demonstrando total sinceridade em suas palavras.

– Então se não é isso, do que se trata então?

– ... – Silenciou o anjo e Jonas teve certeza, existia algo mais.



Naquele instante Jonas teve certeza que muito mais estava em jogo do que simplesmente sua existência. "Adalberto morrera e nenhum anjo aparecera para salvá-lo", pensou, "porque então para mim teria?". Essa dúvida assombrou-lhe de tal forma que sentiu-se então satisfeito com apenas uma coisa. Se queria saber o que a Sombra planejava, jamais obteria tal informação da parte do anjo. Ele provavelmente o levaria para um lugar bem longe de onde jamais saberia porque tudo aquilo aconteceu. E Jonas, como dito no início de tudo, era tudo menos sensato. E ele tinha curiosidade em saber.

– Sombra, eu aceito sua proposta. – Afirmou.


O anjo deu de ombros e voou sem se despedir. Apenas desejou sorte a Jonas em sua decisão e que lembrasse sempre de Deus. Jonas não se importava mais com nada. A sombra pela primeira vez deixava transparecer algo em sua escuridão além de seus olhos brancos, deixou aparecer um largo sorriso. Ela pela primeira vez fez aparecer sua mão, uma mão feminina e delicada, estendeu-a até Jonas e os dois fecharam o acordo com um aperto de mãos. "Agora, precisamos apenas tornar oficial isso...", disse a Sombra enquanto ela mesma recobria o corpo todo de Jonas e deixava-o com uma pequena marca no braço direito, era um risco negro, semelhante a uma tatuagem. Começava grosso de um lado e afinava até desaparecer do outro. "Minha assinatura, todos os meus contratados possuem...".

– Marcado como gado... – Disse Jonas.

– Não, você tem toda a sua liberdade, contanto que me acate quando sua liberdade interferir em meus interesses durante nossos trabalhos.

Jonas apenas assentiu com um gesto com a cabeça. Sem dar tempo de processar a informação a sombra cresceu de tamanho e envolveu Jonas e o cavaleiro em uma completa escuridão. Jonas teve a sensação de voar muito rápido e quando a escuridão cessou ele, acompanhado da Sombra e do Cavaleiro, estava novamente onde tudo começara, naquele mesmo desfiladeiro vermelho...

 
De volta... ao início de tudo... Fim das Revelações.
 
Próxima parte: Conspiração.

Revelações de Jonas: Quinta Etapa da Viagem

Quinta Etapa da Viagem
Fim Real



Um Cemitério... Uma Sombra...



– Que tipo de conversa você quer ter comigo agora? – Pergunta Jonas.

– A que vai mantê-lo vivo, repare que está anoitecendo novamente. – Respondeu a Sombra.

– E daí? Que tipo de perigo me atinge agora? Já estou morto mesmo...

– Já se esqueceu de alguém quem disse que o buscaria? Realmente esqueceu?

– Do que fala? – Questionou Jonas.


A Sombra se espantou, e com razão. Quando a Sombra impediu que a luz levasse Jonas para seu destino, ela iniciou a contra-gosto um processo de esquecimento voluntário em Jonas. Por desejo próprio e por vergonha de seus atos, Jonas estava apagando de sua alma acontecimentos traumáticos. Todos eles.

– Não recorda de seus últimos momentos de vida? De um aviso de alguém que nós dois conhecemos? Esquecer nem sempre é remédio pra tudo... Ainda mais quando lidamos com a destruição do espírito...

– Se refere a...



Jonas congelou. Seu corpo tremeu por completo e ele se recordou das palavras do Cavaleiro Negro. "E quando chegar no Inferno vou até você e destruirei sua alma...", essas palavras invadiram a mente de Jonas causando enorme desconforto e pavor. A Sombra percebendo nitidamente que o recém falecido estava desesperado, não hesitou em fazer uma proposta.

– Bem, existe uma chance de você sobreviver... Basta que me deixe levá-lo de volta para aquele mesmo cenário desolado de anos atrás. – Propôs a Sombra. – Está disposto?

– Porque me oferece tanta ajuda? – Questionou Jonas. – Você não me parece o tipo de ser altruísta, que concede favores sem cobrar...

– Decerto, mas o preço que vou lhe cobrar te garanto que será menor que o cobrado pelo Cavaleiro Negro... Bem menor... A opção é deixar senhoras bondosas como aquela que viu ontem se encarregarem de morrer te protegendo. Não acredito que sejas do tipo que se deixaria proteger por senhoras, ou seria?

– ...

– Vou lhe dar tempo pra pensar, você têm vinte e quatro horas, depois disso, venho buscá-lo ou assistir o resultado de sua decisão. Até lá alguns emplumados virão visitá-lo, pois eles já o procuram, decida o que melhor lhe convier, mas arque com a conseqüência de seus atos... Livre Arbítrio é o que há de mais sagrado...



A Sombra não deu tempo de Jonas perguntar nada mais. Esgueirou-se rápida como água em enxurrada pelo chão e desapareceu na escuridão da noite que começara. Jonas ficou parado ainda alguns segundos, imerso na própria preocupação, literalmente entre a cruz e a espada. E ele não sabia sequer manejar ambas. O jovem vagou sem rumo pelo cemitério ainda por mais duas horas, quando decidiu observar sua cova. Seguiu um de seus familiares que ainda estava no lugar arrumando a papelada e viu que seu corpo fora enterrado nos arredores do cemitério, quase nos muros, em uma cova rasa coberta apenas por um tampo de cimento sem identificação. Apesar de um ou outro coveiro ainda terminar de vedá-lo, era óbvio que quando seu corpo esfriasse e a família esquecesse a cova seria reaberta, seu corpo vendido a alguma faculdade e seu jazigo reaproveitado. "Simples comércio...", indagou.

Decepcionado com tudo que via e percebendo que não ganharia mais nada estando ali, Jonas pegou outra carona em um ônibus e recomeçou sua viagem de volta para seu único ponto de referência naquele mundo novo, eu recém conhecido amigo Adalberto. Durante o caminho teve a certeza que era seguido de perto por alguma coisa desconhecida, mas não conseguia ver nem ouvir nada. Então algo lhe tocou os ombros. Era uma senhora de aparência de pelo menos 90 anos e com os olhos completamente negros e fundos.

– Diga logo! Diga! – Berrou a senhora.

– Hã! O que? – Disse Jonas, sem entender nada.

– Diga! Diga! Fale logo pra eles pararem!

– Eles quem! De quem está falando!

– Eles! Diga logo! Eles vão me levar!

– Quem? Quem vai te levar?

– Eles! Eles!



Um imenso jato de luz atravessou o ônibus, cegando Jonas completamente. Uma sensação de paz e conforto como nunca sentira antes percorreu toda a sua alma, como se estivesse nascendo novamente e livre de todos os seus pecados. Escutou um bater leve de asas e teve a impressão de escutar harpas tocando. Era uma sensação maravilhosa e ao mesmo tempo, lá no fundo, causava-lhe um pavor proporcional ao conforto momentâneo. Jonas esforçou-se para abrir os olhos e quando conseguiu estavam ele e a senhora caídos no meio da Avenida Brasil, próximo a entrada para o elevado que levava a Ponte Rio Niterói. O desconforto era absurdo, pois a cada segundo uma série de veículos literalmente os atravessavam em alta velocidade e Jonas em frações de segundo era capaz de ouvir e sentir tudo que se passava pela cabeça dos ocupantes de todos esses veículos.



"Tenho que pegar essa estrada de novo?", pensava uma mulher de nome Júlia, no auge de seus 32 anos.



"Hoje vou me casar, estou feliz demais!", pensava Aderbal, aos 42 anos dentro de um ônibus que transpassou Jonas.



"É hoje que eu mato aquela cadela... Ninguém me trai!", passava pela cabeça de Raimundo, um nordestino de 40 anos que levava consigo um revólver e muito ódio no coração.



"Eu queria aquela bola, eu queria ela!", berrava Raquel, de 4 anos, reclamando pelos pais não terem parado na estrada pra pegar uma bola de futebol abandonada.



E mais uma infinidade de pensamentos em sua maioria pútridos demais para sequer serem lembrados por Jonas. Com dificuldade Jonas se concentrou em si mesmo e começou a ignorar essas invasões involuntárias. Olhou para os lados e viu a velha senhora de joelhos, contorcendo-se em dor e arrancando os próprios cabelos. O jovem fez menção de ajudá-la, mas quando faltavam poucos passos para isso, um enorme par de asas se colocou entre ele e a senhora.

– Dona Ieda? – Disse a voz, poderosa e ao mesmo tempo afável.

– Saia daqui! Vocês não vão me levar! – Berrava a Senhora, arrancando mais e mais cabelos.

– Não faremos nada de mal a senhora, somente quero conversar... Ele me mandou para conversar com a senhora.

– Cale-se! Passei a vida inteira naquele asilo rezando pra depois... Pra depois... – Dona Ieda começou a chorar copiosamente, encolhendo-se no chão como um feto. – Ele me abandonou por causa dela... Por causa dela...

– A senhora precisa se livrar desse ódio, dona Ieda. – Disse a voz, mais calma ainda. – Entenda, sua filha apenas queria o seu melhor, ela...

– Cale-se! O melhor para mim era estar com ela! Sempre com ela! – Berrou a senhora, ríspida.

– Nem sempre o que queremos é o melhor para nós...

– Cale-se! Eu vou ficar ao lado dela para sempre! Dela e daquele maldito marido dela... Como eu o odeio!



Antes que o ser angelical pudesse segurar nas mãos da senhora, ela se levantou e se jogou num carro em alta velocidade, desaparecendo em questão de segundos. Jonas não entendia absolutamente nada daquilo que estava acontecendo, quando fez menção de perguntar, o próprio ser alado lhe respondeu.

– Sim, sou um anjo... Da guarda, pra ser mais específico. – Respondeu o Anjo.

– Vocês existem? Realmente existem anjos da guarda? – Questionou Jonas, como que desperto de um transe.

– Existimos e tentamos ajudar, mas não podemos fazer nada que não nos seja permitido, como viu...

– Quem é essa senhora?

– É uma pessoa que morreu imersa em muita dor e ressentimento e que agora que deveria se livrar do sofrimento decidiu impô-lo a sua filha, independentemente de qualquer alma caridosa que tente convencê-la do contrário. É a vida carnal que se tornou mais forte que a alma... Apego.

– Já ouvi sobre isso.

– E você, Jonas, porque está ainda aqui? Já deveria ter subido há muito tempo... Não vejo apego em você, apenas muita dúvida. Cuidado com suas escolhas, apenas posso dizer isso a você.E aconselho-o a seguir a luz quando puder. Até mais ver... – Disse o Anjo, começando a voar.

– Para onde vais? – Perguntou Jonas.

– Atrás de dona Ieda, ela está tentando chegar a casa da filha... Quero convencê-la a desistir disso antes. Boa sorte em sua jornada. Ah, se quiser chegar a seu destino rápido, basta apenas que deseje muito...



"'Desejar'? Como assim 'desejar'?", indagou Jonas, enquanto via o anjo desaparecer no horizonte. Se o anjo queria lhe ensinar algo, não conseguiu. E Jonas nem se preocupou com as palavras finais do anjo, e apenas providenciou em poucos segundos um novo ônibus para si. Pelo menos daquele ponto da Avenida Brasil as opções de transporte eram maiores que próximo ao cemitério. Com isso acabou chegando rapidamente a Marina da Glória, onde em questões de minutos foi ter novamente com seu amigo Adalberto.

Adalberto também não entendeu as palavras do anjo e aparentemente não levou a sério as palavras da Sombra. Parecia até mesmo desconhecer ela totalmente, dizendo somente ao garoto para escolher com sabedoria seu próprio caminho, independentemente de ameaças. "A fé remove montanhas, lembre-se sempre disso.", disse Adalberto, afirmando sem enrolar que Jonas só precisava de fé em si próprio e em Deus para conseguir as coisas. Só que Adalberto não sabia que Jonas não era um jovem tão próximo de Deus quanto o velho fantasma imaginava.

E a noite virou dia e o dia virou novamente noite. A hora de dar a resposta a sombra havia chegado. Ao contrário do que fora dito, a luz não aparecera em nenhum momento e Jonas dava sinais que desistiria de toda essa dúvida cruel e seguiria sua não-vida em outro lugar. Foi quando ele chegou. Jonas e Adalberto foram tomados de súbito de uma sensação de perigo eminente e não tardou muito para que um cavalo completamente negro chegasse ao lugar tendo como seu dono o fatídico Cavaleiro Negro. Jonas fez menção que tentaria correr desesperadamente para salvar sua pele, mas quando o primeiro pé se mexeu, o cavaleiro negro já estava diante deles dois.

O cavaleiro negro trajava uma imponente couraça de placas negras completamente sem brilho adornadas com detalhes demoníacos em azul escuro. Seu elmo era completamente fechado permitindo-se somente que um brilho opaco branco pudesse ser visto e a silhueta quase oculta de seu rosto. As ombreiras da armadura eram largas e mostravam que o corpo do cavaleiro negro era muito forte, exalando confiança em si mesmo. Tinha presa na cintura uma enorme espada negra com seu cabo feito aparentemente em ossos e um crânio de onde saía a lâmina. Uma capa de pele de algum animal completava seu visual demoníaco. Seu corcel era tão negro quanto sua armadura e usava uma armadura adaptada também negra. Pendurados no cavalo estavam um enorme machado manchado de sangue e um escudo com o relevo de um crânio, de onde eram expelidos vermes os mais diversos.

– Nem adianta correr. – Afirmou o cavaleiro negro, exalando puro enxofre de seu capacete. – Vou te encontrar aonde quer que esteja...

– Saia daqui garoto, ele não é páreo para a força da... – Interrompeu Adalberto, colocando-se corajosamente entre o cavaleiro e Jonas.


"Calai a boca, filho de Deus!", berrou o cavaleiro negro. A pestilência de sua voz era tamanha que afetou até mesmo o mundo dos vivos, fazendo inúmeros peixes aparecerem boiando mortos em questão de segundos. Atormentado e sentindo-se compelido a proteger seu santuário, Adalberto se jogou diante do cavaleiro negro que num movimento limpo de sua lâmina dividiu o espírito em dois. Adalberto caiu no chão gritando de dor e tentando de qualquer jeito juntar as partes divididas. O cavaleiro negro não demonstrou nenhuma piedade do velho espírito e cravou sua espada na cabeça de Adalberto. Deu-se então um enorme flash luminoso e quando o mesmo cessou, não havia o menor sinal de Adalberto, sequer resquícios de sua presença.

Jonas foi tomado por uma sensação de perda maior que qualquer sensação que tivera. Era horrível e indescritível a sensação daquele momento, de ver uma energia divina e até certo ponto infinita se dispersar de tal modo, como se nunca tivesse existido. Adalberto não teria sequer um corpo pra enterrar, sequer alguém que lembrasse dele que não Jonas e talvez duas ou mais pessoas, ainda assim a dor naquele ambiente era absurda, pois mesmo a morte dos humanos não era finita, e sim um recomeço. O que acontecera ali era definitivamente o fim. E tomado por uma fúria sem igual Jonas saltou sobre o cavaleiro negro disposto a qualquer coisa que pudesse aplacar a dor que sentia em sua alma, até mesmo morrer em função disso...

– Idiota. – Sussurrou o cavaleiro negro.

Revelações de Jonas: Quarta Etapa da Viagem

Quarta Etapa da Viagem
A Chegada


Ainda era o dia 23 de outubro de 2005 quando Jonas acordou sem dor. Sentiu um súbito alívio ao se levantar e constatar que as marcas de bala haviam desaparecido. Estava novamente de pé, em pleno Largo dos Guimarães, sentindo-se bem como não se sentia há muito tempo. Mas a sensação passou ao escutar sirenes. Viu duas viaturas da polícia militar descerem a rua em alta velocidade e parando justamente no mesmo arbusto onde Jonas se lembrou que deveria estar. Muitas pessoas se aglomeravam em torno de algo que Jonas não conseguia ver, mas em seu íntimo sabia que não seria a melhor visão de todas.

Incapaz de resistir à própria tentação, Jonas se esgueirou entre as pessoas da multidão até se dar conta que não precisaria fazer isso, elas simplesmente o atravessavam. Antes que pudesse compreender em definitivo sua situação viu a si mesmo caído no chão. Seu corpo estava completamente parado e sem vida, os orifícios dos tiros que levava já tinham quase que coagulado e uma poça de sangue cobria o chão. Seu corpo segurava uma arma, de calibre 38, e ao seu lado estava seu executor, o Cavaleiro Negro. Jonas sentiu um novo calafrio quando se deu conta que o Cavaleiro Negro o conseguia ver, lhe olhava diretamente nos olhos.

"Desapareça", escutou em sua mente e de imediato obedeceu. Correu sem se preocupar com as condições físicas do local e foi atravessando inúmeras paredes até que de repente se chocou com algo sólido e caiu no chão devido à violência do impacto. Coçou os olhos por causa da dor e observou exatamente qual era o local onde havia se chocado. Era com uma casa de candomblé. Estranhou que não pudesse atravessar suas paredes e tateou procurando uma brecha, e a encontrou exatamente na porta do local. A atravessou curioso, e então foi tomado de assalto por uma visão estarrecedora.

O outro lado do muro daquela casa de candomblé dava para um pequeno pátio com bancos de madeira velha e algumas estátuas de santos da religião. Até aí, nenhuma surpresa, pois pessoas provavelmente iam naquele lugar procurando respostas ou algo semelhante. O que lhe causou a surpresa foi ver algumas pessoas que o viam e acenavam para ele, literalmente mescladas a outras que estavam sentadas nos bancos esperando atendimento. Outra pessoa, uma senhora negra aparentando quarenta anos vestindo túnicas brancas e de aparência bondosa, veio de dentro da casa e tocou Jonas.

– Eu sinto que esse não é seu lugar... – Disse a mulher. – Sente-se confuso?

– Como a senhora me vê? Onde estou? – Disse Jonas.

– No inferno! – Berrou um das pessoas mescladas a outras. – Só esqueceram de ligar a fornalha!

– Não meu jovem, ignore a revolta dele... Estamos do outro lado. – Interrompeu a mulher, tocando no ombro de Jonas e trazendo-o uma sensação profunda de paz.

– Outro lado de onde? Porque não consegui atravessar as paredes daqui?

– Estamos mortos, para os que dependem da matéria. E não atravessamos essa parede por força da fé.

– Fé! Outra vez essa palavra... – Praguejou Jonas, pensando seriamente em ir embora.

– Tenhas calma, jovem, quando vierem lhe buscar tudo vai se explicar...

– Quem?

– Nossos irmãos encarregados disso. Quando a luz aparecer caminhe em direção a ela e encontrará seu caminho. Não se torne como nossos irmãos aqui presentes que por falta de força de vontade não conseguiram se desgarrar de seus vínculos terrenos.

– Porque me agarraria?

– Fará, disso tenho a certeza, dado que quando encontrar sua família terrena e tiver plena consciência que jamais terá nada do que tem na terra...

– Nunca tive nada. – Praguejou novamente.

– Nunca? E o amor de seus pais? De seus amigos? Não pode levar a presença deles contigo... Ou mesmo apego por algum bem ou bens. Alguns estão agarrados a terra não por questões afetivas, mas por simples apego material. Uma moto que compraram, uma casa que se esforçaram pra construir, coisas mundanas. Sempre há algo que deixamos para trás na Terra.

As palavras da mulher bateram forte no coração de Jonas. Nesse exato momento deu-se conta de tudo que deixara para trás e das coisas que abandonara ainda em vida. Lembrou-se de toda a revolta que tinha dentro de seu coração pela situação financeira da família e de toda a inutilidade disso. Percebeu finalmente o esforço de seus pais em dar a ele condições mínimas de dignidade, quando na época em que receberam a indenização decidiram ao invés de comprar um carro – como Jonas queria, para curtir a vida. – optaram por um apartamento próximo do trabalho de seu pai. Percebeu o quanto fora ingrato em entrar na vida do crime ao invés de ter estudado e retribuído tudo que lhe fora dado de coração. E a pior coisa de todas, tinha completa noção que jamais poderia agradecê-los por isso, pois abraços seriam inúteis naquele momento. E Jonas chorou.

– Sinto alegria em ver que ao menos reconhece seus erros... Independente de quais foram eles. – Disse a mulher. – Meu nome é Glória, e o seu?

– Jonas. – Disse, enxugando as lágrimas e com a voz embargada.

– Bonito nome... Bem, infelizmente não posso ser muito útil a você nesse momento. Como pode ver a nossa volta, tenho muitas pessoas em uma situação pior precisando de muita ajuda, e você é inteligente para resistir a tentação que aparece a cada minuto em seu peito.

– Tentação?

– Sim, de tentar abraçar e agradecer seus pais, independentemente de qualquer consequência.

– Não, dona Glória, desse mal não sofro mais...

– Graças a Deus.

Jonas sentiu certa inquietação ao escutar o nome de Deus naquele momento. Uma sensação de revolta tomou seu peito ao mesmo tempo em que dona Glória se afastava dele e voltava a seus afazeres. Perguntava-se onde estaria Deus naquele exato momento. Gostaria de encontrar com Ele e dizer-Lhe boas verdades. Entender por que deixara tudo aquilo acontecer com ele, toda aquela revolta e todo aquele sonho que lhe ampliara sua visão e reduzira seu discernimento. Cansado de ficar parado naquele lugar estranho, saiu porta a fora e começou a caminhar aborrecido.

Seguiu acompanhando a linha do bonde no sentido do centro da cidade até a Estação Covanca de Bondes, onde graças a uma ruela de pedestres localizada nas proximidades chegou a rua Cândido Mendes na Glória. Jonas já fizera esse caminho algumas vezes, quando ia tomar banho na praia do Flamengo, e dessa vez faria o mesmo. Descendo a rua Cândido Mendes atravessou a Rua da Glória e avançou reto, indo em direção as proximidades da Marina da Glória. Ali um pensamento esguio passou pela sua cabeça e foi direto até a ponta do píer mais próximo. "Se Ele pôde, porque eu não poderia?", pensou Jonas e colocou seu pé esquerdo nas águas turvas da Baia de Guanabara. Nada acontecera. Seus pés afundaram na água e se molharam, somente isso.

– Falta um pouco mais de desapego, jovem. – Disse um marinheiro, vestindo roupas típicas e antigas, saindo de dentro de um dos barcos.

– Você? – Espantou-se Jonas. – Como?

– Estou morto, oras... Que nem você! Vira e mexe vem algum espertinho e tenta repetir aquele trecho da bíblia aqui, e sempre acabam mais molhados que peixe. – Riu o velho, estendendo a mão para Jonas amigavelmente. – Prazer, meu nome é Adalberto, qual a sua graça?

– Jonas.

– Vejo que é jovem, pelo jeito foi mais uma morte trágica, não foi?

– Como sabe?

– Estou aqui nesse cais desde 1825 quando me afoguei bêbado depois de uma farra de marujos, acompanhei a evolução, opa, INvolução da raça humana nesse cais por mais de cem anos e hoje em dia tenho visto muitos jovens que nem você morrendo antes da hora, se é que existe hora certa pra morrer...

– E porque está aqui a tanto tempo? Apego?

– Opção. Preferi continuar na Terra, somos livres para fazermos o que quiser. Apesar dos conselhos de nossos conterrâneos, preferi evoluir aqui mesmo, cercado pelo meio em que sempre vivi... Acabei me tornando protetor dessas águas. Além da brincadeira com a água, o que lhe trouxe aqui, Jonas?

– Pensar na vida... Aliás, além vida. Senti muita raiva e agora queria extravasar um pouco mergulhando...

– Raiva de quem?

– De Deus... Sabe de algum modo sinto que Ele é o culpado por minha condição, ele deixou coisas acontecerem comigo e com aspectos que me cercam que...

– Desculpa interromper, mas você está redondamente enganado.

– Por que estou enganado?

– Porque está. Coloca uma coisa na sua cabeça, só uma palavra: livre-arbítrio.

– Heim?

– Isso mesmo, você fez suas escolhas, Deus deu algumas opções, e acredito que você sabe quais são, mas Ele não escolhe. Você escreveu seu destino, Deus apenas dá o livro e o lápis. Está escrito.

Jonas agradeceu ao marinheiro pela lição e sentou-se no cais para observar o horizonte. Sentia a brisa do mar e todo o conforto que ela trazia. Não estava mais com a raiva de antes e nem com sua tristeza, apenas um pequeno resquício de mágoa por ter constatado que somente a sua própria morte o fez perceber nuances de sua própria vida e a quantidade impressionante de erros que cometeu desde que despertara do coma, aliás, desde que ele e sua bicicleta se chocaram contra um caminhão. Passou todo o dia e a noite sentado, observando o horizonte, como se estivesse em transe de tão calmo. No dia seguinte sua serenidade foi interrompida por Adalberto, chamando-o com extremo interesse.

– Hei! Jonas vem correndo até os escritórios... Tenho que te mostrar algo rápido!



Jonas correu o mais rápido que conseguia, e isso era bem rápido, e foi até um pequeno escritório que ficava na parte administrativa da Marina da Glória. Duas mulheres, provavelmente que trabalhavam ali, discutiam a respeito da violência da cidade. Uma delas apontava para uma notícia e disse que tinha ouvido os tiros de perto, porque morava perto do Largo dos Guimarães. Imediatamente Jonas sentiu um arrepio na nuca e foi ver a página da internet mais de perto. Realmente, estavam justamente falando dele no jornal. Ao que parece Jonas havia ficado famoso do pior modo, morrendo de maneira trágica. Seu enterro, pelo que informava na notícia seria ainda nesse dia e até dizia o local. Algo palpitou na alma de Jonas.


A fama vem rápido... Infelizmente.


– Quando eu morri não tinha dessa parafernália não... Não fui citado nem nas fofocas das madames da corte... – Comentou Adalberto. – E olha que pra isso acontecer era difícil.

– Você acha que devo fazer isso? – Perguntou Jonas.

– Isso o que? Assistir seu enterro?

– Exato.

– Olha, se eu fosse aquelas madames que pregam o desapego da carne, te diria pra não ir, mas você me parece um menino porreta, vai resistir a abraçar seus pais. Sabe o que acontece se tentar abraçá-los, né?

– Tenho idéia...

– Olha, já vi muita gente boa se perder assim... Quando um de nós toca um vivo com quem tinha laços muito fortes que não tenha dons causa um troço que chamo de "grude", porque é isso mesmo que acontece, você gruda num vivo e pra sair é um Deus nos acuda.

– Eu vi? Mas não é voluntário? Pensei que pra sair fosse só sair...

– Não é assim não, você toca e se vicia nos sentimentos da carne. Toda aquela volúpia de sentimentos a seu respeito se eleva muito e você acaba ficando viciado em vida material, que nem uma droga. Só que o dono do corpo tá lá e você não tem como possuir e nem ele te expulsar na maioria das vezes. Geralmente sai com o tempo, pois a pessoa te supera e vice-versa, mas...

– Mas o quê?

– Se a pessoa não ia com a sua cara, se ela queria teu mal e você gostava muito dela sem saber dos reais sentimentos dela.... Bem, você pode ser tomado pelo sentimento de vingança e aí é um mal pior que qualquer outra coisa... Você fica louco, transtornado só querendo que ela sofra o que está sofrendo por se sentir enganado. É ruim demais isso.

– E como se escapa disso?

– Geralmente com ajuda... As vezes acontece de desistir e partir, mas pior é quando a pessoa vai na intenção. Assim que descobre que pode tudo decide se vingar nos seus inimigos. Haja força nesses casos... Mas aí estou entrando demais na história e você tem muito tempo pra aprender isso.

– Queria saber mais...

– Procure um professor, sou apenas um marinheiro... Agora, você vai ou não no seu enterro?

– Acha que devo?

– Você decide, és o senhor de seu destino.

– Irei... Temo cair na tentação, mas vou do mesmo jeito.

– Boa sorte, aqui nos separamos.

– Não vem comigo?

– Não saio desse lugar, por coisa alguma no mundo...

Jonas não procurou entender os motivos desse simpático fantasma e pegou carona em um ônibus até chegar ao Cemitério do Caju. Precisava ver seus pais uma última vez, nem que fosse para se despedir do jeito que desse, sem tocá-los. Sua experiência prévia com o Rio cinzento já lhe fazia temer suficiente tentações, e desse acontecimento nenhum de seus recém encontrados fantasmas parecia ter idéia. Jonas inicialmente pegou um ônibus que saltou na Praça 15 e depois pegou o 290 com destino ao Cemitério do Caju. O ônibus estava deserto, exceto pela presença do motorista e de uma funcionária da empresa de ônibus que durante a viagem toda reclamava de sentir calafrios sempre que olhava para o lugar onde Jonas se sentara. Jonas apenas riu da situação e dos comentários e deixou o tempo passar. Do mesmo modo que ocorrera na casa de candomblé, Jonas só conseguiu atravessar as portas do cemitério, suas paredes eram intransponíveis. E somado ao fato da área do cemitério do Caju ser gigantesca, ele somente conseguiu encontrar seus familiares e amigos depois de mais de três horas de procura.

A capela era pequena, algo bem típico dos cemitérios mais baratos. Apenas o espaço do caixão e bancos de cimento para os presentes ao enterro. O padre entrava na capela do mesmo modo que os demais, sem nenhuma entrada especial que fosse. A mãe de Jonas chorava copiosamente sobre o corpo de seu filho. Intercalava com essa tristeza momentos de profunda revolta, onde xingava de toda forma o sistema e a polícia, principalmente a polícia, que lhe arrancara seu filho. O pai de Jonas parecia mais controlado, mas por dentro estava completamente revoltado, e mais consigo mesmo, pois a seu ver falhara em dar ao filho condições morais para ter escolhido o caminho certo e não o errado. Jonas via tudo aquilo e falava sem sucesso com os pais. "Estou aqui! Pai! Mãe!", gritava sem sucesso, sendo ignorado e às vezes tendo a impressão de que sua mãe sofria mais quando ele falava. Por um instante pensou em abraçar a mãe, mas as palavras do velho marinheiro, muito mais eficientes que as de Glória, o fizeram parar antes que fizesse qualquer besteira.

Cansado de sofrer, Jonas saiu da capela e deixou sua família para trás, não fazia mais sentido tudo aquilo, nada daquilo. Foi quando se sentiu profundamente observado. Jonas correu as lápides e o terreno do cemitério com os olhos, deu pulos e subiu em caixões para ver se conseguia encontrar seu observador. Nada. Assim que desistiu de procurar escutou o som de algo escorrendo para próximo dele. Era a sombra.

– Precisamos conversar, Jonas... – Disse a Sombra.

Revelações de Jonas: Terceira Etapa da Viagem

Terceira Etapa da Viagem
A Revelação 


Como uma sombra...


"Comigo.", escutam ambos quando uma sombra negra se esgueira pelo chão e dele se ergue como uma massa disforme com dois olhos cintilantes em um branco calmo e ao mesmo tempo vazio de qualquer sentimento ou mesmo presença. O anjo faz menção de puxar sua espada e voar contra a massa negra, mas prefere optar pelo diálogo. Algo lhe diz para escutar as palavras da Sombra dessa vez, pelo menos por enquanto.

– Vejo que realmente vocês tiraram lições disso... Ele precisou ser humilhado e ver várias de Suas colônias dizimadas para aprender a olhar para baixo de vez em quando e se preocupar com as formigas do quintal... – Disse a Sombra, com uma voz suave e afiada. – Bom escutar isso de você, mesmo preferindo que outro o dissesse... Jonas, deve ter visto meu amigo por aqui, não?

– Quem? – Perguntou Jonas.

– Não se faça de rogado, me refiro ao cavaleiro negro... É, não foi uma ilusão de seus olhos o que viu, sua sanidade está perfeita. – Respondeu a Sombra.

– O que deseja aqui? Não vê que o momento não é propício... – Interrompeu o anjo, segurando no cabo de sua espada.

– Tenha calma, jovem Taniel... Não vou fazer mal algum a vocês, só vim dar uma informação útil a todos vocês do andar de cima. – Discursou a Sombra.

– Que tipo de informação?

– O Devorador de Almas se tornará meu contratado ao final desse ano terrestre, e, além disso, me tornarei seu mestre.

– Mas... Mas...

– Nada de "mas", você sabe no fundo de sua alma que seu amigo só possui dois caminhos agora, um leva a aniquilação total e outro o leva a meu caminho, a neutralidade. E a neutralidade a meu ver é menos destrutiva que qualquer outra coisa. E acrescento, meu servo irá bloquear os dons de seu amigo de comum acordo, até uma data por mim estipulada, e você será informado quando será esse limite. A mulher pensará que foi ela quem fez isso, deixemos a tola pensar assim.

– E o que você ganha com isso?

– Ora, que isso meu amigo... Até parece que não me conhece melhor que todos os papagaios de Deus... Ganho status quo, somente isso. Agora, quando o pai do Devorador de Almas vier em meu encalço terei os dois únicos que o feriram ao meu lado. Eles pela força de nosso acordo, me protegerão dele... Antes que pergunte, nunca te direi por que Mahl me quer, isso você vai ter que descobrir sozinho.

– E porque eu tenho que assistir isso? – Interrompeu Jonas, se colocando entre eles.

– Porque eu, tanto quanto o anjo sabemos que ninguém vai acreditar em você. E se insistir será tomado como louco e sofrerá por causa disso. – Afirmou a Sombra. – E, o melhor, ninguém pode culpá–lo por não querer dizer, ou melhor, se quiser esquecer tudo que viu hoje. Ninguém, pois você não pediu por isso. E mais, precisamos sempre de testemunhas, sempre. Senão, não terá acontecido.

– Então estou ouvindo tudo isso a toa?

– Sim e não. Depende do uso que fará do que ouviu... A informação é sua, mas o que fará com ela é que vai definir a utilidade disso, logo, garoto, boa sorte.


Antes que Jonas pudesse dizer algo mais a Sombra escorreu pelas pedras e desapareceu nas frestas do desfiladeiro. O anjo sentou–se sobre uma pedra e aquieceu–se. Jonas sentou ao seu lado e preferiu o silêncio. Sua cabeça latejava tentando entender tudo aquilo. O sonho a cada minuto estava se tornando lógico demais e ao mesmo tempo insólito. Era coisa demais para ele e esse pesadelo estava começando a perder a graça, "graça" que por sinal nunca teve. "Como eu acordo?", se perguntava cada vez mais. Então a imagem do rio cinzento brilhou forte em sua mente.

Cansado de tantos questionamentos e de toda aquela bagunça, Jonas se levantou e procurou por outra trilha de modo discreto, sem que o Anjo percebesse. Dificilmente o anjo perceberia, dado que estava imerso em seus próprios problemas. Assim que encontrou uma trilha desceu por ela o mais rápido que pôde. Tamanha foi a irresponsabilidade de Jonas que ele simplesmente despencou pela trilha, caindo a poucos metros da margem do rio. Enquanto caía escutou com nitidez o bater das asas do anjo, sabia que tinha pouco tempo antes que aquele anjo chamado Taniel viesse salvá–lo do rio, portanto, tinha que ser rápido. E foi, Jonas nem se levantou direito e pulou no Rio Cinzento.

Quando faltava menos de um metro para tocar a água do rio cinzento, os braços surgiram para buscá–lo. A princípio Jonas sentou o tocar delicado das mãos o erguendo sobre as águas, parecendo aqueles roqueiros em shows quando pulam no público e são carregados. Mas aí veio a dor. As mãos que o seguravam começaram a puxar partes de seu corpo em várias direções, desesperadas e sem soltar. Nenhuma parte de seu corpo era poupada e a dor era indescritível, parecia que seria completamente despedaçado e depois afundado. Sentiu quando seus braços e pernas foram deslocados pela força desses braços e quando estava quase desmaiando de dor viu o braço do anjo surgindo acima dele e erguendo–o velozmente para longe de rio. Estava salvo, completamente ferido e dolorido, mas estava salvo. O anjo depositou–o novamente no mesmo lugar onde estavam antes e fez menção que esbravejaria com Jonas, mas aparentemente desistiu e começou a voar novamente, mas dessa vez iria embora.

– Fique com Deus, Jonas... E cuide-se muito bem... Provavelmente não o verei mais. – Despediu–se o Anjo. – E desculpe-me pelo que assistiu hoje...

Jonas estranhou a atitude do anjo, quando percebeu que tinha algo errado com si próprio. Sua visão não estava, mas tão bem assim, não conseguia mais sentir do mesmo modo suas mãos e seus pés. Sentia cheiros pela primeira vez desde que chegara ali e escutava vozes ao longe, mas que se aproximavam mais. À medida que os segundos passavam, ele reconhecia nessas vozes os lamentos de sua mãe e seu pai. Reconhecia também pequenas agulhadas no braço. Então mais um flash, igual ao que vira no início de tudo. E voltava a se sentir naquela maca do hospital Souza Aguiar. Pela primeira vez estava grato de sentir o fedor daquele lugar. E para sua surpresa, conseguiu acordar.


Hospital Souza Aguiar, Centro - Rio de Janeiro, RJ.


Seu pai e sua mãe o abraçaram forte e o beijaram com muito carinho. Finalmente depois de três anos seu filho acordara. Já tinham perdido as esperanças, mas desde que a diretoria do hospital mudara dois meses antes, levando com ela os médicos corruptos que mantinham Jonas sedado, o jovem já demonstrara súbita melhora. Era dia vinte e quatro de Novembro de dois mil e dois, o incidente tinha acontecido em abril de dois mil e um, ou seja, Jonas sem perceber tinha passado quase um ano naquele lugar. E talvez nem se daria conta disso, pois ao despertar ele fez questão de considerar o ocorrido apenas como um sonho ruim e seguiu sua vida.

E seguiu sua vida. Seus pais processaram o hospital pelo ocorrido, pois foi descoberta a irregularidade dos médicos de Jonas, e conseguiram juntar dinheiro suficiente com a indenização para comprarem um apartamento em Santa Tereza. Considerando que antes eles moravam nos arredores de Nova Iguaçu, era uma ótima mudança, ainda mais que o pai de Jonas era porteiro em um prédio de Copacabana, isso acontecendo já em junho de dois mil e quatro. Mas para Jonas essas melhorias não foram suficientes. O sonho, mesmo sendo esquecido, deixou marcas na consciência de Jonas que o fizeram se revoltar com a vida que levava. Ainda eram pobres, apesar de possuírem casa própria, e, como se sabe, quando um adolescente pobre se revolta com a vida numa cidade como o Rio de Janeiro somente existem dois caminhos. E ele escolheu o do crime.

Dia vinte e três de Outubro de dois mil e cinco, Jonas e outros comparsas tinham acabado de assaltar um banco na Avenida Mem de Sá. Eram ele e mais quatro garotos, todos inexperientes. Tinham que roubar porque não faziam nem dois dias uma operação do Bope tinha levado embora toda a droga que eles tinham na boca de fumo, e agora tinham que pagar pelos produtos perdidos ou em dinheiro ou com a vida deles e de familiares. O próprio bandido do morro deu pra eles o serviço, era dia de pagamento dos funcionários das redondezas e nem precisariam entrar, só ficar na moita e esperar o office-boy responsável por depositar o dinheiro chegar para assaltá–lo.

Preferiram assaltar o banco e deu tudo errado. Os funcionários chamaram a polícia e sendo o batalhão muito perto dali, em poucos minutos o lugar estava repleto de policiais, todos dispostos a garantir que nenhum daqueles bandidos voltasse vivo pra casa. Jonas, aproveitando–se de sua cor de pele, conseguiu sair do cerco se passando por refém e correu para Santa Tereza. A farsa não durou muito, mas durou o suficiente para ele escapar da Mem de Sá e deixar pra trás seus companheiros, que foram mortos pouco depois na troca de tiros. Mas o que Jonas não sabia é que o destino conspirava contra ele.


Largo dos Guimarães, Santa Tereza - Rio de Janeiro, RJ.


Quando chegou a Santa Tereza, próximo ao Largo dos Guimarães, viu que estava sendo seguido por alguém muito rápido. Esgueirou-se por entre os becos e árvores do local até que julgou estar em segurança. Ficaria ali algumas horas até tudo se acalmar e passaria uns dias em outra cidade ou até mesmo em algum lugar distante até que esquecessem o crime. De repente escutou um disparo e sentiu uma dor forte na barriga. Tinha sido atingido. Seus olhos procuraram pela fonte e então viu o cavaleiro negro de seu sonho. Forçou os olhos com dor e viu um policial baixinho, de arma em punho, olhando para ele com muito ódio.

– Você é o cavaleiro negro... Você... – Balbuciou Jonas, sentindo muita dor.

– Então agora entendi porque algo me disse pra atirar sem perguntar... Eu me lembro de você. – Disse o policial.

– Porque atirou...?

– Porque você sabe demais, mesmo que apenas em sonho você vislumbrou coisas e descobriu coisas que te dariam outra vida que não essa de bandido, mas cada um faz suas escolhas... Ele pode não te matar pelo que sabe, mas eu sim por ter me reconhecido, antes ficasse de bico fechado... E quando chegar ao Inferno vou até você e destruirei sua alma. Você teve tudo e desperdiçou... É sempre assim.

– Por quê? Por quê?

– Porque quero! Ah... Cala a boca!

O policial deu mais três tiros no garoto. Enquanto a vida de Jonas escorria pelo chão e sua alma alçava vôo, o policial pegava seu celular e ligava para alguns amigos. Iam desovar o cadáver nas paineiras todo coberto de pó de pólvora. Se acaso alguém o encontrasse dariam como execução dos traficantes por causa do fracasso do roubo e só. Assim terminava a vida de Jonas, alguém que por algum tempo teve conhecimento e uma possibilidade que poderiam ter dado a ele outra vida, mas ele negou tudo. E como tal, pagou o preço em não ter feito uso do que sabia. Pois aqui se faz e aqui se paga.

Revelações de Jonas: Segunda Etapa da Viagem

Segunda Etapa da Viagem
A Folha de Parreira

Depois de muito esforço Jonas finalmente conseguiu chegar novamente a borda do desfiladeiro. Deixava para trás o rio cinzento de muitos braços e carregava consigo uma grande questão, se esse era um sonho ou algo mais. Jonas tornou a tatear o chão, buscando alteração no que percebia, para comprovar se era ou não um sonho, porém nada encontrou de diferente. Procurou a seguir por pontos de referência de quanto recém despertara. Se acaso tivessem mudado de lugar ou desaparecido, com certeza se tratava de apenas um sonho, ruim, mas ainda assim um sonho. Nada mudara, estava tudo igual. Ou esse era um sonho muito mais complexo que todos que tivera ou algo muito estranho estava acontecendo.

Foi então que percebeu que estava completamente só. Calculava que já tinham se passado pelo menos uma hora desde que acordara e ainda assim não tinha visto nenhuma pessoa, nenhum pássaro no céu ou mesmo tinha sentido uma brisa sequer, mas também não fazia calor. Simplesmente sentia nada, o lugar parecia completamente morto. O único som que escutava vinha da tentação do rio cinzento, do qual queria distância. Nunca tinha se dado conta do quanto à solidão era ruim até aquele momento, mesmo enfermo naquela cama de hospital Jonas ainda sentia a presença humana ou mesmo a presença irritante dos ratos que dividiam o espaço dos pacientes do Souza Aguiar. Naquele momento até mesmo a presença dos médicos que lhe faziam tanto mal seria bem vinda para o adolescente.

Jonas respirou fundo e seguiu seu caminho. Pensou em se guiar pela luz do sol, mas ao olhar para o céu viu apenas densas e pesadas nuvens em uma tonalidade também vermelha, mas muito próxima do negro. Amaldiçoou-se por não ter reparado nesse detalhe antes. Viu no horizonte uma montanha maior que as demais, parecendo até mesmo estar além do cânion. Tomou–a como direção a seguir e começou a caminhar. Jonas andou por horas nesse rumo fixo, sempre em linha reta até finalmente conseguir sair do cânion vermelho. Mas a montanha continuava distante e de agora em diante entre eles havia um deserto aparentemente sem fim, e completamente vermelho. Mas um vermelho mais escuro, mais enegrecido pelo tempo.


Vermelho... O tom predominante...


Completamente exausto da caminhada, Jonas sentou no chão e preparou–se para a grande caminhada que faria. Teve a estranha impressão de que algo estava errado. Olhou para trás e viu o caminho que percorrera, mas ainda assim não era o que lhe causava a sensação. Tornou a olhar em torno de si até que finalmente percebeu que o tempo não havia passado, pelo menos não no seu conceito de dia e noite. Apesar de caminhar por horas no desfiladeiro não havia acontecido nenhuma alteração no que dizia respeito à luminosidade do local. Tudo continuava sempre da mesma forma, a única alteração que existia no seu ponto de vista eram suas pegadas marcando o caminho de onde viera e mais nada.

Jonas se levantou, respirou fundo e recomeçou seu caminho. Ele precisava se focar em alguma coisa para não enlouquecer, a solidão estava começando a fazê–lo ver coisas. Pensava nisso porque alguns minutos antes de chegar ao deserto, podia jurar ter visto ao longe a figura de um cavaleiro negro montado em um corcel negro exatamente na divisória entre o cânion e o deserto. Era impossível que em pleno século vinte e um Jonas ainda avistasse cavaleiros, e realmente parecia ter sido, dado que o cavaleiro desapareceu sem deixar rastros quando Jonas coçou os olhos pra forçar a lucidez.

Com o passar das horas caminhando, Jonas começou finalmente a sentir algo que tinha esquecido como era, sentiu sede. Por um segundo lamentou estar longe do rio cinzento, mas uma tapa na testa o fez deixar de lado essa maldita vontade. Caminhou até o topo da duna mais alta que conseguia distinguir e tentou procurar por algum oásis. Durante a procura viu que estava finalmente próximo de seu objetivo, a montanha, pelo menos era o que lhe parecia. Por mais que esforçasse a visão Jonas não viu sequer a ilusão de um oásis, e apenas sentia sua sede aumentar. Já tinha ouvido histórias, principalmente em quadrinhos, de pessoas que sobreviviam no deserto se alimentando de cactos. "Ótimo, posso comer cactos... Mas onde encontro um?", indagou Jonas, sem localizar nenhum no vazio do deserto. 



No topo... No alto...


Sem nenhuma esperança de encontra água, ou mesmo que fosse começar a chover, Jonas começou a descer lentamente a duna rumo à montanha. Se algo tinha que acontecer de bom, esperava que acontecesse naquele momento. Foi quando escutou o bater de asas sobre sua cabeça. Jonas olhou para o alto procurando pela fonte do som, mas nada encontrou. O que quer que esteja por ali, provavelmente estaria além das nuvens, ou oculto por elas. Sentiu medo e correu muito.

Não foi uma decisão sábia. Imerso em seu pavor pelo som que não cessava Jonas acabou se desequilibrando e rolou pela duna até chegar a sua base. Ainda assim, com muita dor e parecendo um bife empanado, Jonas se levantou e tornou a correr. E correu muito, mesmo sentindo o esforço de se locomover na areia desse deserto. Sem olhar para trás nem pôde perceber quando algo saiu das nuvens e deu um rasante em sua direção, e no final não conseguiu escapar de fortes mãos que agarraram seus ombros e levaram Jonas para o alto. Completamente apavorado, Jonas simplesmente desmaiou.

A consciência de Jonas tardou a voltar, mas quando voltou Jonas tentou fazer isso de modo que quem quer que o tenha pegado não percebesse. Escutava novamente o som de rio próximo, e com o canto do olho conseguiu ver que estava novamente no mesmo desfiladeiro de onde saíra. Tornou a passear pela área com seus olhos e viu dos pés descalços próximos a ele, e uma profunda sensação de paz percorreu todo seu corpo. Ergueu a cabeça confiante, procurando pelo dono dos pés e tamanho foi seu espanto que se levantou rápido. Era um anjo.

O anjo vestia um manto azul celeste brilhante e portava um cinturão dourado onde nele estava presa uma enorme espada cuja bainha arrastava no chão. Tinha dois pares de asas nas costas, sendo um par maior que o outro, dando alguma semelhança com o formato das asas de borboletas. Seu semblante parecia castigado por batalhas e no olho esquerdo tinha a cicatriz de algum corte, mas o olhar permanecia o mesmo, tranquilo e sereno. Seu cabelo era negro e comprido, mas completamente liso. Sua mão direita carregava um belo arco composto, ricamente detalhado e aparentemente feito de ouro mesclado a alguma madeira. A mochila de flechas provavelmente estaria nas costas do anjo, logo atrás das asas, como indicavam duas tiras douradas nos ombros do anjo. Imediatamente Jonas se deu conta de estar completamente nu e sem nenhuma vestimenta apropriada, tratou de esconder sua genitália com as mãos. Imediatamente o anjo o interpelou:

– Não há necessidade de folha de parreira nesses domínios, Jonas. – Disse o Anjo.

– Como? Como sabe o meu nome? – Perguntou Jonas, obedecendo ao anjo com receio e se enchendo de dúvidas.

– Não há nada que Ele não saiba, e como parte Dele... Apenas sei que sei.

– Se sabe tanto, onde eu estou? – Perguntou o jovem.

– Onde julgas estar?

– No inferno! Isso aqui não tem nada, apenas essa terra vermelha e aquele maldito rio que parece que quer me tragar pra suas profundezas! Eu sei que você é alucinação causada pela solidão...

– Se assim o diz, assim o é...

– Em? Está querendo insinuar que isso só é assim porque eu acredito que seja assim?

– Talvez sim, talvez não... Tudo é complexo demais para ser resumido numa simples cor ou mesmo em um rio, e ao mesmo tempo é mais simples do que supõe.

– Aonde quer chegar com essa filosofia? Eu não entendo...

– Lugar nenhum, apenas sempre quis dizer isso...

– Hã? Você disse isso tudo "apenas" porque sempre quis dizer?

– Onde está escrito na Bíblia que somos desprovidos de humor?

– ...

– Imaginava essa reação, vocês quando chegam sempre reagem dessa forma...

– E então, onde estou?

– Bem, apesar de toda essa desolação, este aqui é, ou melhor, deveria ser o seu lar. Já leu ou ouviu falar de Chico Xavier?

– Já, minha avó estava lendo coisa dele algum tempo atrás, quando meu avô morreu...

– Bem, em alguns dos livros dele ele descreve com certa perfeição, auxiliado claro, como é o mundo dos mortos.

– Então estou morto?

– Ainda não... Diria que em um profundo coma... Continuando, decerto sabe algo sobre colônias para onde os espíritos vão quando desencarnam e tudo o mais. Bem, essa aqui é a sua colônia, para onde deverá ir quando morrer. Ou melhor, deveria, já que pelo que podemos ver ela não está exatamente do jeito que você esperava. Lembra que nos livros de Xavier diziam que as colônias tinham suas proteções contra invasões de outros seres? Pois bem, se olhar em volta vai ver o que acontece quando tudo dá errado. Ah sim, já olhou bastante.

“Deve estar se perguntando como tudo isso aconteceu? Bem, faz alguns anos que isso aconteceu e de certa forma tenho que admitir que foi um erro puramente nosso. Quando digo nosso, me refiro a nós, o que chama de "anjos". Por muitos anos nossos narizes estiveram mais erguidos que até mesmo a divindade e quando isso acontece, quando cremos sermos perfeitos, é quando cometemos os maiores erros. E esse ano cometemos o pior de todos. Enviamos para seu mundo diversos espíritos que tinham uma profunda responsabilidade sobre o que viria a acontecer na Terra, e que ainda há de acontecer. Demos a eles treinamento e um sentido para viver, deixamos eles informados de tudo a nosso respeito, demos a eles as memórias necessárias e a esse grupo foram acrescentados alguns de nossos melhores Arcanjos, e para resumir, enviamos com eles a Voz e a Justiça.”

“Mas fomos soberbos e subestimamos nossos inimigos. Acreditávamos tanto em nossa superioridade que não percebemos que nossos irmãos tinham sido enviados para a derrota total. Erramos em julgar que poderíamos realmente fazer diferente do que está escrito no apocalipse de João. Tentamos fazer antes o que tem momento certo de acontecer, e nossos irmãos pagaram o preço. E nós também.”

“Certos da vitória, deixamos que o Primogênito de Mahl, conhecido como o 'Devorador de Almas' encarnasse. Ele surgiu de uma parte de todo o mal que existe, sua cria direta, mas há eras havia abandonado a causa de seu criador e se tornado uma das forças do bem maior, adotando Deus em seu coração. Porém subestimamos o planeta Terra e as regras da encarnação. E encarnado o filho de Mahl era presa fácil para que outros encarnados, associados a espíritos malignos, instigassem-no até despertar novamente seu mal. Quando isso aconteceu o Filho de Mahl voltou seu ódio contra todos nós.” 


O Mal Em Tudo Que Existe.


“Essa colônia estava em seu caminho. O filho de Mahl, mesmo preso a Terra, conseguiu manifestar tamanha força que sozinho destruiu todo esse mundo, deixando dele apenas as cinzas dos espíritos que aqui residiam. O rio cinzento que viu é formado pelos restos das energias provenientes do desespero dos espíritos ao serem devorados. E sempre que alguém se aproxima de seu leito os vestígios tentam desesperadamente buscar ajuda e acabam com isso destruindo todos que tocam. Teve sorte, ou habilidade, para escapar do Rio. Agora estamos tentando descobrir o que fazer para contê–lo e não temos nenhuma ideia de como e nem quando faremos. Até lá a esperança será substituída pelo desespero. E pela culpa de nosso erro.”

– E porque está me contando tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Nunca teve desejo de desabafar um pouco? No fundo, somos todos iguais... Precisava disso, e sei que é seguro contar tudo a você.

– Porque é seguro?

– Quem, no mundo onde você vive, vai tomar como verdadeiras as palavras de um jovem que despertou de um coma profundo depois de dois anos sendo sedado pelos médicos? Considerarão como devaneios resultantes do coma e das inúmeras vezes que escutava pessoas rezando pelas almas de seus entes queridos nas camas daquele hospital.

– Mas tem sempre alguém que acredita...

– Mas a maioria das pessoas da Terra é incrédula. Até mesmo você não está acreditando no que digo, eu sinto isso, e apenas deve julgar ser resultado dos sedativos nesse exato instante... O que não deixa de ser verdade... Mesmo que eu lhe diga isso com todas as letras, que isso que lhe passo é real, você e as demais pessoas têm uma visão muito romantizada do além para crerem que as coisas estão indo mal.

– Você fala como se a culpa fosse nossa...

– E é. Se existe alguma culpa pelo despertar do Devorador de Almas essa culpa é também da humanidade. Vocês deixaram o mundo ficar do jeito que está. Nós, anjos, apesar de nossa soberba, não tivemos nenhuma participação nisso desde o Pacto das Águas. Entenda, Deus não interfere na Terra desde que deu a vocês o livre arbítrio. Nós apenas tentamos proteger vocês de ameaças externas, mas de vocês mesmos nunca mais os protegemos, exceto quando vêem a nós com suas súplicas. Quando enviamos o Devorador das Almas e seus guardiões para a Terra não esperávamos que a mesma tática que destruiu Adão fosse usada novamente por vocês.

– Como assim? O que Adão tem a ver com isso?

– O Devorador das Almas foi enganado por uma mulher em sua busca, mulher essa que aceitou fazer o que fez em troca de uma enorme recompensa. Ela fez o que fez sem ter noção das consequências e quando essas apareceram, ela pegou sua recompensa e partiu sem olhar para trás. Deixando ele sozinho.

– E agora? Onde ele está?

Revelações de Jonas: Primeira Etapa da Viagem


Primeira Etapa da Viagem
 O Embarque

As pessoas sempre imaginam que exista algo belo e bonito no além-vida, sempre esperam que em algum instante de suas ridículas passagens pelo planeta Terra passem a ter algum significado.

Doce mentira.

Anos atrás o pequeno Jonas teve uma experiência fora de seu corpo completamente contrária a qualquer coisa que muitos entendidos do "além-vida" pregam. Ele estava internado entre a vida e a morte há pelo menos dois anos no hospital Souza Aguiar, Rio de Janeiro, após um trágico acidente envolvendo bicicleta, um caminhão e muita imprudência. Seus pobres pais não tinham nenhuma condição de arcar com custos de hospitalização particular, o que significava que literalmente ele estava nas mãos de Deus.

Claro, quando se está predestinado a morrer não importa onde esteja internado, isso há de ocorrer. Entretanto, no caso dele o motivo real de sua condição era apenas um coma induzido por médicos corruptos que queriam faturar alguns trocados a mais desviando dinheiro do SUS que seria necessário para o suposto tratamento do menino. Na noite de vinte e um de abril de dois mil e um, um dos médicos errou na dose de sedativo, e, por não se importar efetivamente com o jovem, tudo começou.

Primeiro o de sempre. Um pequeno formigamento em seus pés, algo tênue, imperceptível não fosse o seu estado semiconsciente. Como parte do tempo ou sonhava ou ouvia as vozes das pessoas a sua volta, sem jamais conseguir acordar ou dar sinais, julgou estar novamente entrando no seu sono diário. Considerando a frequência com que acontecia desde sua internação, ele já não se desesperava como antes e deixava simplesmente acontecer. Nada podia fazer a não ser se deixar levar, era menos traumático que qualquer tipo de resistência.

Porém dessa vez algo de diferente aconteceu. Apesar de muitos amigos, colegas e parentes já terem comentado disso e nunca tinha dado razão a essas palavras, soube identificar de imediato o que estava acontecendo consigo. O sono desapareceu, dando lugar a uma profunda leveza. A seguir passou a ver seu corpo com uma nitidez completa, de suas mãos até a ponta de seus pés. Daí a leveza foi substituída pela impressão de que flutuava em uma piscina. Sentia–se livre de qualquer um de seus sentidos e, principalmente, de todo o sofrimento dos últimos anos. Então viu uma luz acender sobre sua cabeça em um flash intenso que lhe ofuscou a visão e levou embora sua consciência.

Jonas acordou algum tempo depois. Se foram dias ou horas não tinha como saber, mas não gostou do que viu. Estava nu, na borda de um imenso cânion. Seus olhos doíam muito, devido ao tom avermelhado do ambiente. "Será que estou no inferno? Ou é algum sonho?", pensou enquanto vagava cambaleante pelo cenário desolado. Tentando sentir um pouco do local onde estava, Jonas pegou um pouco da terra local. O material era ralo e fino, semelhante a açúcar de confeiteiro, com odor acre parecido com o de sangue, com textura úmida. E as rochas pareciam ser feitas de material semelhante. 

 
Longe... Muito longe...


Olhando para o interior do cânion, conseguia ver um pequeno rio de águas cinzentas correndo em direção a algum lugar por entre as curvas do desfiladeiro. Jonas misteriosamente sentia–se atraído por esse rio ao mesmo tempo em que uma sensação lhe compelia a se afastar o máximo possível dele. Mas o jovem tinha um defeito, ele era profundamente curioso, e imprudente – óbvio, pois se não fosse não teria parado no hospital. – e começou a se esgueirar pela borda do desfiladeiro procurando uma trilha onde pudesse alcançar esse rio.

Passados alguns minutos e alguns metros beirando a borda do cânion, Jonas conseguiu finalmente encontrar uma trilha ao menos aparentemente segura, apesar de fina. Lenta e cautelosamente ele desceu um pé após o outro, tomando todo o cuidado para não machucar nenhuma parte de seu corpo nas poucas pedras vermelhas que conseguia distinguir, pois se não houvesse caminho logo abaixo, teria que usar essa mesma trilha para subir novamente.

Finalmente, após muita paciência mesclada a um esforço compenetrado, Jonas atingiu seu objetivo e estava a poucos metros do rio cinzento. Sem a menor preocupação correu até sua margem e viu o reflexo de seu rosto na água. O jovem berrou escandalizado ao ver o estado de sua face na água. Imensas feridas e cicatrizes pareciam cobrir o rosto todo. Seu cabelo estava raspado e com buracos que mostravam mais cicatrizes do que tinha em sua face. Sentia–se uma verdadeira colcha de retalhos. Pela primeira vez em muito tempo de desespero, Jonas chorou. E para sua surpresa e terror, Jonas chorou sangue.

Jonas apalpava seus olhos e sentia o líquido viscoso e vermelho escorrendo por sua face e banhando–o. Tentava parar de chorar, mas tal qual uma ferida aberta o sangue parecia até mesmo sair mais forte que quando chorava com vontade. Isso apenas aumentava mais e mais seu desejo de pular no rio, agora sob a justificativa de se sentir limpo, porém proporcionalmente a esse desejo aumentava o terror de estar próximo dessa água. Hesitando Jonas procurou a parede do desfiladeiro e ali se apoiou, deixando a cabeça relativamente arqueada permitindo ao sangue que caísse diretamente no chão, ao invés de banhá–lo. Porém, quando tocou na parede imediatamente parou de chorar e o sangue desapareceu num piscar de olhos, como se nunca tivesse caído. Procurou por vestígios dessa estranha lágrima e apenas encontrou lágrimas comuns. Teve uma impressão estranha e arriscou jogar uma pedra no rio, escolheu qualquer dentre as milhares de pedras vermelhas que ali tinham e a arremessou.

A pedra vermelha fez um arco perfeito no céu em direção ao rio, mas antes de atingir a superfície do rio algo pavoroso aconteceu. Como se atraídos pela chegada repentina daquele objeto, dezenas de braços cinzentos saíram do espelho d'água e brigaram entre si por ela. A briga continuou até todos os vestígios das pedras e dos braços tivessem desaparecido por completo nas profundezas do rio. Jonas caiu sentado no chão de susto quando os braços agarraram a pedra. No âmago de seu ser, Jonas agradecia por dessa vez ter sido prudente e não ter se arriscado como algo lhe dissera antes para fazer. Sem ter mais o que fazer naquela parte do rio, Jonas procurou alguma espécie de caminho, mas ao dar os primeiros passos concluiu que seria mais seguro subir a trilha de volta ao topo do desfiladeiro ao invés de se arriscar pelas beiradas de um rio onde a qualquer momento braços poderiam surgir e puxá–lo para dentro, ou pior ainda, ele poderia ceder à tentação de pular no rio cinzento, e ele tinha certeza que isso não seria bom. Novamente, dessa vez com o dobro de cautela, Jonas seguiu a trilha, só que dessa vez para bem longe do rio cinzento...