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Revelações de Jonas, Missão: Quinta Fase da Missão

Revelações de Jonas: Missão
Quinta Fase da Missão
Chumbo Grosso

Fernando não entendeu nada. Em um segundo estava relaxando dentro do carro ao som dos Cantos Gregorianos e no seguinte deu com a cabeça no porta-luvas e em seguida viu Albano disparar um único tiro com sua pistola. Enquanto se recuperava do susto, Albano pegou o rádio e passou ordens tão rápido que a mente ainda dormente de Fernando não captou metade delas, mas nitidamente ele escutou “cuidado.” e “bandidos de merda.” entre essas palavras. Em seguida Albano deu um cavalo de pau e começou a voltar pela contramão da Linha Amarela, para o espanto de Fernando.


Amanda estava completamente relaxada dentro do carro. Sentia-se plena, apesar de ter perdido a família dias atrás. Na verdade esse pedaço de carne loiro havia perdido. Seu atual dono, um ser pertencente a segunda fileira das hordas de Lúcifer, e de nome Ab’Sylth, não se importava com tais coisas mundanas. Tanto é que no momento saboreava com total prazer um charuto cubano que comprara antes de sair do hospital. “Foda-se a carne...”, respondeu a um dos agentes, preocupado com a integridade da carcaça. De repente, quando estavam passando pelo viaduto da Linha amarela sobre a Avenida Brasil, ela escutou uma freada brusca e o eco de um disparo. 

Sua mente gelou por um instante, por traumas ainda frescos na mente do hospedeiro, e em seguida o agente que dirigia atendeu o celular e apenas concordou com uma voz que berrava do outro lado, mas Amanda nada conseguia entender. Imediatamente a velocidade da Mercedes diminuiu e o veículo foi ultrapassado de modo absurdo pelo Chevette pilotado por Albano. Os agentes então ordenaram a Amanda que prendesse o cinto de segurança e que se preparasse para um grande baque.Amanda obedeceu, preocupada, e em segundos deu o aviso que estava pronta.

“Lá vamos nós!”, berrou o agente, dando um cavalo de pau enquanto o agente no banco do carona jogava contra a mureta de proteção um pequeno artefato que ao tocar o objetivo explodiu destruindo a mureta. Amanda berrou de susto e levantou-se pra ver o que ocorria e viu o carro acelerando em direção ao rombo aberto na mureta. “Vamos morrer”, gritou Amanda enquanto o carro voava pra fora do viaduto em direção a avenida. A queda durou poucos segundos, o que para a mulher ocupante do carro pareceram dias de tortura. 

E então tudo terminou com um baque seco e muita vibração do carro atingindo o chão e levantando muita poeira. Ele ainda seguiu rasgando o asfalto com o forro da traseira do veículo por pelo menos dez metros. Por isso, antes de recuperar o controle da direção, o motorista ainda amargou mais alguns segundos até que o sistema de suspensão do veículo voltasse a funcionar pelo menos para tirá-los dali. Quando tudo terminou, guiados muito mais pela sorte do que pela habilidade, o mercedes deixou de ser um touro indomável e eles seguiram viagem para o Aeroporto Internacional, deixando para trás Albano e Fernando. 

Finalmente o motorista entendera porque o veículo fora adaptado para tração traseira e não dianteira. Se fosse tração dianteira teriam todos mergulhado para a morte, mas sendo traseira o próprio peso do veículo manteve o carro relativamente equilibrado durante a queda evitando que o mesmo desabasse de bico e todos morressem. Um pouco de fator “Hollywood” contou naquele momento, pois a única vez que o motorista vira algo assim ser feito foi em filmes da década de 80, no século passado. Era estranho fazer parte de um filme real naquele momento. Obviamente Amanda assombrou-se quando o motorista gargalhou depois que acalmou, ela não tinha idéia dos pensamentos dele.



Fernando estava puto e assustado.
– Que merda é essa? – Bradou Fernando ainda sem entender o que acontecia e porque Albano voltava depois de dar um tiro.
– Eu vi um olheiro em cima da passarela e matei ele... – Respondeu Albano.
– Como? Você tem olho de águia por acaso?
– Veja por si só.

O chevette estacionou diante de um corpo espatifado logo abaixo de uma passarela perto da saída da Linha Amarela para Bonsucesso. Era um rapaz mestiço de idade aparentando uns dezessete anos e vestia roupas de grife, que em virtude do sangue valiam menos que colchão de mendigo no momento. O rapaz tinha perto da mão um rádio Nextel que ainda funcionava. Albano se aproximou do corpo e pegou o rádio ainda a tempo de escutar quando Carne Moída chamava pelo comparsa. Fernando, finalmente se deu conta do problema e sentiu um frio na barriga. Albano finalmente sorria, ia enfrentar alvos que reagiam, esperava apenas que o novato não desse algum mole na execução. De repente eles escutam o eco de uma explosão.
– É o sinal... Agora se segura que nós vamos correr muito... – Disse Albano, sacando suas pistolas. – Pega suas armas e vamos embora.

Fernando não teve tempo nem de colocar o cinto, quanto mais as mãos nos bolsos. Albano ativou de imediato o sistema nitro do chevette e o carro acelerou tão rápido que Fernando teve a impressão de que seria esmagado contra o banco do carona. Tirolez naquele momento sorria, e muito. A adrenalina tomava conta de cada parte de seu ser, e esperava que fossem muitos, e todos corajosos ou burros o suficiente para não fugirem. Em menos de cinco minutos a uma velocidade absurda começaram a ver as kombis os aguardando para o pretenso assalto. “Como a sensação é boa...”, deliciava-se Tirolez com tudo aquilo.



Ancelmo aguardava novas instruções de Mozart quando escutou a explosão. Assim como todos os comparsas, rapidamente sacaram suas armas e ficaram de olho nos rádios. “As ordens sempre foram pra esperar o aviso de Mozart... A não ser que desse tudo errado.”, e no momento não era esse o caso. Nem Mozart nem seu primo que estava servindo de olheiro haviam se comunicado. Todos começaram a relaxar novamente quando um chevette preto foi avistado chegando em altíssima velocidade. A hora da felicidade havia chegado.
– Caralho! É bebum! Não vai frear! – Berrou Ancelmo.

Todos correram pra se proteger, mas Ancelmo estava imóvel. Por mais que quisesse não conseguia se mexer. Ele tentou fechar os olhos mas não conseguiu fazê-lo antes de ver o chevette se chocar violentamente contra uma das kombis e de dentro dele voar um homem enorme de sobretudo que estraçalhou o pára-brisa do chevette e rolou pelo chão até parar imóvel uns dez metros completamente ensangüentado. Ancelmo e os demais deram o homem por morto, ainda mais depois de uma cena dessa, e caminharam sorridentes para o chevette, onde viram um rapaz negro se recuperando da porrada.



De repente, quando Fernando pensou que Albano frearia pra se digladiar com os bandidos, viu Albano fazer o contrário. O assassinou acelerou o chevette o mais que podia e antes que Fernando pudesse processar a informação o chevette deu uma porrada absurda contra uma das kombis. A força da pancada foi tão violenta que Albano atravessou o pára-brisa do automóvel e caiu a dez metros do acidente, aparentemente morto. Fernando nem conseguira recuperar a consciência quando um dos meliantes bateu no que restava do vidro do carona.
– Quer ajudar, irmão? – Falou o meliante, com sarcasmo. – Foi uma puta porrada... E quem vai pagar meu prejú?
– Heim... Prejú?
– É, meu irmão! – Falou o homem, puxando Fernando pela camisa e o tirando do chevette até ficarem cara a cara. – Dinheiro! Tá ligado?
– Ligadíssimo!

Fernando não pensou duas vezes e deu dois tiros com sua pistola na barriga do idiota, que caiu no chão berrando pros comparsas. Os demais rapidamente sacaram suas armas e começaram a atirar. Demonstrando alguma habilidade que nem mesmo sabia possuir, Fernando saltou para a traseira do carro e se aproveitou da carroceria reforça pra se proteger da primeira rajada. “Merda, porque você foi morrer agora Albano...”, pensou Fernando, sentado no asfalto e verificando se tinha como abrir o porta-malas. E tinha, com a batida a trava abrira e pra melhorar, até mesmo o porta-trecos do carro estava aberto e tinham diversas granadas espalhadas pelo compartimento. Fernando escolheu uma qualquer e a arremessou, rezando para não acontecer nada de errado.

Assim que a granada tocou o chão começou a soltar muita, mas muita fumaça. Fernando julgou ser uma granada de gás lacrimogêneo, mas notando que nenhum bandido gritara de dor concluiu que se tratava de apenas uma granada de fumaça, provavelmente do mesmo tipo que Albano usara quando atacara o Mac Donald’s, dias antes. Aproveitando o momento, que não duraria mais que cinco minutos ou até o primeiro deles se aproximar, Fernando pegou outras duas granadas e se esgueirou pra dentro da fumaça.



Ancelmo levou um susto quando escutou os tiros e seu comparsa Felipe caiu no chão gritando de dor depois de arrancar o jovem negro de dentro do chevette. Imediatamente sacou seu fuzil e disparou furioso contra o rapaz que se refugiou atrás da lataria do carro. “Babaca, só em filme carro serve de barricada!”, pensou enquanto continuava disparando até que sentiu uma dor perto da orelha. Tocou discretamente e viu em sua mão um filete pequeno de sangue e escutou um som estranho, de balas ricocheteando. “Sujou! O carro é blindado e agüenta até bala de fuzil!”, avisou Ancelmo, mas não alto o suficiente para que o rapaz ouvisse. 

Imediatamente todos pararam de atirar e começaram a cercar o carro com todo cuidado, mas de repente o porta malas de abre e eles vêem uma mão negra arremessar um objeto na direção deles. Antes do objeto tocar o chão todos já tinham identificado a granada e começaram a se afastar quando ela começou a solta fumaça. Sem demonstrar ser uma granada tóxica, apenas uma bomba de fumaça, os bandidos um a um se embrenham na fumaça para buscar sua vítima antes que fuja oculto pelo seu artifício. Exceto Ancelmo, que fica mais afastado e pega seu Nextel, precisava entrar em contato com seu primo pra saber se tinha algum “meganha” vindo por causa dos tiros. 

Estranhamente Ancelmo escuta o som do rádio de seu primo tocar próximo dele, e sente de leve a vibração do aparelho. “Como assim?”, indaga Ancelmo enquanto faz uma nova chamada e encontra a origem do som próxima do enorme cadáver que voou do chevette segundos atrás. Chama o rádio mais uma vez, e escuta o som vindo exatamente de um dos bolsos do sobretudo do enorme homem. Desconfiado do pior, ele chuta o homem violentamente, que rola pelo asfalto espalhando sangue pela pista e cai de braços abertos no chão. “Filha da puta... Se matou meu primo...”, balbucia enquanto prepara seu fuzil para destruir aquele desgraçado.

Passo a passo, e se arma em punho, Ancelmo aproxima-se do cadáver e deseja dar uma última olhadela no maldito antes de destruir seu rosto a bala. O homem aparentemente já está morto, e Ancelmo chuta o coturno do cadáver e analisa suas roupas. “Ao menos vou ganhar uns trocados com suas roupas.”, diz Ancelmo observando a qualidade das calças do homem e todo mais. Enfim se dá conta de que tem alguma coisa errada com esse homem, mas é tarde demais. Num movimento súbito o homem saca uma submetralhadora P90 e dá uma rajada certeira na cabeça de Ancelmo, que morre sem entender nada do que acontecera.
– Matei seu primo sim, encontre-o no inferno! – Diz Tirolez, enquanto o corpo de Ancelmo voa até o chão por causa da pressão de ar dos tiros à queima roupa.



Fernando está desesperado. Quando está quase saindo da fumaça vê o vulto de um dos bandidos próximo dele e volta para onde estava. Vendo que a granada que levou consigo também é de fumaça, arrebenta o pino e aumenta mais ainda a nuvem de fumaça.
– O que foi, tem medo agora? – Berra um dos bandidos, dando uma rajada de metralhadora pro alto.
– É! O crioulo foi macho de fuzilar o Felipe a queima roupa, quero ver se é homem de encarar a gente...- Berra um segundo bandido, sem dar tiro.
– Vamos te dar uma chance, se entrega e a gente estoura seus miolos, senão vamos te entregar pro Carne Moída! – Berra o primeiro bandido, dando outro disparo.

O jovem agente escuta então mais duas rajadas de metralhadora, quase seguidas, mas produzindo um som diferente das que escutara, completamente familiar. Era um estrondo idêntico ao da submetralhadora de Albano. Depois do que escutara no Mac Donald’s há menos de uma semana era impossível confundir com outra parecida. “Mas Albano está morto! Não é ele... De quem será essa arma? Será deles?”, indaga Fernando, enquanto os bandidos continuam suas ameaças.
– To falando preto safado... Se entrega logo, porque quando a fumaça baixar vamos estourar suas pernas e deixar o resto pro nosso chefe... – Berra o primeiro bandido.
– Faz o que ele ta falando! – Berra um terceiro bandido, com certo pavor na voz. – Nosso chefe é o cão na terra...



Tirolez está satisfeito em como a farsa funcionou. Se os idiotas tivessem se dado o trabalho de conferir direito, teria morrido com certeza. Mas esse tipo de gente não é que nem Tirolez. Vê logo que não são soldados, não soldados como Tirolez. A primeira coisa que faz, ainda antes de se levantar, é terminar o serviço de Fernando, acertando um tiro certeiro na cabeça do bandido chamado Felipe, que ainda estava em condições de avisar aos comparsas do novo perigo. Para sorte de Fernando, esse bandido morre sem fazer um barulho sequer. E os demais bandidos estão escondidos dentro da fumaça procurando seu parceiro, satisfeitos demais em gritar e dar tiros aleatórios para perceberem o som da arma de Tirolez. “Vão morrer fácil demais...”, lamenta Tirolez desejando mais adrenalina e sangue nessa noite.

Com total frieza se levanta e limpa seu sobretudo da poeira que grudou nele. Olha para os lados e confirma que ainda falta alguém naquele lugar, provavelmente o chefe. Pelos cálculos de Albano e por comparar o número do Nextel de Ancelmo com o que pegara antes, ainda faltava um bandido pelo menos. Esperava que fosse mais. Sem se importar se Fernando está ou não vivo, pega um cigarro amassado em seu sobretudo, verifica suas armas, e dá uma longa tragada pra em seguida se livrar do cigarro. Com o semblante inalterado, apesar da empolgação, começa a caminhar pra dentro da fumaça enquanto se prepara pra mais um massacre.

“Abun D’bashmaya.”, balbucia Tirolez enquanto avista o primeiro bandido e lhe dá uma coronhada violenta na cabeça, mas antes do bandido tombar no chão inconsciente saca sua faca e a encrava no olho do meliante e a arranca com força fazendo um arco no ar abrindo a cabeça como se fosse um coco espalhando sangue pra todos os lados. “Nitkadash Shmakh.”, profere com o mesmo tom de voz calmo e alterado, quando avista a alguns metros de distância outro dos bandidos. Dada a distância aponta sua pistola e dá um tiro certeiro no meio dos olhos do meliante, que desaba no chão sem sequer perceber do que morrera. 

“Tete Malkutakh.”, continua Tirolez quando dá mais um tiro em cada joelho de dois bandidos, que caem no chão gritando. Obviamente os demais correm pra fora da fumaça assustados com tudo aquilo. Mas nada vem e apenas escutam mais duas rajadas vindas de dentro da fumaça. Os bandidos haviam sido decapitados pela faca de caça de Tirolez. O assassino com sua calma tradicional vê Fernando ajoelhado no chão, travado de medo e passa por tranqüilamente indo em direção do porta-malas de seu carro. “Nihue Tzibyanakh”, fala enquanto de dentro do carro retira quatro granadas de fragmentação e quatro e fumaça e volta até Fernando. Sem se preocupar com o estado de seu parceiro, o arrasta até atrás de seu carro e o abandona ali novamente.

“Aykana D’bashmaya Aph B’ar’a.”, diz enquanto arremessa todas as granadas de fumaça na direção dos bandidos, de forma que não consigam escapar do desconhecido. “Hab’lan Lakhma D’sunkanan Yaumana.”, fala Tirolez enquanto se agacha atrás de seu carro e uma a uma arremessa as granadas de fragmentação e sorri com os gritos de dor dos bandidos ao serem surpreendidos pela dor lacerante dos fragmentos rompendo pele, músculos e até mesmo ossos. Um dele, provavelmente o mais sortudo, é atingido na cabeça por uma das granadas e morre sem sentir qualquer dor.

Com as explosões a fumaça se dispersa e Tirolez se levanta para conferir o resultado de seus ataques. Sucesso total, dos pelo menos onze bandidos que estavam na fumaça, apenas quatro davam alguns sinais de vida. Os seguintes ou tinham morrido realmente ou estavam inconsciente. E Tirolez não estava contando com os bandidos que matara ao se levantar. Satisfeito, novamente sorriu e caminhou em direção dos sobreviventes.

“Uashbuk’lan Khau’bayn.”, balbuciou enquanto matava o mais próximo com um tiro certeiro na nuca. O cadáver ainda assim demonstrava espasmos involuntários de algum resquício de vida e pra garantir que não faria mais nada deu mais cinco tiros na cabeça do bandido, que virou um horroroso amontoado de carne. “Aykana D’aph Kh’nan Shbakin L’khayabayn”, falou quando enfiou sua faca na barriga de um dos bandidos e arrancou-lhe as tripas para em seguida decapitá-lo como fizera com outros. “Ula Ta'lan L’nis’yuna.”, disse Tirolez enquanto descarregava o restante das balas de sua submetralhadora em um dos bandidos. “Ila Patzan Min Bisha.”, proferiu quando matou o último bandido a coronhadas de sua pistola, pois estava sem balas. Pra certificar-se de que matara a todos, foi até os aparentemente mortos e degolou-os um a um. “Amen”, falou enquanto limpava as mãos do sangue.

Em seguida foi até seu carro e tirou de um galão de gasolina e começou a jogar gasolina nos corpos. Planejava fazer um imenso churrasco com tudo aquilo, e lamentava não ter consigo nenhum naco de carne pra assar e comer enquanto assistiria a tudo. De repente escutou um disparo e sua perna fraquejou. “Fui atingido...”, pensou enquanto se virava e via um rapaz de aproximadamente vinte e poucos anos se aproximar portando uma pistola 9mm acompanhado de dois enormes seguranças também armados, só que de fuzil, mas que pareciam estar cansados demais pra ser algum perigo no momento. “Estou com problemas...”, pensou Albano.


Carne Moída escutou diversas explosões. Em quantidade suficiente para se precaver e saltar do seu carro junto com seus comparsas poucos metros antes de avistar o ponto onde as kombis estavam. “Tem alguma coisa errada...”, pensou enquanto saltava a mureta da Linha Amarela e iria seguir pela via expressa por fora, sem que fosse visto por quem estivesse dentro. Pra poder correr melhor abandonou seu fuzil no mato e correu rapidamente obrigando os demais a sofrer muito pra acompanhá-lo. Assim que chegou viu uma figura enorme de sobretudo caminhando entre os destroços das duas kombis e sentiu um cheiro forte de fumaça. O homem estava dando uma facada no pescoço de Felipe e começava a caminhar em direção do tal chevette preto.

O ódio tomava conta do peito de Mozart. Muitos desses cadáveres eram realmente seus amigos, provavelmente mais amigos dele até do que ele imaginava. E morreram por ele, por ordens dele e ele não tivera tempo de ajudá-los a trucidar esse playboy de sobretudo. “Foda-se se ele parece ser sinistro”, pensava Carne Moída enquanto conferia sua pistola 9mm. “Vai morrer hoje e vou dar ele de alimento pros mendigos!”, pensou quando viu o homem retornar aos cadáveres com um galão de gasolina e começou a espalhá-la pelo asfalto. Era audácia demais para agüentar. Carne Moída mirou, aguardou o momento certo e atirou. Ele acertou o playboy bem na perna, perto do joelho.

Ansioso por dar cabo dele correu até pra evitar que o homem reagisse. O desgraçado se virou diretamente pra Carne Moída e por um instante seus olhares se cruzaram, Pela primeira vez na vida Carne Moída sentia medo, o olhar do homem era pior que o seu. Mas isso não faria diferença, arrancaria os olhos do homem primeiro. Agora esse maldito estava nas mãos de Carne Moída e ele o queria vivo. Assim que seus servos chegaram ofegantes os ordenou que segurassem o homem antes que fizesse qualquer coisa. Os dois obedeceram de imediato e agarraram Albano pelos braços. Albano era muito mais alto que Mozart. E Mozart não gostava de pessoas mais altas que ele sempre mandava serrar as pernas de quem “tirava onda“ com ele a esse respeito, mas nesse caso faria por prazer mesmo.
– E aí, babaca... Qual seu nome? – Perguntou Carne Moída.
– ...
– Não sabe falar? – Berrou Carne Moída, dando uma coronhada no saco de Albano, que se encolheu todo, mas sequer gritou. – Olha pessoal, o cara é resistente... Será que ele topa tiro no saco?
– Meu nome é Albano... – Respondeu Albano, sorrindo.
– Cala a boca! – Berrou Carne Moída, dando um tapa na cara de Albano, que mesmo assim continuava a sorrir.
– Porque está sorrindo cuzão? Quer um tiro na boca pra arrancar esses dentes?
– Porque você vai morrer...

De repente Carne Moída escutou dois estampidos pequenos, e seus dois seguranças caíram no chão, cada um com um tiro na cabeça, liberando Albano, que simplesmente caiu no chão e chutou longe a arma de Carne Moída, enquanto esse girava para ver o autor dos disparos. Não percebeu a arma voar de sua mão e mesmo assim não teve mais tempo. Tudo ficou escuro por alguns segundos. E então Mozart viu surgir diante de si uma enorme luz que crescia e crescia... Escutou o som de farfalhar de asas diante de si e uma mão tentou tocá-lo, mas antes que isso acontecesse uma espécie de sombra cobriu seus olhos e ele se viu em um enorme desfiladeiro vermelho. Então uma voz nada benigna ecoou por todo o lugar:
– Bem vindo ao Inferno... MEU inferno.... Jonas está vindo terminar o serviço... – Disse a Sombra, gargalhando muito em seguida.

Revelações de Jonas, Missão: Quarta Fase da Missão

Revelações de Jonas: Missão
Quarta Fase da Missão
Viajando



O sol brilha para todos, menos para Mozart. No auge de seus vinte e dois anos Mozart já comeu o pão que o diabo amassou no lugar onde mora. Mora? Não, Mozart se esconde dentro do imenso complexo da Maré, nos arredores do Rio de Janeiro. Morador da Comunidade do Tinguá, Mozart sempre foi um rapaz violento. Dizem seus avós que aos quatro anos de idade cegou o cachorro da família porque este não havia lhe dado atenção. Aos seis anos de idade foi expulso do colégio onde estudava porque quase matara um de seus coleguinhas de sala com estocadas de lápis após discussão envolvendo um pedaço de madeira das carteiras.

Aos quinze anos de idade matou a pauladas sua namorada, porque essa fizera-lhe o favor de dizer que estava grávida. Com dezesseis anos foi convocado para o exército do tráfico. Com dezessete matou o pai por querer que estudasse ao invés de roubar. Horas depois deu tranqüilizantes a sua própria mãe e a matou enforcada com as entranhas do pai. Com dezoito matou o líder da boca de fumo e tornou-se conhecido por toda a região com o apelido de Carne Moída. O apelido surgiu justamente porque depois de matar o chefe da boca de fumo, ele o moeu e vendeu a carne para bares do centro do Rio de Janeiro em vésperas de carnaval. Desnecessário dizer que ele era uma pessoa temida na região. Seus servos o admiravam pela frieza, mas todos os demais o odiavam por sua monstruosidade.

Mas toda sua monstruosidade teve um preço. Dada a grandiosidade de seus crimes, no pior sentido de “grandiosidade”, os policiais recusavam-se a receber propinas de sua quadrilha. No início até dava para conviver com alguns prejuízos, mas com o passar dos anos Carne Moída e seus comparsas foram obrigados a variar no mercado de trabalho. Ainda eram traficantes, mas agora também praticavam assaltos na Avenida Brasil pra complementar a renda da firma.

Aquele dia de maio prometia para o bando de Mozart. Graças às contatos na comunidade, conseguiram descobrir que na noite desse mesmo dia dois veículos passariam pela Av. Brasil com destino a Angra dos Reis. Dentro dos carros, uma ambulância, estaria a esposa de um vereador da cidade, ferida durante um tiroteio em Copacabana. O plano era simples, matariam todos nos veículos, exceto a mulher, e a seqüestrariam. Dada a comoção por causa do tiroteio, pediriam um enorme resgate que seria pago rápido ou Carne Moída empalaria a mulher em algum poste e chamaria os jornais pra tirar fotos. Tudo seria perfeito naquela noite.









Fernando acordara cedo e seguira todas as instruções de Albano com o melhor de si desde que chegara a seu novo emprego no horário estabelecido. Recebera da Organização duas pistolas e uma submetralhadora, todas do mesmo modelo que as de Albano. Albano, por sua vez, começava a aceitar a idéia de ter que treinar alguém, e explicou a Fernando todas as funcionalidades de seu Chevette. Fernando, como de se esperar, ficou assustado com todas as modificações que o velho possante recebera, e ficou muito mais impressionado quando Albano lhe revelou que existiam pelo menos mais dez carros iguais. Ainda naquele dia, antes da hora do almoço. Fernando recebeu algumas aulas de tiro e no final da tarde ele e Albano vestiram os uniformes de seguranças (ternos pretos simples, mas Albano jamais abandonava seu sobretudo) e partiram para o hospital Barra D’or no Chevette negro. A única coisa estranha naquele dia foi que Fernando não vira Regina em nenhum lugar do escritório.

Graças ao tradicional engarrafamento da Auto-estrada Lagoa-Barra, conseguiram chegar ao hospital Barra D’or precisamente as sete horas da noite. Para sorte deles, tinham chegado meia hora mais cedo que o combinado. Albano e Fernando mostraram suas credenciais a uma das recepcionistas do hospital e subiram de elevador até o andar onde a esposa do vereador estava internada. O andar era um dos andares mais caros de todo o hospital, com ambiente climatizado e ao invés de bebedouros, instalaram máquinas de café da Nestlê, oferecidas gratuitamente aos visitantes. Albano consultou seu relógio e viu que sobravam ainda alguns minutos para chegar. O combinado era entrarem no quarto exatamente às dezenove horas e trinta minutos. E combinação era uma ordem, ordens seriam cumpridas. “Vamos tomar um café e aguardar meu sinal.”, disse Albano se dirigindo para a máquina de café e programando-a em café forte sem açúcar.

– Nervoso? – Perguntou Albano, enquanto apoiava o copo de café em uma mesa ao lado da máquina e acendia um cigarro. – Se quiser fumar...

– Não fumo. – Disse Fernando, sentindo até alguma vontade, mas optando apenas em acompanhar Albano no café.

– Ao menos não negou estar nervoso... Você possui fibra, e admitir nervosismo é uma qualidade que poucos têm. – Falou Albano, apontando o dedo indicador para Fernando.

– Não concordo... Todos ficam nervosos. – Argumentou Fernando.

– Sim, uns não admitem, outros dizem logo de uma vez e arregam... Esses eu mato na hora...

– Pensei que...

– “Estivesse tudo bem?”, vai nessa! – Interrompeu Albano, dando uma boa golada de café. – Você não tem nem vinte e quatro horas aqui, se pensa que vou confiar em você está muito enganado. Estamos todos de olho.

– E porque me colocaram nessa missão de escolta?

– Ordens, ora, simplesmente ordens de cima...

– E você não sabe por quê?

– Não.

– Não? Você não pergunta os motivos de suas ordens?

– Não.

– Como assim? Você é maluco?

– Não.

– Então você é o que?

– Um soldado, e soldados cumprem ordens... E é bom se acostumar, você faz muitas perguntas. Não sabe falar de outras coisas? Mulheres... Ah, esqueci que você não curte...

Fernando sentiu repulsa do comentário de Albano. E não era pelo preconceito embutido na questão, pois o olhar de Albano transmitia que ele estava mentindo. Que sequer se importava com o teor da conversa, seu chefe apenas o queria irritar. “Merda, se continuar assim vou perder a paciência e vai dar tudo errado.”, pensava Fernando, tomando o último gole de seu café e emendando outro copo a seguir.

– Café demais vai te deixar ligadão. – comentou Albano, insistindo em sua tática, mas vendo que Fernando era esperto pra cair nisso. – Gostei de você, é um moleque esperto...

– Moleque? Tenho vinte e cinco anos... – Afirmou Fernando, convicto de sua posição.

– Eu tenho trinta e muitos... Além disso, já matei tantas pessoas que nem somando todos os seus dias vivo conseguiria chegar perto desse total... Pra mim você é apenas um moleque. – Falou Albano, começando a fumar, mas nitidamente sem tragar.

– Sente orgulho dessa marca? Eu não conseguiria dormir com um peso desses na consciência...

– Orgulho? Tenho muito... Apenas me tira o sono um certo arrependimento.

– De ter feito tantas vítimas?

– Não, eu me arrependo apenas de não ter dado mais tiros. Existem dias do ano em que não disparo uma bala sequer, isso me enlouquece. Vide ontem, saí de sua casa e fui direto pra Organização em busca da sala de treinos. Até um mendigo peguei pra treinar...

– Mendigo?

– É. Mas não aqueles miseráveis que estão sofrendo nas ruas, peguei um dos malandros... Que se fazem de pobres pra extorquir dinheiro dos otários, isso quando não roubam as pessoas. Levei o filho da puta pra sede, amarrei o desgraçado lá na sala de tiro e quando dei o primeiro tiro na perna, fui convocado pra reunião... Chato não?

– Monstruoso... Isso sim.

– Há há há há! – Gargalhou Albano, dando em seguir a última tragada no cigarro e jogando a guimba no lixo. - Ouvir disso vindo de alguém que não faz dois dias estourou os miolos do namorado com dezesseis tiros é no mínimo cômico...

A dura verdade de Albano feriu a moral de Fernando seriamente. O jovem preferia levar um tiro na virilha a escutar tais coisas e de tal forma. Ele sabia que não era mais a mesma pessoa, mas os sentimentos da Carne ainda se misturavam aos da Alma, e por menos que estivesse doendo, ainda doía. Por mais monstruoso que Albano fosse, o que fizera com Renato era do mesmo grau de crueldade, senão pior. Mesmo assim, e amaldiçoando os responsáveis por seu estado, Jonas ainda precisava manter Fernando vivo, ao menos por fora. Mas nem por isso deixaria de tirar o melhor proveito da pior situação.

– O que vocês fizeram com o mendigo? – Perguntou Fernando, deixando a conversa fluir e os sentimentos de culpa desaparecer.

– Descartamos, depois te ensinarei como, agora vamos pro quarto dela, que temos trabalho a fazer...

Albano consultou novamente o relógio e caminhou apressado para o quarto. A conversa demorara mais que o previsto e agora tinham menos de quarenta segundos para percorrer o corredor até o local certo. Pra evitar atrasos, e ele nunca se atrasaria, Albano começou a andar o mais rápido que podia desesperadamente. Fernando o seguiu, estranhando a pressa de seu companheiro. Sem bater na porta, e faltando menos de dois segundos, Albano entrou no quarto bufando, mas satisfeito por não ter se atrasado.

– Pensei que você fosse demorar... – Falou Regina, sentada ao lado da esposa do vereador.

– Ele! – Berrou a mulher. – Foi ele quem matou minha família! Socorro!

– Calma, Amanda. – Disse Regina, enquanto Fernando entrava no quarto e trancava a porta a mando de gestos de Regina. – Você esqueceu de quem é? Do que tem que fazer?

– Mas... ele... – A mulher caiu em prantos.

– Chega de frescura!

Regina ergueu suas mãos e segurou a cabeça de Amanda com firmeza. O gesto foi tão brusco e repentino quanto foi violento. Até mesmo Albano se assustou com toda essa determinação de Regina. De repente todos na sala começaram a sentir o odor acre de enxofre e as flores que estavam distribuídas em vasos pelo quarto começaram a murchar. Regina então proferiu uma seqüência de sons e grunhidos estranhos, mas entoados como uma canção profana. Amanda de imediato se acalmou e começou a acompanhar o cântico. Tudo não durou mais que quinze segundos, mas para os dois homens presentes pareceram ser horas. Regina finalmente soltou a cabeça de Amanda, que naquele momento estava completamente calma. Em seguida as duas se olharam e se beijaram de um modo depravado e completamente absurdo para os olhos de Fernando, e pelo que o rapaz pôde ver até Albano demonstrou certo incômodo com as duas.

– Bem, Albano já conhece o esquema todo... Sejam rápidos e escoltem nosso novo membro até Angra dos Reis. Ao chegarem entrem em contato, mas não saiam de lá. – Falou Regina, desvencilhando-se de Amanda.

Sem dizer uma palavra mais, Regina saiu do quarto e foi embora, deixando os três sozinhos no quarto. Ao que a porta se fechou Amanda sentou-se na cama e perguntou se Albano tinha um cigarro, sendo prontamente atendida. Sem dizer mais nenhuma palavra, a mulher acendeu o cigarro e deu uma longa tragada, pra em seguida tossir desesperadamente. “Odeio esses tipos de carcaças... Puras demais!”, disse a mulher com uma voz levemente alterada, como se mais grossa. Albano continuou em silêncio e verificou as horas em seu relógio. Fernando notou o mesmo, que estava ficando tarde demais pra viajar em uma cidade como o Rio de Janeiro.

Apressados os dois agentes levaram Amanda embora do hospital e a colocaram no banco traseiro do Chevette de Albano. Inicialmente ela pensou em protestar, dada sua posição social, mas ao ver os opcionais do carro mudou de idéia rápido. Albano sentou-se no volante, tendo Fernando ao seu lado e a mulher foi sozinha no banco traseiro. Pelos cálculos que Albano fizera, demorariam pelo menos de duas a três horas de viagem até chegarem em Angra, se não fizessem paradas e sem chamar atenção da policia rodoviária. Tudo estava dando certo, até demais, na mente dos dois agentes da Organização.



“Essa noite vai ser demais”, disse Carne Moída aos membros de sua quadrilha no início da noite enquanto cheirava sua primeira carreira de droga das muitas que consumiria até o momento de saírem. Tinham três kombis carregadas de munição, cocaína e pelo menos cinco dos seus homens de confiança para cada uma. Carne Moída e outros dois comparsas iriam em outro carro, um Vectra, pra dar suporte em caso de problemas. O bonde sairia pela Vila do João, na Avenida Brasil, e tinha como objetivo pegar pelo menos duzentos mil reais dos “manés do asfalto”, somados carros, celulares e outros furtados em ônibus de viagem. Se acaso não conseguissem atingir a meta, simplesmente queimariam três ônibus e diriam que era represália pela morte de algum traficante. Depois escolheriam o nome do homenageado, no momento apenas se divertiriam às custas do povo.

Quando eram precisamente dez horas da noite um dos fogueteiros deu o sinal, avisando que “a polícia já tinha se mandado”. Imediatamente todos correram para seus respectivos veículos e partiram, escutando dos mais diversos proibidões pra dar o clima. Desceram a Av. Brasil em direção a Linha Amarela, entrando na via expressa para entrarem no retorno por Bonsucesso para o sentido da via expressa que daria mais lucro e que serviria de rota de fuga de volta pra Vila do João, caso algo desse errado.

– Já sabem das paradas... Se for casaco azul, é pra explodir a cabeça do filho da puta com fuzil e depois penduramos no morro. – Instruiu Carne Moída, pelo rádio.

– Vai moer eles e vender? – Perguntou um comparsa pelo rádio.

– Polícia não serve nem pra alimentar porcos... Queimamos mesmo no microondas. – Respondeu Carne Moída, fazendo todos rirem de vontade de matar muitos policiais.

– Vamos deixar o olheiro aonde? – Perguntou outro bandido.

– Perto da entrada pra Bonsucesso, a uns dois quilômetros de onde vocês ficarão, já quase na comunidade. – Ordenou Mozart.

– Beleza., estamos fazendo então.

Carne Moída cessou a comunicação e reduziu a velocidade de seu Vectra.Pra não levantar suspeitas, ele sempre fazia isso, reduzia a marcha e dava umas voltas pela região e aguardava o som de tiros. Se não tivessem som nenhum, era porque tudo estava dando certo. Se ouvisse algo, era porque alguém fizera merda e era hora de aloprar. Ele desceria a Linha Amarela descarregando sua metralhadora pra todos os lados, exceto para onde estavam seus comparsas, e deixava uma trilha bem grande de corpos pra polícia limpar. No dia seguinte um contato na imprensa colocava a culpa dos tiros na polícia e uma manifestação complementaria o serviço. Enquanto estacionava seu carro em alguma rua próxima, seus companheiros estavam fechando a pista lateral da Avenida Brasil, no sentido Baixada.





Albano e Fernando se separaram de Amanda. Em virtude da frescura da recém iniciada, acabaram tendo de providenciar um segundo carro para a viagem, de aspecto mais luxuoso que o Chevette, e uma passagem de avião em um jato fretado para Angra. Obviamente Albano reclamou do fato com a Organização, mas ao invés de ser ouvido, a Organização enviou mais um carro para satisfazer os desejos da mulher, dessa vez uma bela Mercedes. Albano desistiu de argumentar e apenas comentou com Fernando que eram todos idiotas por darem ouvido a uma iniciante.

– Ela deve ser importante... – Comentou Fernando, enquanto se sentava no carro e via Amanda ser guiada por outros agentes pra dentro do Mercedes.

– Poderia ser Deus naquele corpo... – Respondeu Albano, já sentado e girando a chave da ignição.

– Porque tanta raiva? Ela é esposa de um político... Ao menos viúva de um. – questionou Fernando, enquanto prendia o cinto de segurança.

– Não é raiva, é indignação... A Organização deu voz a uma qualquer que chegou há menos de uma semana, e um destaque que não é seguro.

– Destaque?

– Tem noção da hora em que estamos começando a viajar? E do carro dela?

– Mas não vamos viajar de jatinho particular daqui da Barra?

– Não, vamos partir do Aeroporto Internacional... Lá na Ilha do Governador.

– E daí? Descemos a Linha Amarela a toda e chegamos lá em uma hora no máximo, até menos.

– Daí? Daí que são dez horas da noite quando deveríamos ter saído as oito e meia, e quando estivermos na Linha Amarela perto do aeroporto, serão quase onze da noite. Não tem lido jornais sobre crimes nas proximidades daquela região?

Com as últimas palavras escutadas Fernando se lembrou das notícias sempre constantes de crimes ocorridos nas redondezas, mas não deu importância. “Hoje é o dia 24 de maio de 2006, uma quarta-feira, e quem em sã consciência faria algo no dia mais morto da semana?”, pensou Fernando enquanto se incomodava com o fedor de mais um cigarro sendo aceso por Albano. Minutos depois uma comitiva de dois carros negros começava sua viagem rumo ao Aeroporto Internacional, onde um avião os aguardava com destino a Angra dos Reis.

– Sabe uma coisa engraçada? – Comentou Fernando, quebrando o silêncio dos primeiros cinco minutos de viagem.

– O que? – Perguntou Albano, prestando atenção na avenida, mas estranhando o tom de voz do rapaz.

– Algumas horas atrás você disse que se eu me deixasse levar pelo estresse me mataria...

– E?

– Bem, essa tal de Amanda deu ordens a torto e a direito, com uma senhora demonstração de frescura, e depois eu que sou o viado aqui...

– Aonde quer chegar? – Cortou Albano.

– Se eu que tinha vinte e quatro horas posso morrer se der um “pití”, porque nada aconteceu com ela?

– Quem disse que nada vai acontecer com ela?



Fernando quase ousou rir com a resposta de Albano, mas preferiu o silêncio. Aliás, ambos se calaram e o silêncio só foi quebrado quando Albano pegou um DVD no painel e colocou para tocar no Chevette. “Cantos Gregorianos, gosto muito de escutar em missão...”, comentou Albano, voltando ao silêncio habitual. E a viagem de ambos continuou sem problemas.




A noite para a quadrilha estava fraca. Apenas tinham roubado dois carros mais ou menos novos (que foram levados para o desmonte imediatamente, reduzindo a quantidade de bandidos presentes) e um ônibus para o aeroporto, que estava tão vazio que apenas valeu a pena assustar os passageiros e fazê-los implorar pelas vidas. De resto, já eram dez e meia da noite e nada. Nenhuma pessoa viva naquele trecho da Linha Amarela além deles mesmos. Já haviam trocado rádio duas vezes com Carne Moída pedindo para irem pra Av. Brasil furtar e não na Linha Amarela, mas a permissão foi negada. E nenhum deles ousaria negar permissão ao bandido, pois sabiam que no dia seguinte seriam servidos no almoço de alguma escola.

Eis que de repente algo de diferente aparece. Através de um binóculo o olheiro da quadrilha vê chegarem dois carros negros em alta velocidade, e aparentemente separados ou talvez disputando um pega. Mas um deles em especial chama muita atenção. É um Mercedes preto, muito, mas muito luxuoso. O bandido de imediato chamam Carne Moída e os demais pelo rádio.

– Caralho! Tem dois carros vindo... Um deles é um Chevette preto velho e o outro é um puta carro... – Diz o bandido pelo rádio.

– Puta carro? - Responde Carne Moída.

– Um mercedão, e não to falando de busão não... É coisa de ricaço mesmo, daqueles de filme. – Detalhou o comparsa.

– Faz o seguinte, vamos mudar o dia de roubo pra seqüestro! Peguem o filho da puta, e se gritar muito matem o babaca e levem o carro... Depois damos jeito. É Jesus na mente! Estou indo para aí... Devo chegar logo atrás dos dois carros pra evitar fugas.

Mozart cortou a transmissão e ligou seu Vectra. Eram apenas dois carros e seus treze homens (pois dois haviam partido e o olheiro estava longe demais) dariam conta do recado. Um deles tinha sido PQD no exército e sabia atirar em pneus se precisasse. Pra confirmar se estava tudo certo, e se os carros não haviam feito nenhum desvio, fez uma nova chamada para o olheiro enquanto começava a descer um viaduto em direção a Linha Amarela. Nenhuma resposta. “Merda, tem alguma coisa errada.”, pensou Mozart antes de escutar o som claro de uma grande explosão.

Revelação de Jonas, Missão: Terceira Fase da Missão


Revelações de Jonas: Missão
Terceira Fase da Missão
O Passado Te Condena

Albano deixou Fernando ir embora, apenas avisou-lhe que no dia seguinte deveria voltar para tratarem da burocracia de todo o processo de entrada na Organização. Fernando parecia completamente apático e distante, pois minutos depois de sair da sala deu-se conta do que fizera. O fundo não se arrependia, mas sua cabeça doía remoída pela culpa. Albano, ao contraio, sequer se importava. Renato era apenas estatística dentro da Organização, um amontoado de carne descartável que mal pra adubo serviria.

Nas horas seguintes Albano e Regina providenciaram todo o aparato necessário para transformar Renato em um perfeito testa-de-ferro da violência Carioca. Ele seria coberto de cocaína, e depois queimado em uma das fornalhas da Maré. Como estava no aeroporto, fariam tudo parecer um mero seqüestro seguido de morte, algo comum quase nunca investigado. Os agentes da Organização infiltrados na polícia civil garantiriam todos os álibis necessários e colocariam a culpa em algum bandido qualquer que morreria na mesma semana sem poder desmentir nada, mesmo que alguém acreditasse. No dia seguinte instruiriam Fernando na arte de dissimular sofrimento, pois pra evitar suposições sobre crime passional, ele iria ao enterro de Renato e prantearia todas as coisas que sempre se gritam em enterros desse tipo.

O tempo passou na Organização e o dia seguiu normalmente, dentro do que podemos considerar “normal” naquele lugar. Albano passou o dia estudando as plantas do local onde seria sua nova missão, que provavelmente levaria Fernando nela para servir de bucha de canhão. A sala de Albano ficava duas portas antes da sala de Regina e ambas eram ligadas por um corredor secreto localizado atrás da mesa de Regina e por uma parede falsa na sala de Albano. A exceção de Albano e Regina nenhuma pessoa viva sabia da localização dessa porta.

O ambiente da sala de Albano era simples. Apenas tinha uma enorme mesa com um laptop sobre ela e ligado via rede sem fio a Intranet da Organização. Também tinha uma foto de seu pai e de sua mãe, abraçados diante de um Tucano. Próximo a entrada falsa, que ficava no fundo da sala, tinha um enorme arquivo morto onde Albano guardava o material de suas missões. Ele preferia assim, pois em caso de problemas com autoridades era necessário apenas apertar um botão desse arquivo e tudo seria incinerado em segundos, o mesmo não dava pra ser feito com computadores, pois desde a invenção da internet sempre existia algum rastro. Ao lado desse arquivo tinha uma série de ganchos onde ele pendurava sempre seus sobretudos ou outros objetos que o pudessem, como armas de grande porte.

Quando já eram quase dez hora da noite, a porta falsa da sala de Albano se abriu e dela saiu Regina. Ela carregava consigo dois copos de cristal e um balde de gelo com uma garrafa de champagne dentro. Regina sorria maliciosamente e vestia apenas uma camisola fina. Ela caminhou até Albano e colocou o balde e a garrafa sobre a mesa. Tateou carinhosamente os ombros torneados de seu fiel soldado. Albano vestia aquele momento apenas uma camisa de linho cinza que Regina desabotoou-a com a boca. Albano não parecia se importar com nada que acontecia, quando de repente começou a falar:

– Ele é muito inexperiente... Não entendo porque enviá-lo para lá! – Falou Albano, sem dar atenção a todo o fogo de Regina.

– Deixe disso, soldado. – Respondeu Regina. – Vamos comemorar a nova aquisição!

– Comemorar? Ele é um ninguém no que diz respeito a Organização, e vai levar tal importância?

– Questionando ordens, Albano?


O soldado imediatamente se silenciou. Regina estava certa, ele não deveria se importar com nada disso. Apenas com as ordens. Se a Organização queria que fosse desse jeito, assim seria. No fundo Albano planejava realmente era matar Fernando na primeira oportunidade e continuaria sozinho a missão. Tirolez odiava parceiros, eles só serviam para duas coisas: atrapalhar e perder tempo. Ainda mais parceiros desse naipe de Fernando, novatos eram a pior coisa existente, disso Albano tinha certeza. Durante as duas horas que se passaram Albano e Regina se divertiram muito, principalmente Regina.



Fernando voltou para casa desolado. Sentia-se profundamente triste com tudo aquilo e, principalmente, com a morte de Renato. No fundo sabia que era a única opção, seria mais útil um deles sobreviver que os dois amanhecerem mortos. Mesmo assim era complicado sentir todo aquele conflito interno. O jovem negro chegou em casa por volta das sete horas da noite e passou pelo saguão da portaria sem falar nem mesmo com o porteiro. Subiu o elevador e ao entrar em seu apartamento foi direto para o chuveiro. No banho deixou toda a sua tristeza tomar conta de seu corpo, e ali desabou em prantos por muito tempo.



Albano despertou ainda de manhã em seu escritório. Não havia um sinal de Regina, apenas um balde de gelo abandonado e duas taças e a garrafa do champagne vazias. Para sorte de Albano, todo o piso de seu escritório era acarpetado de tal forma que parecia estar em um colchão. E toda a higiene da Organização tornava esse sono completamente possível. Albano vestiu-se, colocou seu sobretudo e saiu de sua sala em direção a recepção. Sentia um pouco de dor de cabeça e muito cansaço nas pernas. Regina era insaciável e todo aquele esforço só podia ser compensado com um bom banho. E isso sempre o lembrava dos fatos que culminaram em sua primeira noite com Regina.



...Tirolez tinha acabado de errar um tiro na Praça Saens Pena, e sentia-se péssimo por isso. E ser essa a quarta vez em que fazia isso num curto período de tempo o fazia duvidar de si mesmo. “Talvez deva treinar mais”, pensava dentro do 6onibus 422 a caminho do centro. Não faziam nem dez minutos que Regina lhe ligara pedindo que viesse rápido até a sede da Organização. Em parte Albano sentia-se preocupado com ela, no fundo sentia-se mais revoltado com todo seu azar.

Ele chegou rápido até o prédio da Organização e de cara estranhou um silêncio estranho nas pessoas. Elas pareciam dispersas das coisas, pois pela primeira vez desde que se tornara famoso, as pessoas não o saudavam, por sinal, pareciam estar imersas em um mundo próprio. Albano sentia-se incomodado com tudo aquilo e colocou a mão em sua pistola, como se procurando uma espécie de apoio para a estranha sensação que lhe tomava o peito. Em paralelo, sentia os gritos de Tirolez em sua mente exigindo libertação e muito, mas muito sangue.

Assim que chegou ao décimo-quarto andar, deparou-se com uma cena preocupante. Todos os vidros da sala de espera tinham sido estilhaçados e a porta secreta foi completamente arrombada, sendo violentamente arremessada contra a secretária, que mal teve tempo de desviar e teve seu tronco e cabeça esmigalhados completamente na parede pela força do impacto. Albano despediu-se silenciosamente da mulher, e notou que ela não era a única pessoa morta. Vários corpos se espalhavam pelos corredores, todos eles com mortes no mínimo curiosas. Um dos mortos tinha sido enfiado, sabe-se Deus como, dentro do galão de água do filtro, que agora despejava sangue sem parar.

Sentindo preocupação pelo estado de Regina, Albano deixou Tirolez no controle da situação e com sua pistola automática em mãos correu até a sala de sua superior. Assim que chegou encontrou Regina amordaçada e presa a parede por pedaços retorcidos dos ferros que antes pertenciam a cadeira.Pelo menos os corpos de cinco seguranças estavam despedaçados e espalhados pelo chão, paredes, cortinas e teto. Apenas os dois misteriosos livros e as estátuas não tinham sido atingidos. Tirolez se aproximou cautelosamente de Regina quando escutou um som e instintivamente saltou de volta para a porta por onde entrara.

Como se por mágica a mesa de Regina flutuou e voou diretamente em cima de Albano, que somente conseguiu escapar porque a mesa era grande demais para passar desse jeito. Sem dar chance da poeira abaixar, tirolêz saltou sobre os destroços e rolou pelo chão da sala, agora praticamente vazia, até Regina. Vendo as cortinas da sala balançarem provocantes, como se insinuando ao erro. Albano apontou sua pistola para os trilhos das cortinas e disparou seis tiros certeiros, que fizeram os trilhos desabarem e revelarem finalmente que além de Albano e Regina não havia mais nenhuma pessoa na sala. Com uma relativa sensação de segurança, Albano voltou-se para Regina e retirou sua mordaça, para saber o que acontecia, mas Regina apenas balbuciou olhando pra o vitral de sua sala.

– Pra cima...

Sem tempo de reação, Albano deu novo salto para trás no exato momento em que o vitral da sala de Regina desprendeu-se da janela e voou contra o lugar onde Albano estava. Uma explosão de estilhaços se espalhou pela sala, cortando Albano e Regina em diversas partes do corpo. Então, onde antes ficava o vitral tinha um homem em pé com aparentemente uns cinqüenta anos. Vestia-se com uma calça jeans preta e uma camiseta branca simples, sem marca. Seu rosto seria belo para os padrões normais, exceto por uma enorme cicatriz no olho direito, que por sinal, não abria. O homem tinha cabelos ruivos compridos e um penteado punk, com uma enorme crista de galo.

Tirolez dispensava apresentações e descarregou sua arma contra o homem, que deu alguns saltos pra trás e tombou na sala de Regina, gritando de dor. Tirolez não queria saber, puxou sua outra arma e a descarregou do mesmo jeito, com vários tiros na cabeça do homem que em questão de segundos transformou-se em uma pasta de sangue e ossos. Tirolez assoprou satisfeito o cano de sua arma e caminhou até Regina, confiante, mas então escutou um som completamente insólito.

– Acho que deveria doer, não? – Disse uma voz ecoando pela sala, vinda de um corpo sem cabeça que levantava.

O misterioso homem se levantou como se não tivesse levado nenhum tiro. Sua cabeça e seu sangue retornavam para o mesmo lugar de antes, como se nada tivesse acontecido. Tirolez simplesmente travara, pois era a primeira vez que vira algo desse tipo. Talvez tivesse visto em filmes, mas ao vivo, jamais. Quando a cabeça do homem se refez por completo ele ergueu sua mão direita e alguns vergalhões saíram rápidos do chão e prenderam Albano contra a parede, ao lado de Regina.

– O “fiel cavaleiro”... Ou seria melhor dizer “cachorro”? – Falou o homem, observando Albano profundamente nos olhos.

– ...

– O gato comeu sua língua agora? – Continuou o homem. – Bem, que mal educado eu fui... Nem me apresentei... Meu nome é Niamaran. Regina e eu fomos intimamente apresentados, você deve ser o tal Albano, não?

– O que você deseja?

– Dar ordens. Não é assim que sua Organização trabalha? Bem, eu tive uma reunião amigável com o chefe de Regina e depois de um pouco de persuasão ele me cede o comando da Organização no Brasil.

– Impossível! – Berrou Regina, finalmente compreendendo o que o homem viera fazer ali. – Jamais daríamos esse tipo de status a alguém como você...

– Será? Veja bem, eu obedeço a nenhuma regra que senão a minha regra e a de meu Senhor, logo, gostaria de mostrar a vocês uma coisa.

O homem então ergueu suas mãos e o telão de reuniões embutido na sala desceu. Niamaran sacou do bolso de Regina o controle remoto do telão e o ligou. Com um trocar rápido de canal ele sintonizou em uma freqüência estranha, com apenas chuviscos. Segundos depois uma imagem começou a aparecer de uma pessoa oculta por sombras em algo que lembrava muito um filme de ficção cientifica. A pessoa falava em uma língua estranha com Niamaran, que entendia perfeitamente e respondia. Albano percebeu então que Regina compreendia essa estranha língua. Em segundos Regina mudou de uma aparente revolta para uma resignação completa. Ela parecia aceitar as palavras de Niamaran.

– Ordens são ordens. – Disse Regina, respirando fundo. – Niamaran é o novo chefe da Organização no Brasil.

– Aquele homem então era...?

– Sim, Lúcifer, encarnado e dando ordens em aramaico, você ainda vai aprender alguma coisa dessa língua. – Interrompeu Niamaran. – Ele me colocou no comando no lugar de Abados, ou seja, Regina. Agora os dois são meus subordinados... Minha primeira ordem é para cessarem os atentados contra aqueles garotos.

– Por que?- Questionou Regina. – Um deles é o Devorador de Mundos, para nossa Organização chegar a seu objetivo temos que fazê-lo livre!

– Errado! – Berrou Niamaran. – Ele não é a Besta-Fera, é pior. Não confundam vespeiro com colméia. A fera que procuram é outra, ele não está nos livros. Se o despertarem como as borboletas quase fizeram por acidente será pior aos planos de vocês e, principalmente, aos meus... E isso vale para todos os que o cercam!

– Por quê? – Indagou Regina, querendo entender.

– Enquanto existirem ele tem algo a perder, logo, não se tornará perigoso a ninguém exceto ele mesmo... E ele está se destruindo, tenho agentes próprios fazendo isso, e em breve todos estarão mortos para nossos padrões e estarão completamente inúteis quando a hora chegar. Um tiro sem balas.

– E de resto? O que pretende então, agora que estamos sob suas ordens?

– Dar início ao plano...

Niamaran desapareceu e assim como ele tudo a sua volta. De repente Albano estava novamente na porta do prédio da Organização, ileso e sem nenhuma marca no corpo. Sua cabeça apenas doía muito. Pelo olhar as pessoas nada parecia ter acontecido, nada. Provavelmente tudo fora uma ilusão, ou algo causado pelo seu desapontamento consigo mesmo. Observou seu relógio e constatou que realmente não tinha se passado nem um minuto desde que conferira o relógio antes de caminhar até a portaria. Mas algo em Tirolez lhe fazia pensar duas vezes, pois de qualquer modo Regina tinha lhe ligado e precisava falar com ela. Assim que entrou na sala de Regina ela estava sentada sobre sua mesa chorando. Mas não era de tristeza, era de ódio. Ela amaldiçoava um nome que a poucos segundos Albano escutara em sua alucinação.

– Não foi um sonho. – Disse Regina, enxugando as lágrimas do rosto.

– Então temos um novo chefe? Mas e o que aconteceu?

– Ele aconteceu, ele quis dar uma prova de poder e me humilhou... Só uma vez encontrei alguém assim.

– Lúcifer?

– Não, Cristo. Ele tinha o mesmo poder de Cristo na Terra. Não era como nós, era muito mais... Ainda bem que você não se preocupa em entender essas coisas, apenas em acatar ordens.

– Às vezes não questionar é uma benção.

– Há, há, há, há, há! – Riu Regina, sentindo ironia na palavra “Benção”. – Você é o único que me entende...

Regina levantou-se e abraçou Albano. “As ordens de matar aqueles garotos está suspensa... E você não errou os tiros, Niamaran o fez errar.”, falou Regina nos ouvidos de Albano que sentiu-se em parte aliviado por sua falha não ser culpa exclusivamente dele. Em seguida ela olhou fundo nos olhos e Albano e Albano olhou fundo nos olhos de Regina. Seus lábios se aproximaram e eles se beijaram profundamente. Não havia amor naquele beijo, apenas um desejo cruel que um sentia pelo outro. Em seguida Regina tornou a chegar perto da orelha de Albano e disse:

– Mostre-me a maravilha que é o amor carnal...



...Envolto em lembranças, e sem dar nenhuma saudação as pessoas da Organização que chegavam, Albano pegou o elevador até a garagem e foi até seu carro, voltando para sua casa. Para sua sorte aquele seria um dia vazio e poderia resolver tudo durante o anoitecer, inclusive Fernando. Passaria então o restante do dia dormindo em sua cama. Por telefone ordenou a secretária que desse o aviso a Fernando e encerrou mais um dia tedioso de trabalho.



Enquanto isso, durante a noite, em um desfiladeiro de sangue uma figura conhecida gritava tão alto que seus berros eram escutados a milhas de distância. Ou ao menos deveriam, se houvesse viva alma naquela desolação.

– ... Por que eu precisei fazer isso? – Berrava Jonas para uma sombra imóvel e que não lhe dirigia o olhar. – Pensei que precisaria apenas manifestar aquela maldita energia, mas não! Precisei espalhar os miolos daquele cara pela sala!

– Acalme-se, você não está raciocinando... Deixe seu corpo dormindo na Terra. – Respondeu a Sombra, com um tom de voz menos calmo que o tradicional. – Não é um pedido, é uma ordem!

– Fodam-se suas ordens! – Respondeu Jonas.


A Sombra mudou de feição, ou melhor, adquiriu uma. Por mais paciente que fosse, por mais necessário que aquele moleque pudesse ser, sua arrogância estava dando nos nervos. Ela simplesmente expandiu sua aura enegrecida em torno de Jonas e o envolveu completamente. A jovem alma não teve muito tempo de reação, apenas começou a se debater enquanto seu corpo espiritual lentamente parecia ser tragado para dentro daquela criatura sombria, com a sensação de ser digerido lenta e dolorosamente. Jonas berrou e implorou por perdão, mas a sombra continuou a cobrir sua alma.

– Entenda uma coisa, pela última vez, eu não da sua laia. – Falou a Sombra, voando vários metros e depois deixando o corpo imóvel de Jonas despencar violentamente contra o chão rochoso do desfiladeiro. – Nunca, mas nunca mais me dirija desse jeito a palavra.

– Desculpe-me... – Respondeu Jonas, segundos depois, se levantando e limpando-se da queda. – É horrível conviver com os sentimentos e sensações da carne.

– Por essas e outras que todos os espíritos ao nascer têm suas mentes apagadas de outras encarnações... Quando acordar quero que se lembre que hoje será apresentado a sua missão. Será difícil e aquele homem que conheceu quer que você morra, portanto, atenção redobrada.

– Quando eu serei fundamental em seu plano?

– Você saberá exatamente quando... Agora volte ao mundo dos vivos, pois seu telefone toca.


Fernando acordou de súbito. De fato, o telefone tocava, era seu celular. Reconheceu de imediato o telefone da Organização na bina do aparelho. Respirou fundo e atendeu. Foram instruções simples, avisando-lhe que seu encontro com albano fora transferido pro início da noite, naquele mesmo prédio. Em seguida a secretária esse despediu, cobrando um encontro, e desligou. Fernando respirou novamente, dessa vez aliviado em não precisar correr pra encontrar com aquele “branquelo do Albano”. Novamente observou o visor do celular e deu-se conta que ainda eram apenas oito horas da manhã. Provavelmente a qualquer momento ligariam perguntando a respeito de Renato ou algum jornal falaria dele. “Quem dera esse momento não chegue nunca...”, pensava Fernando enquanto ia até sua cozinha e começava a preparar um pão com manteiga para comer.

Tomado o café da manhã, Fernando tomou outro banho, dessa vez pra atenuar as marcas nos olhos, pois chorara quase a noite toda até dormir. Mas agora, naquele momento, sentia-se tolo por ter desperdiçado lágrimas a alguém que de fato nunca amara, nunca dividira uma vida. “Agora estou habitando apenas um naco de carne viva, eu sou Jo... SanoDji”, disse Fernando, fazendo questão de gravar o quanto antes o nome pelo qual era chamado pelos membros, e que deveria ser sua nova alcunha. Jonas era um nome arriscado demais para ele.

De repente Fernando lembrou dos eventos do dia anterior e sentiu-se intrigado por algo. Sem hesitar foi correndo até seu quarto e arrumou os espelhos do armário de forma tal que pudesse ver suas costas. Queria ver o que de tão interessante que Regina vira. Ansioso, observou seu reflexo no espelho e tomou um enorme susto. Exatamente na base dos ossos externos, haviam duas protuberâncias estranhas, semelhantes a cicatrizes feitas a ferro e fogo. Pela aparência delas, eram novas, provavelmente surgiram quando estivera no hospital, e quando Fernando as tocou sentiu dor, muita dor. E teve a nítida impressão de escutar uma gargalhada ecoar por seu apartamento.


Novo adereço.

Uma lágrima percorreu o rosto de Fernando, mas não era de dor. Fernando sentia-se novamente traído por si mesmo, no âmago de seu ser era capaz de compreender que dessa vez a Sombra não era culpada de seu estado. Ele deveria ter se lembrado disso, se pareceria com as tais borboletas, mesmo que uma caída, ele deveria carregar alguma marca física do ocorrido. Era uma questão de pura lógica. Aproveitando a oportunidade, lembrou de que também ostentaria uma marca da Sombra em seu corpo, girou pelo espelho e sem muita dificuldade encontrou a marca em seu ombro direito. Parecia com uma tatuagem, mas quem olhasse de perto pensaria se tratar de uma queimadura. Saber onde ficava a marca naquele momento era bom, pois se lembraria de jamais usar roupas que permitissem observar essa marca. Ser negro, ao menos, ajudaria a disfarçar a marca.


Bela marca... Moda do ano.

Sem mais nada para ver, sentou-se na sala para ver televisão. Sentia-se ainda um pouco estranho, mas o que mais estranhava era a ausência de remorso. Podia aceitar numa boa estar triste ou qualquer coisa semelhante, só que o único sentimento naquele momento era essa confusão mental. Amaldiçoava-se, pois se quando os familiares de Renato aparecessem pra enterrá-lo, teria que fingir, e como fingiria um sentimento que nem sabia como era? De repente seus pensamentos foram quebrados pelo toque insistente de seu celular. Fernando se levantou, pegou-o e viu o número da Organização estampado na bina. “Nossa, já são quatro horas da tarde, perdi o dia inteiro nisso...”, pensou vendo o horário no visor. Respirou fundo e atendeu o celular a contragosto. Ao invés da voz habitual da secretária, quem estava falando do outro lado era a voz de Albano.

– Não precisa sair de casa, estou indo para aí... – Falou Albano, desligando o telefone antes que Fernando pudesse perguntar algo.


Albano tocou a campainha da casa de Fernando cinco minutos depois. Fernando correu e abriu a porta, procurando ser o mais delicado possível com aquele homem que tanto odiava. O visitante vestia seu tradicional sobretudo e debaixo dele um conjunto social também todo preto. Sua barba estava mal-feita, parecendo que tinha acabado de acordar, e seus olhos exibiam olheiras tão profundas que seus óculos escuros eram incapazes de esconder. Mas no que Fernando mais reparou foi no cheiro de Kenzo, forte e inconfundível, que chegava até mesmo a provocar-lhe estranhos pensamentos e sensações (que antes de Jonas nem eram tão estranhos).

O assassino observava Fernando, deliciando-se com o incômodo causado, e demonstrando conhecer a casa dirigiu-se direto para o sofá e ali se acomodou. Educadamente Fernando ofereceu café a Albano, porém este negou a oferta e pediu um cinzeiro. Sem cinzeiros na casa, pois ninguém fumava, Fernando improvisou e pegou uma xícara de café vazia a Albano, entregando-a como substituto ao cinzeiro.

– Desculpe a falta de cinzeiro. – Desculpou-se Fernando, puxando uma cadeira de madeira e sentando-se diante de Albano.

– Sem problemas, vamos direto ao assunto que sei que você me odeia e me quer fora de sua casa o quanto antes. – Respondeu Albano, acendendo o cigarro e tirando do bolso de seu sobretudo um tubo de arquitetura pequeno.

– O que é isso? – Perguntou Fernando, tentando sem sucesso pegar o tubo das mãos de Albano.

– São plantas, mas isso não tem nada a ver com você... Quero saber se você sabe dirigir.

– Se sei? Claro que sei!

– Ótimo, amanhã partimos para Angra dos Reis, passe no escritório da Organização e pegue seu material as dez horas da manhã em ponto. Lá te darei novas instruções.

– Posso saber o que faremos?

– Até segunda ordem somos os novos agentes de segurança da esposa do vereador local recém assassinado por um monstro no Mac Donald’s... – Nesse momento Albano repara um certo olhar perdido em Fernando. – Você tem lido jornais?

– Não ultimamente... Ando ocupado matando namorados...

– Bem, um vereador de Angra dos Reis morreu assassinado, junto com toda a equipe, e faremos o serviço de segurança da esposa dele, única sobrevivente, e que está sendo transferida amanhã do hospital Barra D’or até Angra. Vamos escoltá-la com segurança até Angra e de lá receberemos novas ordens.

– Só isso?

– Só... Agora descanse e durma... A viagem será longa e as instruções também. Sabe dar tiro?

– Não...

– Então vai aprender amanhã.


Sem dizer mais uma palavra, Albano apaga a guimba do cigarro na xícara de café, se levanta e segue até a porta do apartamento. Fernando sequer se move, preocupado com o tipo de instrução que receberá no dia seguinte. Albano sorri educadamente para Fernando, abre a porta e se vai. Está atrasado, tem que passar na sede da Organização para providenciar o material do novato e, principalmente, para passar uma parte da noite no estande de tiros. Há dois dias que não sente o gosto da pólvora em seus dedos, e ele precisa sanar seu vício de algum jeito. Se Tirolez der sorte, encontrará no caminho algum sem teto solitário para acrescentar emoção a seu treino. Alvos reais são melhores que aqueles pedaços de cartolina preta.

Fernando continuou calado na cadeira. Agora não se sentia tão mal na companhia de Albano, até parecia admirar sua frieza e dedicação, mas algo não encaixava nisso tudo. Albano parecia natural demais na sua presença, parecia até conhecê-lo, se é que isso era possível. E porque Albano sorrira ao sair? De repente tocou-se de estar sem camisa o tempo todo em que Albano estivera em sua casa. “E se ele viu a tatuagem? Pior! Se ele SOUBER o que significa?”, pensou desesperado durante as horas que levou para finalmente dormir...

Revelação de Jonas, Missão: Segunda Fase da Missão

Revelação de Jonas: Missão
Segunda Fase da Missão
O Adeus

Fernando caminhou rápido até o Metrô e em pouco tempo chegou em casa, tomou banho, e os trapos de momentos atrás foram substituídos por roupas do mais fino trato. Era uma espécie de obrigação que martelava em sua cabeça, a necessidade de se vestir bem para o que faria. Lembrou de pegar seu celular e desceu novamente a Rua Siqueira Campos apressado em direção novamente ao Metrô, isso por volta de onze e meia da manhã. A excitação do momento era tão grande que esquecera completamente de Renato ou de qualquer fato ocorrido no dia seguinte. Mas de uma coisa não se esquecera, de comer.

Assim que chegou a estação da Carioca, Fernando saltou do vagão onde estava e se dirigiu rapidamente para um de seus restaurantes favoritos no Centro. O restaurante ficava no subsolo do Ed. Avenida Central, chamado pelas pessoas tipicamente de somente 156, seu número, e o local era famoso por ser um dos pólos de informática do Estado do Rio de Janeiro. O restaurante nada tinha a ver com informática, exceto pela associação devido a localização, e sua comida era barata e saborosa, exatamente do que Fernando precisava naquele momento. Serviu-se de mais do que o necessário e somente depois de quase uma hora saiu do restaurante, tendo gastado pelo menos trinta reais em alimentação, o que poderia ser considerado até demais dado os preços do local.

Eram quase uma da tarde quando finalmente saca seu telefone celular e decide discar para o número. Sem pensar muito ele simplesmente digita todos os números de uma só vez e nada acontece, a não ser uma informação da telefonista a respeito da inexistência do número. Torna a estudar novamente seu papel, e arrisca um palpite óbvio, e ao mesmo tempo em que o fará se sentir idiota se funcionar. E funciona. Fernando disca os dois primeiros grupamentos de quatro dígitos e aguarda que a ligação se complete. Em seguida, quando uma música começa a tocar, ele digita rapidamente os dígitos restantes e então a música para. Fernando imagina que a ligação vá cair e terá a confirmação de que tudo não passou de loucura, porém segundos depois uma mulher atende friamente do outro lado.

– Como conseguiu nosso número? – Pergunta a voz feminina, sem a menor delicadeza.

– Acreditaria se dissesse que sonhei com ele?


A mulher se cala e em seguida uma gravação eletrônica é escutada. A estranha voz sintetizada explica como chegar até um prédio na Av. Presidente Vargas, como proceder e, principalmente, que Fernando deveria comparecer em pelo menos três horas caso contrário seus dados seriam invalidados. Sabendo que chegaria rapidamente no endereço, Fernando respirou aliviado por não ter ido ao Centro a toa. “Imagina se esse endereço ficasse em Marechal Hermes...”, indagou consigo mesmo enquanto caminhava tranqüilo pela Av. Rio Branco até seu destino...



...Renato acordou muito tempo depois em algum lugar completamente escuro. Pelo menos era o que sentia, pois por não enxergar absolutamente nada, parecia mais estar inconsciente ainda. Lembrava vagamente de uma pesada mão lhe agarrando por trás e do cheiro forte do sonífero. “O que está acontecendo...”, indagou, enquanto sua visão se acostumava pouco a pouco com o ambiente e novamente obtinha consciência de seu corpo.

Pra começar, Renato foi amordaçado e amarrado a uma cadeira que pelo que podia sentir, deveria ser no mínimo idêntica as cadeiras elétricas. Estava preso pelos pulsos, pés, tronco e pelo pescoço. Por sinal, a amarra do pescoço era o que mais lhe incomodava, dado que dificultava a respiração. Com os segundos passando, conseguiu finalmente ver que estava em uma sala apertada e completamente deserta com uma porta de madeira bem em frente de Renato. Os únicos objetos presentes eram a cadeira e uma mesa de madeira simples, que ficava distante o suficiente de Renato para impedir surtos de heroísmo.

Mesmo assim Renato tentou balançar inutilmente a cadeira, constatando que a mesma era chumbada no chão. Quem quer que o tenha prendido ali, assistiu filmes de fuga o suficiente para tornarem aquela situação impossível de ser superada. A Renato somente lhe restava esperar, mas nem esperou muito. Após meia hora, ou algo assim, de espera, a porta se abriu e uma luz branca iluminou toda a sala, ofuscando a vista de Renato, já acostumada com o escuro. De dentro da sala entrou um homem de aparência estrangeira usando óculos escuros e vestindo um sobretudo negro.

– Ótimo, está acordado... – Lamentou o homem, colocando a mão no bolso interno do sobretudo e tirando um frasco e um pedaço de pano.

– Calma... – Interrompeu Renato. – Antes me diz onde estou!

– Quem você pensa que é pra me perguntar coisas?


Sem dar chance a Renato de argumentar, o homem coloca todo o conteúdo do frasco no pano e cobre a boca e o nariz de Renato. Entre morrer prendendo a respiração e respirar, Renato cede a seu próprio organismo. A contragosto respira o maldito narcótico, e em questão de segundos apaga novamente e em sua mente uma voz começa a falar com clareza, uma voz que com certeza Fernando reconheceria até mesmo debaixo d’água:

– Temos um assunto a tratar...



...Em exatos dez minutos Fernando seguira todas as instruções dadas pelo telefonema. Estava nesse exato momento no prédio próximo ao DETRAN, na Avenida Presidente Vargas 1056. A sala era a de número 1304, ou simplesmente 04. Sem demonstrar toda a ansiedade que sentia, e um medo pavoroso de que tudo desse errado, Fernando subiu o elevador e foi até esse determinado andar, que por sinal, era o último. Assim que o elevador parou e suas portas automáticas abriram, uma luz branca acionada por sensores se acendeu.

Fernando viu uma pequena sala, com no máximo quatro metros quadrados, mobiliada somente por uma cadeira de espera na parede a sua esquerda e com toda a parede revestida por espelhos em perfeito estado de conservação. Até mesmo a porta do elevador nesse andar era completamente espelhada. Sentindo-se incomodado com a visão de tantos reflexos, Fernando sentou-se no banco e abaixou a cabeça, esperando por algo. Para relaxar, passados cinco minutos de completo tédio, retirou seu celular do bolso e começou a se distrair com os joguinhos de seu telefone. “Pelo menos tem ar condicionado...”, pensava enquanto o tempo passava.

Pelo menos duas horas algo de diferente aconteceu. Fernando já pensava seriamente em desistir e ir embora quando uma das paredes se deslocou para a esquerda, revelando uma segunda sala interna, onde tinham mais cadeira, um corredor e na parede a direita de Fernando uma mesa de secretária com uma mulher negra de aparentemente vinte e seis anos atendendo telefonemas. Ao escutar sua voz, Fernando percebeu que se tratava da mesma pessoa que segundos atrás atendera-lhe no telefone.

– Boa tarde senhor Fernando. – Disse a mulher, puxando uma ficha corrida de pelo menos cinco páginas e fazendo questão de mostrá-la de um ângulo que permitisse a Fernando ver que continha várias fotos suas. – Pelo que vejo chegou rápido... Desculpe a demora, mas antes que pudéssemos permitir sua entrada em nossas dependências, precisamos checar seus dados.

– Como fizeram? – Perguntou Fernando.

– Online, oras... – Respondeu a secretária, como se duvidando da ignorância do jovem. – Hoje em dia tudo pode ser encontrado na internet... Veja, você não possui fotolog?

– Tive...

– Bem, temos todas as fotos que publicou esses últimos anos... E por aí vai, demoramos em média duas horas para conseguir sua ficha completa pelos mecanismos de busca, ou você acha mesmo que o Google só pratica filantropia?

– Nunca pensei nisso...

– Bem, vamos ao que interessa, você sonhou quando com o número de nosso escritório de advocacia?

– Desde que saí do hospital... Sabe, quase morri...

– Ah sim, sabemos disso também. Suas chapas são interessantes, principalmente as de sua cabeça. – A mulher nesse momento deixou escapar um sorriso nos lábios que causaram em Fernando um estranho arrepio na nuca. – Diga-me, ainda continua com as mesmas preferências que antes ou isso também mudou?

– Preferências?

– Nada... Esqueça. – A mulher mudou de expressão e se aborreceu, não com a resposta de Fernando, mas em não ter certeza se ele era ainda homossexual. Se não fosse, gostaria de saber se sua aparência firme e forte era apenas visual. Fernando, obviamente, do pouco que entendeu da insinuação da mulher, se fez de desentendido. – Bem, Regina o aguarda no final do corredor que existe logo atrás de minha mesa, entre na porta sem bater... Ela o aguarda. E leve a papelada com você.


A mulher então colocou os papéis que segurava em um envelope pardo no formato A3, e entregou esse envelope a Fernando. Fernando agradeceu a ela pela cortesia e avançou pelo corredor. No caminho, tomado pela curiosidade, tateou um pouco o conteúdo do envelope e constatou que não tinham somente aquelas impressões em seu interior, as chapas que tirara quando saíra do hospital estavam todas ali. Não as originais, mas cópias muito bem feitas. “Espero que não tenha o dedo do Dr. Felix nisso...”, pensou enquanto se aproximava da sala de Regina.

Fernando entrou na sala de Regina tão imerso em pensamentos que nem percebeu o tamanho da porta e toda a sua riqueza de detalhes. Do mesmo modo não reparou nas estátuas angelicais e nem mesmo nos livros. Estava mais interessado na linda mulher que estava logo atrás da imensa mesa de mogno daquela sala, a própria Regina. Regina vestia um lindo blazer negro e seus cabelos estavam com um corte que destacava seus lábios e faziam seus seios fartos parecerem ainda maiores. Fernando, que há muito parara de se espantar com suas novas preferências, fervia por dentro imaginando-se deleitando-se com suas curvas.

– Eu sei que sou linda. – Falou Regina, asperamente, percebendo os olhares maliciosos de Fernando que rapidamente desapareceram dando lugar a um susto absurdo consigo mesmo. – Meu nome é Regina, e dispenso suas apresentações, já sei tudo sobre você... tudo que interessa.

– Desculpe... – Disse Fernando.

– Não precisa se desculpar, eu sei que são lindos. – Ao dizer isso, Regina tateou os seios e desabotoou o blazer, deixando-os à mostra.

– ... – Silenciou Fernando, chocado e ao mesmo tempo deliciado com tudo aquilo.

– Quer tocá-los? Pena que é apenas carne... – Ao dizer isso, Regina abotoa o blazer e se senta, mudando de silhueta e dando lugar a um rosto frio e repleto de ódio. – Não viemos para fornicar, não é SanoDji?

– Então já sabe... – Respondeu Fernando, exatamente do modo como se lembrava que a Sombra o disse para dizer, e, para seu espanto, somente se lembrava disso a medida que os segundos passavam e precisava desses dados.

– Claro, você tem certeza do que diz ser?

– Tenho, deseja uma prova direta?


Fernando então tirou a camisa por instinto e virou de costas. Não sabia o que estava mostrando a mulher, mas sabia que deveria fazê-lo. A mulher respirou satisfeita, e ordenou que colocasse a camisa novamente. Fernando novamente colocou a camisa e respirou aliviado. O que quer que tenha feito, surtira resultado. “Quando chegar em casa preciso ver o que exatamente tenho nas costas...”, pensou consigo mesmo, assombrado.

– Perfeito. – Comemorou a mulher. – Vejo que definitivamente é um de nós, mas ainda assim, preciso de sua lealdade... Antes do que tenho para te dizer.

– Que tipo de prova? – Perguntou Fernando.

– Aguarda e verás. – Disse Regina, apertando um botão em sua mesa, que ativou a comunicação interna via viva voz. – Cláudia, me chama o Albano, diga a ele que nosso Iniciado está pronto.

– Tudo bem. – Respondeu a voz. – Ele está impaciente na porta aguardando e me mandou várias chamadas de rádio.

– Perfeito.


Sem dizer mais nada, Regina pegou dentro de sua mesa uma lixa de unha e começou a cantarolar algumas músicas da Bossa Nova ao mesmo tempo em que utilizava a lixa. Fernando, um pouco mais calmo de tudo aquilo, se permitiu observar a sala e finalmente percebeu os dois altares dos anjos e os dois livros estranhos. Por um instante pensou em caminhar até um dos livros, mas algo em seu ouvido lhe disse para permanecer parado e aguardar. Em pouco mais de dois minutos, a porta da sala de Regina se abriu. Fernando viu então entrar um homem alto de aparência estrangeira vestindo um pesado sobretudo negro, e sem suar. Fernando não conseguia ver os olhos do homem, que estava utilizando óculos escuros, mas tinha certeza que era o foco de toda a atenção dele. O homem contornou a sala e cochichou algumas coisas com Regina, que sorriu feliz. Então Regina mais uma vez colocou a mão nas gavetas de sua mesa e dela retirou o jornal daquele dia, com a manchete a respeito de Fernando e Renato terem sobrevivido ao massacre do Mc Donald’s.

– Devem ter corrido muito. – Falou Regina, deliciando-se com o olhar de desespero que naquele momento aparecera em Fernando. – Acredito que deve estar reconhecendo o homem ao meu lado, não?

– Não estou. – Disse Fernando, sem mentir, pois daquele momento pouca coisa vira ou sequer lembrava.

– Bem, ele fez todo aquele serviço, o nome dele é Albano. – Disse Regina, vendo Fernando estender a mão para cumprimentar seu melhor soldado para simplesmente ser ignorado. – Bom saber que se gostam...

– O que ele tem a ver com isso tudo? – Indagou Fernando.

– Ele trouxe a oferenda para seu teste... Se estiver disposto a ser testado.

– Caso contrário?

– Albano carrega consigo uma arma carregada, diga “não”, e seus miolos farão parte da decoração, diga “sim” e seja testado.

– O que está acontecendo? Precisam realmente disso? – Ao dizer isso, Fernando cambaleou até um dos livros, fingindo estar transtornado.

– Se der mais um passo vai perder os joelhos. – Interrompeu o homem, interrompendo qualquer reação de Fernando, que simplesmente gelou e travou.

– O que vocês querem comigo? O que são vocês! – Berrou Fernando, deixando-se levar pelo medo.

– Somos a Organização, simples assim. – Respondeu Regina, guardando sua lixa de unha. – E você faz parte dela desde que despertou naquele dia no hospital, só está ficando ciente disso agora... Vamos resumir tudo, “Fernando” está morto, agora somente temos SanoDji e você nos pertence.

– Nunca!

– Ah sim... Tanto nos pertence que ouviu nosso chamado e veio que nem um cachorrinho ao chamado do dono. Nós o trouxemos a Terra com um objetivo e você há de cumpri-lo ou morrer em virtude deste.

– Terra? Por acaso vocês são loucos?

– Loucos? Não fomos nem eu e nem Albano quem sonhamos com telefones e ramais, e viemos parar aqui sozinhos. A escolha foi sua, livre-arbítrio, entende? Você no fundo no fundo sabe que essa é a verdade...


Fernando aquiesceu. Ele sabia que as palavras de Regina eram completamente verdades, mesmo que ela estivesse errando seu objetivo. Estava novamente questionando demais as coisas e se não começasse a agir mais com a razão e menos com o coração, acabaria morto mais uma vez em menos de um ano. “Agora é contigo Jonas...”, pensou enquanto se deixava levar pela aura do ambiente, que finalmente sentia e deixou que sua própria aura o preenchesse. Regina no mesmo instante sorriu satisfeita, percebendo que ao menos o jovem não era um tratante, mas que mesmo assim precisava ser testado. Um nome então saltou na mente de Fernando, que imediatamente o falou.

– Abados, quando começamos? – Perguntou Ferrnando.

– Que bom que se lembra... Bem, começamos depois que testarmos o quão desvinculado das memórias e desejos de sua carne está.

– Devo transar com você? – Perguntou Fernando, sentindo-se em parte satisfeito por poder usar esses termos.

– Não me referi a esse tipo de carne, e mesmo que a idéia me agrade, ainda não. – Fernando reparou então que Regina olhou para Albano de modo discreto, mas olhara. – Você deve exterminar algo de seu passado, Albano o guiará até a sala da libertação.


Albano então colocou-se do lado de Fernando e apontou para a porta da sala. Fernando o acompanhou pelo corredor até chegarem diante de uma sala. Albano puxou uma chave e abriu a porta, revelando um corredor com isolamento acústico dos melhores, feito em isopor com acabamento em carpete. “Precisamos ser discretos sempre, essa é a ordem.”, instruiu Albano, reparando que Fernando estava estranhando todo aquele ambiente. No final do corredor tinha outra porta, ainda mais grossa e mais isolada que a anterior. A porta dava para um pequeno quarto completamente escuro onde quando os fachos de luz iluminaram, revelou algo bizarro a mente de Fernando. Renato estava preso a uma cadeira elétrica, e dormindo profundamente.

Além de Renato apenas tinha na sala uma mesa simples, logo atrás dele, com um revólver sobre ela e muitas balas, além de um frasco de vidro vazio e um pedaço de pano. Fernando pensou em ir acudir Renato, mas desistiu quando Albano se colocou entre eles e deu um soco em Renato, que o fez acordar ainda grogue., cuspindo sangue e dentes.

– Hora de acordar. – Falou Albano, puxando os cabelos de Renato e apontando seu rosto para Fernando. – Vejo que possuem, ou possuíram, algum tipo de intimidade... Bem, vou dar a você cinco minutos para fazer o que achar melhor. Estou colocando na mesa as chaves que libertam seu namorado, agora você escolhe o amor ou viver.

– O que tenho que fazer? – Perguntou Fernando, fingindo não saber a resposta.

– Se você viu a arma na mesa, sabe muito bem o que tem que fazer... Deve matar seu namorado. Mas tem que pelo menos descarregar a arma duas vezes nele.

– Porque duas vezes?

– Porque prefiro assim... Aumentará o trauma, sua libertação dos valores anteriores a sua iniciação, e ao mesmo tempo sua frieza. Lembre-se, cinco minutos pro primeiro tiro... Se quiser se matar, faça-o também, mas isso não salva seu namorado.


Albano não deu tempo de Fernando argumentar ou sequer de abrir a boca. Largou os cabelos de Renato e saiu da sala, fechando forte a porta do outro lado. Fernando permaneceu em silêncio enquanto Renato acordava e cuspia o resto do sangue que escorria pela boca. O olhar de Renato era um misto de ódio e incredulidade. O jovem não entendia que tipo de ligação existia entre aquele homem e Fernando, que até poucos dias atrás era o amor de sua vida, e agora parecia compactuar com tudo aquilo. Fernando caminhou até a arma e começou a carregá-la, enquanto Renato voltava completamente a consciência.



Tirolez sorria do outro lado da sala. Suas mãos o tempo todo coçavam, implorando por puxar sua Magnum e dar cabo de uma vez por todas daqueles dois insolentes. “Eles ousaram sobreviver.”, pensava Albano, enquanto se apoiava na parede do corredor e tirava de seu bolso um chiclete de menta e o começava a mascar. Agora faltava pouco tempo, ou Fernando se mostrava digno de pertencer a Organização ou Albano providenciaria a ele uma passagem de ida pra o inferno, de uma viagem lenta. De repente ele escutou uma seqüência de disparos vindos da sala. Imediatamente deslocou uma parte da parede, parcialmente oculta, que revelou um painel de controle com uma tela de LCD que mostrava através de câmeras o que acontecia dentro da sala. Albano sorriu satisfeito com a cena que via.



– Renato, eu... – Balbuciava Fernando, sofrendo muito, pois apesar de tudo, de todos os problemas, aquele era o homem de sua vida.

– O que você quer? – Falou Renato. – Eu sei que você trabalha pra eles, eu vi em seus olhos... Começou quando isso? Era loucura demais pra você... Eu tinha certeza disso!

– Renato, entenda, eu... Eu...

– Porque não consegue falar? Por acaso está em dúvida? É isso? Por Deus, Fernando, decida-se de uma vez por todas, você me ama ou não?

Fernando não respondeu, não com palavras, delicadamente soltou Renato e quando o soltou o abraçou com todo o amor que poderia sentir por ele. Renato correspondeu o abraço e em seguida se beijaram. O beijo foi longo e ardente, e quando terminou, Renato e Fernando trocaram olhares ternos, repletos de amor, e em seguida Fernando falou:

– Fernando sempre te amou... Jonas nunca.

Sem derramar uma única lágrima Fernando descarregou os oito tiros do revólver no peito de Renato, que arregalou os olhos, imerso em dor, e caiu novamente na cadeira. Fernando, sem olhar um momento sequer para Renato, voltou até a mesa para recarregar sua arma. “Eu sei... Eu sei que você faria isso... Pelo menos sei que não foi o homem que amei quem fez isso... A Sombra me falou...”, balbuciava Renato, com suas últimas forças, enquanto Fernando terminava de recarregar a arma.

– Adeus, Renato. – Despediu-se Fernando. – Que a Sombra te guie até Fernando...

Fernando deu mais oito tiros na cabeça de Renato, que tombou inerte na cadeira. Albano entrou na sala em seguida, observando todo o sangue espalhado pela sala e nas roupas de Fernando. Albano sorria, ao contrário de Tirolez, pois dessa vez não mataria novatos. Mesmo não sendo a primeira vez que via isso acontecer, tinha sido um recorde, em menos de três minutos um dos Iniciados cortara de uma vez por todas os laços anteriores. E sem deixar uma bala sequer no tambor. “Esse rapaz tem muito potencial”, pensava Albano. Seja bem vindo a Organização. – Decretou Albano.


Bem Vindo!

Revelações de Jonas, Missão: Primeira Fase da Missão

Revelações de Jonas: Missão 
Primeira Fase da Missão
Choque


Fernando chorou até dormir. Acordou as sete horas da manhã do dia seguinte ainda no mesmo lugar onde desabara no dia anterior, suas mãos seguravam ainda o bilhete de Renato, arrancado de seu caderno. Súbito, Fernando se levanta e corre até a lata de lixo, procura por alguns segundos e encontra novamente o papel que fora o pivô de sua briga. Por um segundo pensa em rasgá-lo e jogar seus pedaços pela janela, mas recua e muda sua opinião. Imediatamente Fernando se levanta, corre para o banheiro e em menos de quinze minutos está na portaria de seu prédio com banho tomado, de roupas limpas e com alguns trocados no bolso além da misteriosa folha de caderno.

– Bom dia. – Diz seu porteiro, vendo Fernando sair do elevador.

– Bom dia... – Responde Fernando. – Me diz uma coisa, você conhece algum pai-de-santo bom?

– Por causa daquelas coisas estranhas? – Indaga o bom homem, enquanto pega dentro do bolso uma pequena agenda.

– É, quero ver se uma sessão de descarrego funciona... Acredita que Renato foi embora ontem?

– Acredito, menino, eu o vi saindo do elevador chorando. A briga foi feia, heim?

– Nem me fale...



O bom homem entrega a Fernando um telefone e um endereço no centro onde fica o pai-de-santo indicado. Com a convicção renovada, e provavelmente uma percepção de "nada a perder" inerente, Fernando guarda o endereço consigo e desce a Rua Siqueira Campos em direção do metrô. Em poucos minutos ele salta na Estação Uruguaiana e desce a Rua Senhor dos Passos até a indicação dada por seu porteiro. Ao chegar, dá-se conta que precisaria somente do nome da rua, pois um jovem vestindo um imenso cartaz anuncia exatamente esse endereço. Fernando pega uma propaganda do jovem e ruma até seu destino.

O pai-de-santo se localiza exatamente no segundo andar de um sobrado localizado na esquina da Rua Senhor dos Passos com a Rua Conceição, no sentido da Av. Presidente Vargas. A entrada é até mascarada pelos produtos vendidos pelas lojas do local, o qual somente se procurando seria possível encontrar algo. Fernando sobe as escadas de madeira velha do sobrado até seu segundo andar, onde logo nos últimos degraus suas narinas são tomadas pelo odor forte de algum incenso vagabundo. Segurando a tosse, Fernando chega até uma pequena porta velha com apenas uma folha de papel colada na porta com os dizeres "Estamos Aberto" impressos. Fernando abre a porta com certo receio, esperando realmente encontrar um charlatão, e suas suspeitas começam a se confirmar.

A sala do vidente é pequena, medindo pelo menos quatro metros quadrados. As paredes são cobertas por cortinas vermelhas, dando a impressão da sala ser menor do que é, e a iluminação do local, também vermelha, faz doer a vista. No meio desse ambiente existe uma mesa comprida, que divide o local em dois ambientes. Do lado onde Fernando está, há apenas um banco de visitas e uma cadeira para os consultados colocada em frente a mesa. Do outro extremo, uma poltrona de veludo vermelho. A mesa é forrada por um pano lembrando tapeçaria indiana, e sobre este têm diversos artefatos espalhados, desde tabuleiro de orixás à cartas de tarô e mesmo uma bola de cristal com iluminação especial repousa nessa mesa. Uma música baixinha de rituais afro-brasileiros completa a ambientação, que só não é um forno porque aquele local tem ar condicionado. "Estou enrolado.", pensa Fernando, enquanto se senta na cadeira de consulta.

Imediatamente, como se combinado, uma fumaça branca toma o local e quando essa abaixa o pai-de-santo está sentado em sua poltrona, segurando uma garrafa de cachaça na mão direita e um charuto na mão esquerda. É um homem gordo aparentando pelo menos quarenta anos e pele branca. Veste-se a caráter, como se fosse uma baiana de Olinda. Ele parece sério e ao mesmo tempo completamente ridículo. A luz ambiente dá a ele uma aparência malévola, que provavelmente se manifesta quando ele cobra a consulta.

– Problemas de amor? – Pergunta o homem, colocando a garrafa de cachaça na mesa, e pegando em seguida uma caixa de fósforos, mas ainda sem acender o charuto. – Dinheiro?

– Nada disso. – Respondeu Fernando. – É que tem acontecido algumas coisas...

– Não precisa dizer! – Berrou o homem, dando um susto em Fernando. – Oxalá Berimbau Coxequelê! Iêlele maracatum baobalê! Pai Damião de Ogum tudo sabe, tudo vê! Pai Damião pode ver que fizeram trabalho pra você! Trabalho dos maus!

– ... – Observou Fernando, sem nada dizer e achando até graça da atitude do homem.

Se ele não fosse um completo charlatão até poderia te ajudar. – Disse o homem, mudando o tom de voz e ficando completamente estático, ao mesmo tempo em que a luz se apagou, deixando ambos numa escuridão quase completa, não fosse uma luz tênue que vinha atravessando as janelas.. – SanoDji, você dá muito trabalho...



Ao escutar e reconhecer a voz, Fernando levou um susto e quase caiu da cadeira. Pela terceira vez escutava aquele nome, SanoDji, e dessa vez de uma pessoa que até segundos atrás apenas era mais um dos muitos charlatões que existem. O pai-de-santo, no entanto, se posicionou de modo mais confortável na cadeira, e menos exuberante, dando a ele um tom de seriedade que até segundos atrás não existiam. O que mais espantavam Fernando, era uma estranha sensação de tranqüilidade que lhe tomava a mente, como se estivesse vendo um velho amigo.

– Você realmente é muito devagar, SanoDji. – Afirmou o homem. – Ao menos não jogou fora a carta que te mandei...

– Quem? – Indagou Fernando, mas sabendo que no fundo de sua alma, sabia a resposta.

– Você sabe, eu sei que você sabe, por isso vou pular essa etapa da mensagem, mesmo porque não sei por quanto tempo vou ficar nesse idiota até que alguém se dê o trabalho de intervir...

– O que você deseja de mim?

– Que cumpra o serviço para o qual te contratei, ou morra sem cumprir... Entenda, era para nesse exato momento seus pedaços estarem freqüentando pelo menos 10 felizes receptores, mas o "milagre" – Disse o homem, dando ênfase a milagre. – de estar vivo, custou a vida de pelo menos cinco pessoas...

– Como assim?

– Entenda, você morreu. Aliás, esse corpo ESTÁ morto, acredito que os exames neurológicos tenham sido bem claros. Se está vivo, é porque eu o mantive assim e coloquei algo para mantê-lo assim. Eu sei que é difícil aceitar isso e que não vai acreditar nisso, portanto vou te dar uma prova...



Imediatamente Fernando sentiu-se tonto e seus olhos viraram. Tudo a sua volta ficou turvo, e aos poucos sua consciência se foi. De repente se viu em um desfiladeiro vermelho sangue, onde um vulto negro estava diante dele, que ele sabia ser a Sombra. Ao longe via um reflexo de si mesmo, sentado sobre uma pedra. Seu reflexo chorava copiosamente e vez por outra olhava Fernando com pesar. Nesse momento Fernando se deu conta que seus braços estavam mais magros e brancos, e de repente teve a certeza de se chamar Jonas.

– Seja bem vindo a seu lar. – Disse a Sombra.

– Meu lar? Sim! Eu me lembro! – Berrou Jonas, dando-se conta de si mesmo. – Porque entre tantos corpos na terra foi escolher justamente uma bicha?

– Espíritos não têm sexo. – Respondeu o rapaz negro, que segundos atrás era considerado apenas um reflexo. – E não me tome por bicha, ou qualquer termo pejorativo, o que tenho pelo Renato é puro e sublime amor. Amor esse que enfraqueceu por sua causa! – Nesse momento o jovem negro levantou-se com raiva e fez menção de atacar Jonas, mas acalmou-se em seguida e sentou-se novamente.

– Quem é esse? – Perguntou Jonas a Sombra.

– Fernando, quem mais poderia ser? – Respondeu a Sombra, de imediato. – É o legítimo dono do corpo ao qual possuiu quando ele julgou que sua missão na Terra estivesse cumprida.

– E qual era sua missão? – Indagou Jonas.

– Salvar dez vidas. – Afirmou a Sombra, seca e com certa satisfação na voz em dizer tal coisa. – Fernando foi enviado a terra para morrer e ajudar pessoas naquilo que chamam de doação de orgãos. O suposto milagre interrompeu a missão de modo ainda superável, pelo menos se no final de minha missão ainda existir algo a ser doado...

– Que missão é essa? – Perguntou Jonas, vendo que depois do que a Sombra dissera, o espiríto Fernando partira, deixando-os a sós.

– Vou te explicar...


Albano despertou com o rádio nextel de Regina apitando nervoso sobre seu criado-mudo. Sem dar nenhum movimento brusco, Albano permaneceu fingindo que dormia para escutar. Regina se levantou de sua cama, reclamou do horário, pois ainda eram apenas quatro e meia da manhã, e rapidamente foi até a varanda do quarto de Albano para evitar que escutasse algo, pois para terem a audácia de incomodá-la naquele horário, coisa boa não seria. Albano a seguiu com o olhar, aproveitando-se que a escuridão da noite lhe dava tal subterfúgio. Observou Regina andar de um lado para o outro da varanda discutindo de forma áspera com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Passados menos de dois minutos, Regina voltou para o quarto e começou a falar com Albano ao mesmo tempo em que se vestia.

– Pare de fingir dormir, temos problemas. – Disse Regina, enquanto colocava sua calcinha.

– Que tipo? – Perguntou Albano, fingindo estar acabando de acordar.

– Sua missão não foi um sucesso total, parece que você deixou algo escapar. – Sentenciou Regina, colocando agora seu sutiã.

– Que tipo de algo? – Indagou Albano, quase deixando Tirolez assumir o diálogo.

– Um de nossos agentes está com a edição matutina do jornal de hoje com a cobertura do nosso serviço, e ao que parece testemunhas afirmaram que além de você, mais gente saiu daquele lugar com vida.

– Isso pode ser corrigido... Só gostaria de saber como escaparam.

– Problema seu, estou voltando para a sede agora, devo te ligar para passar essa mesma notícia.


Regina terminou de se vestir ao final da frase e deu um beijo provocante em Albano, deixando-o propositalmente excitado. Sem dar atenção a situação que criou, Regina pegou sua bolsa, seu nextel e saiu do apartamento de Albano. "Divirta-se sozinho.", provocou, batendo a porta com força. Albano imediatamente foi para o chuveiro e começou a tomar um calmante banho gelado, com o objetivo de esfriar ambas as cabeças. Uma pela provocação, e outra pela preocupação com relação a falha. Tirolez não admitia erros, e estava ansioso para saber quem eram seus novos alvos...

Muitas horas depois Fernando acorda. Está com uma profunda dor de cabeça e caído no meio da Praça Tiradentes com apenas a roupa do corpo, seus documentos, uma garrafa de cachaça vazia na mão e dinheiro suficiente apenas para ir embora. Pelo cheiro que sentia nele mesmo, provavelmente bebera muito, mas não se lembrava nem quando nem como isso acontecera. Por algum milagre do acaso, o dinheiro de Fernando estava intacto e junto as suas notas tinha a propaganda do vidente, quando pegou o papel levou um susto. Nele estava escrito um recado da Sombra, dizendo "desculpe o estado atual... não resisti.", e em seguida as ordens que Fernando deveria cumprir até o final daquele dia. As palavras finais da Sombra naquele local inóspito ainda martelavam em sua cabeça...

– ...Não se esqueça de ligar para esse número que está no seu bilhete. – Disse a Sombra. – De preferência, faça isso quando acordar e estiver preparado.

– Entendi, mas porque é tão importante assim ser hoje?

– Essa ligação é simplesmente a alma da missão, sem ela está tudo perdido... E não tolerarei falhas. – Instruiu a Sombra.

– E com quem falarei?

– Não se preocupe, quando tiver entrado em contato com eles, nos comunicaremos em seus sonhos... A partir de agora você dormirá para estar aqui. E lembre-se que precisará colocar em prática o que Daik-Haniah lhe ensinou.

– Lutar?

– Não, a manifestar a energia dos emplumados, a que eles dizem ser única...

– Precisarei? Eu não lembro se consegui fazer...

– Conseguiu por pouco tempo, e espero que consiga novamente, caso contrário terá problemas... E lembre-se, você é SanoDji, não é Jonas e muito menos é Fernando...



Além desse pequeno diálogo, Fernando lembrava-se apenas de coisas sem nexo, como se somente essas coisas específicas fossem importante. Apesar da recomendação da Sombra de realizar a ligação ao despertar, Fernando sabia que estava maltrapilho demais para causar qualquer espécie de boa impressão a quem quer que o visse naquele momento, portanto, retornaria em casa e colocaria trajes dignos. Ao menos sua partida repentina do prédio, mais cedo, seria justificada pela "depressão pós-toco", e ninguém desconfiaria de nada. E dado o preconceito dos vizinhos, ninguém sequer se importaria. Pensando nisso, Fernando seguiu caminho para o metrô e foi para casa usando o único dinheiro que tinha. Em menos de duas horas teria trocado de roupa e estaria voltando novamente para o centro da cidade.

Eram uma da tarde do dia 22 de maio, o dia seguinte a terrível discussão entre Fernando e Renato. Renato estava completamente transtornado com o comportamento de Fernando. Além de toda aquela confusão envolvendo as loucuras dele, agora Renato parecia partilhar delas, era demais até mesmo considerada toda a história de ambos. Uma coisa era ir contra o mundo, outra muito diferente era ir contra si próprio, e as atitudes de Fernando eram adversas demais para que Renato simplesmente ignorasse ou relevasse. Mesmo assim, o conteúdo da carta ainda doía um pouco no coração de Renato. Apesar de tudo que escrevera ali, no fundo não desejava abandoná-lo, mas ao mesmo tempo algo lhe dizia quase que gritando que devia fugir o quanto antes de perto de seu namorado. “Fernando não é mais aquele que amou”, dizia uma voz fraca em seus ouvidos na medida em que os minutos passavam.

“Tudo que preciso agora é uma viagem”, dizia a si mesmo enquanto observava com certa mágoa o bilhete de avião comprado na noite anterior com destino à Amsterdã, na Holanda. O avião partiria somente às oito horas da noite, mas mesmo assim ele chegara ali ainda no dia anterior e passara o dia e a noite inteiros vagando pelo Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, procurando clarear a mente. A única coisa que conseguiu foi pensar mais no assunto. E, finalmente, quando faltavam menos de seis horas para o check-in, Renato tomou a decisão mais importante de sua vida, voltar para o apartamento e conversar com Fernando uma última vez, mesmo que fosse para dizer adeus.

Tirolez estava controlando os passos de Albano desde que Regina lhe informara sobre suas duas falhas que ainda falavam e corriam. Estava realmente ansioso por instruções em seu quarto, mas também tinha certeza que enquanto não tivesse todas as informações necessárias nada poderia fazer a não ser aguardar. E Tirolez era impaciente demais. Regina saíra de seu apartamento há apenas quinze minutos, com destino ao escritório do Centro, por volta do início da hora do rush, mas mesmo assim ele dizia a si mesmo que ela estava atrasada. Para Tirolez cada segundo que passava era um risco que aumentava. Meia hora depois, de repente, seu telefone tocou e Tirolez o atendeu tão rápido que sequer o aparelho teve tempo de complementar seu primeiro toque.

– Tiro... Albano falando. – Disse, deixando Albano se libertar para dialogar, pois o uso das palavras era com Albano, não com Tirolez.

– Não deu tempo nem de dar o toque... Fique calmo, agente. – Disse a voz de Regina, fria.

– Estou calmo.

– Percebo, e o som do telefone rachando por causa da pressão de sua mão sobre ele é apenas chiado... – Discordou a mulher, escutando perfeitamente bem o som do plástico sendo quase fragmentado. – Se continuar com esse derramamento de hormônios vamos precisar de outro telefone e de outra ligação, você quer isso?

– Não, continue senhora. – Respondeu Albano, imediatamente tomando todo o controle de Tirolez e passando a tocar no telefone de maneira mais delicada que uma moça com frescura.

– Bem, estamos enviado para seu Pocket Pc, via GSM, uma redução da capa e da matéria de hoje do jornal que falou sobre os sobreviventes e anexo a essas, o endereço dos dois sobreviventes, para sua sorte moram juntos.

– Universitários?

– Não, namorados.

Albano respirou fundo e silenciou, sem responder nada, não era exatamente o tipo de serviço que mais lhe agradava. Não que sentisse alguma espécie de piedade de casais, mas geralmente suas súplicas eram ridículas e tinham o péssimo hábito de demorar a morrer, o que obrigava Tirolez sempre a desperdiçar pelo menos dez balas na cabeça de cada.

– Creio que os alvos lhe agradaram... – Comentou Regina. – Sinta-se feliz, pois todos aqui curtem matar minorias, e você vai fazer isso do jeito que mais gosta, sozinho.

– Não existem minorias, existem apenas os vivos, mortos e os mortos por mim. – Falou Albano, revoltado em seu sentimento ser confundido com reles preconceito. – Você sabe que não ligo pra essas coisas.

– Eu sei apenas que você tem dois alvos, apresse-se somente e deixe-me livre de seus pensamentos.

Regina desligou o telefone. Albano não se importava mais com essa delicadeza dela, pois sabia que a Organização o mandaria matá-la se soubessem do envolvimento de ambos. E Tirolez obedeceria qualquer ordem vinda dos superiores, e se ordenassem até se deliciaria com a morte de Regina, independentemente de qualquer sentimento que nutrisse por ela. Esse era o modo de vida do soldado, e seu único mote, o qual levaria para o túmulo.

Os minutos seguintes foram de mais tensão para Albano, até que finalmente seu Pocket PC apitou e finalmente a mensagem tão esperada chegou. Eram dois arquivos de imagem de tamanho considerável e agregado a ele tinha um pequeno arquivo de texto contendo o endereço de ambos e seus nomes completos. Por algum motivo que somente Tirolez e Albano podiam entender, os nomes de ambos os sobreviventes abriram um sorriso no cruel assassino, Renato e Fernando. Seria até normal tal sorriso em outros assassinos, se ao menos ele sorrisse, mas pelo menos não tinha testemunhas de seu raro e, por sinal, único momento de estranha satisfação.

 
Mais uma vez: Capa de Jornal... Será ele participante de Reality Show?

Albano estudou friamente todo o material e depois o apagou por completo. As regras da organização eram claras a respeito de destruição de arquivos, e por esses motivos raramente carregavam consigo papéis com instruções, ficando essas armazenadas em computadores de bolso com todo o aparato necessário e em memórias removíveis, que podiam facilmente serem descartadas e destruídas em caso de problemas. Segurança da Informação era uma das dez prioridades da Organização, a Segunda Prioridade, que para Albano era mais que isso, era uma lei inquebrável que nem a Lei da Gravidade.

De posse do material e dos endereços, Albano saiu de seu quarto e foi até outro cômodo de seu enorme apartamento, que apelidava sutilmente de “cozinha do inferno”. Se fosse para descrever o cômodo, poderíamos chamar com outro nome, simplesmente de sala de armas, mas seria extremamente ridículo simplificar tanto algo que de simples não tinha nem mesmo o dono. Era uma sala com as paredes cobertas pelas mais variadas e possíveis armas que se pudesse imaginar. Desde simples venenos a até mesmo as cobiçadas munições radioativas do exército americano (responsáveis por matar sobreviventes das guerras árabes até anos depois da guerra ter terminado), passando por revólveres enferrujados a até mesmo um pequeno kit de destruição em massa, composto por um lança míssil, uma bazuca descartável, outra reutilizável e um conjunto de disparadores de granadas. Albano naquela manhã não desejaria nada de complexo, apenas seria simples, trivial e cirúrgico, sem alardes. Faria com que tudo parecesse com a cobrança de uma dívida de drogas, coisa comum em Copacabana, ainda mais entre os da classe desses alvos.

Albano então selecionou o aparato necessário para seu novo serviço e foi até seu carro. Colocou tudo em seu compartimento tradicional e foi embora. Como era um dia quente e não desejava criar suspeitas, Albano abandonou seu tradicional visual escuro e vestiu-se como um turista tradicional, carregando consigo uma bolsa de couro onde colocaria eventuais necessidades se precisasse. O tempo para realizar tal coisa era curto, e ele precisava ser o mais discreto possível, pois o endereço ficava em uma das principais ruas de Copacabana, a Siqueira Campos. Ainda ponderava se esperaria o cair da noite para agir ou se optaria por fazer logo e ir embora. Como Albano estava com pressa, optou por fazer logo. Para tanto, passou o dia inteiro na frente do prédio, observando o movimento do local.

Por causa disso, observou o momento exato em que Fernando saiu correndo, ainda de manhã, a caminho do centro e seu retorno quando eram por volta de onze horas, completamente bêbado e imundo. Quando Albano estava se preparando para entrar no prédio, Fernando saiu novamente, bem vestido, limpo, e desceu a rua apressado em direção ao metrô, já por volta de onze e meia. Calculando que Fernando vá demorar, Albano opta por entrar no prédio e aguardar pelos dois pombinhos dentro do apartamento deles. Para tirar mais informações a respeito dos dois, assim que um dos moradores sai para passear com seu poodle, pouco antes do meio dia, Albano o segue e o aborda.

– Bom dia. – Fala Albano, vendo que sua aproximação causara certo espanto a pessoa e fizera o cachorro latir.

– Bom dia. – Responde a pessoa, um homem de pelo menos sessenta anos e aparência que dava a entender ter sido militar.

– O senhor poderia me dar uma informação? – Pergunta Albano, exercitando ao máximo seu lado social.

– Que tipo de informação?

– Gostaria de saber se Fernando e Renato moram nesse prédio...

– As bichas do penúltimo andar?

– Isso, eles mesmo.

– Já respondi... Se é como ele, meus pêsames.

– Não é isso... Eu estou a paisana para averiguar uma denúncia de atentado ao pudor aqui nesse prédio, e estou colhendo informação para processá-los.

– Porque não disse antes? Eu fui um dos autores da denúncia, vamos até meu apartamento que vamos conversar a respeito desses trastes.


Se Albano tivesse algum tipo de fé, agradeceria a Deus por ter colocado aquele homem em seu caminho. Bastaram poucas palavras de preconceito para o homem cair na sua lábia, e sem nem mesmo precisar dar sua tradicional carteirada. O homem odiava tanto os dois que até mesmo deixou Albano entrar em seu apartamento sem sequer verificar sua autenticidade. Com relativa facilidade, Albano passou pelo porteiro e foi direto para o penúltimo andar do prédio, sempre acompanhado pelo homem, que se chamava Alceu. Alceu levou-o até seu apartamento, o qual fez questão de mostrar que ficava do lado do apartamento dos dois rapazes. Albano marcou bem o número do apartamento e acompanhou o senhor Alceu até em casa. Era um apartamento típico de homens na idade dele, com móveis velhos e o odor característico de mofo.

Como Albano não queria estar ali, no mesmo momento em que Alceu trancou a porta, Albano pediu para ir ao banheiro. Alceu indicou a ele o local, e Albano entrou rápido. Era um banheiro perfeito para Albano, com uma enorme banheira, exatamente o que ele precisaria nos próximos minutos. De sua bolsa de couro, Albano sacou um frasco de sonífero e molhou uma toalha com ele. Sem que Alceu se desse conta, pois estava envolvido demais em seu próprio preconceito, Albano o agarrou e o fez dormir com o produto. O cachorro imediatamente começou a latir, mas foi silenciado por vários chutes de Albano.

Logo depois Albano pegou Alceu e o levou para dentro do banheiro. Pegou outros frascos dentro de sua bolsa e encheu a banheira. Quando a quantidade de água era suficiente para cobrir Alceu por completo, Albano esvaziou o conteúdo dos frascos na banheira e um odor ácido começou a invadir sua narina. Em seguida Albano vestiu duas grossas luvas de borracha e colocou o corpo de Alceu nesse estranho preparado. Imediatamente uma estranha reação química começou e a água começou a borbulhar com o toque do corpo de Alceu. O velho fez menção que acordaria com a dor, mas mal se mexeu foi desmaiado por um violento soco. Em seguida, Albano voltou a sala, pegou o cachorro e também o jogou naquele estranho líquido.

Enquanto esperava tudo terminar, Albano foi para a sala e ligou a televisão. Aproveitou para ver se tinha deixado alguma pista de sua presença, e mesmo sem achar nada fez uma ligação de seu celular para a Organização, avisando que provavelmente necessitaria de uma equipe de limpeza para eliminar as provas. Eram uma da tarde quando Albano considerou que já tivesse se passado tempo suficiente. Ele foi até o banheiro e viu que a mistura parara de borbulhar e havia assumido uma consistência pastosa. Com a luva de borracha, procurou pelo tampo do ralo e o abriu. Lentamente aquilo que até horas atrás eram dois corpos começou a descer vagarosamente em direção aos esgotos. Para eliminar odores ou manchas, Albano encheu a banheira duas vezes mais, até a borda e salpicou muitos produtos de limpeza para eliminar odores. Nada havia sobrado de Alceu e de seu cachorro que apenas mera lembrança, o restante descera ralo abaixo.

Depois disso Albano pegou seu kit de arrombamento de portas e sem muito trabalho invadiu a casa de Fernando e Renato. Colocou uma cadeira na janela e ficava o tempo todo sentado olhando para a rua e ao mesmo tempo para a porta da sala, e assim passou o tempo. Quando Albano já dava o dia como perdido, um táxi para em frente do prédio e dele sai seu segundo alvo, Renato. Sem dizer muita coisa, Albano se levanta e prepara uma nova dose de sonífero em outra toalha, e aguarda pela última vez...

Renato precisava dar um último adeus para Fernando, e daria a ele e a si próprio uma chance de se redimirem de suas discussões. Ele decide transferir sua viagem para o dia seguinte e pega um táxi na porta do aeroporto de volta para casa. Ainda eram duas da tarde, e independentemente do resultado da conversa, viajaria, com Fernando ou sem ele. Ao chegar a seu prédio, a primeira pessoa que vê no prédio é seu porteiro, que chama sempre de Severino, mesmo sem saber o nome real dele.

– Bom dia, Severino. – Diz Renato, cordial.

– Bom dia, filho. – Responde o bom homem, sem contraria o rapaz a respeito de seu nome, que na verdade é Emanuel.

– Sabe se o Fê está aí?

– Saiu agora a pouco, quase que você o pega aqui... Estão melhores? Ele saiu daqui hoje de manhã transtornado e voltou completamente doido.

– Doido?

– É, fedia a cachaça das brabas... Foi em casa, parece que tomou um banho e saiu, não foi encontrar contigo?

– Não... Bem, quando ele chegar vai ter uma surpresa, vou fazer um jantar para ele. Até mais, Severino!

Renato estranhou a narrativa do homem, e como Severino já dera versões estranhas a coisas simples, decidiu não se importar e foi direto a seu apartamento. Ao entrar estranhou a disposição de uma das cadeiras da sala, que estava próxima da janela, mas nem se importou muito. Reparou que Fernando passara ali rápido, como dito, e nem arrumara direito as roupas sujas que efetivamente fediam a bebida de baixa qualidade, deixando tudo amontoado de forma bagunçada no cesto de roupas sujas. Com carinho pegou as roupas e as colocou na máquina de lavar. De repente um braço forte o agarra pelo pescoço e outra mão enfia-lhe uma de suas toalhas no nariz. Renato até tenta algum tipo de esforço, mas é tarde demais, o sonífero começa a fazer efeito, e Renato apaga...