Sexta Etapa do Plano
Pesadelo
– Vem tomar banho comigo? – Convidou Renato, beijando Fernando na testa.
– Não, vou ficar relaxando na cama um pouco... Preciso me acostumar. – Respondeu Fernando, pensativo.
– Se acostumar com o que?
– Em ser um milagre... Era pra eu estar morto, e estou aqui, ao seu lado, e acabamos de transar como não transamos há tempos.
– E que mal há nisso?
– Não sei...
– Então fica pensando aí, que eu vou tomar banho... Estou te esperando.
Renato deu mais um beijo em Fernando e foi direto para o banheiro. Fernando continuou parado, pensando que tinha algo de errado, ele não se sentia ele mesmo. Até mesmo de seu amor por Renato duvidava, ainda assim não conseguia compreender o porque de toda essa dúvida. Havia algo estranho naquele ambiente todo, não se sentia ali, não conseguia compreender o que estava faltando. Sem obter respostas além de escutar Renato contando feliz no banheiro, Fernando se levantou da cama e foi pegar um copo de água na cozinha.
O apartamento dos dois era um local extremamente confortável para duas pessoas jovens. Graças as condições financeiras dos familiares de ambos, conseguiram juntar dinheiro pra alugar aquele apartamento. Um quarto, uma sala, um banheiro com banheira ampla e uma cozinha não muito pequena, mas longe de ser grande, no estilo americano. Jonas foi direto pra geladeira e serviu-se de água, então ele escutou o som de um trovão. "Renato! Vai chover!", berrou, sem resposta. Estranhamente o som do chuveiro cessara depois do trovão, tudo estava silencioso demais. Fernando deixou o copo sobre a bancada da cozinha e quando saiu daquele local todas as luzes da casa se apagaram. "Agora falta luz... Deve ser alguma peça do Renato.", pensou, mas se deu conta que a caixa de força ficava na cozinha, logo, Renato dessa vez não tinha culpa.
Continuou caminhando desconfiado pela sala em direção a cozinha. Em paralelo, uma chuva de proporções absurdas começa a cair sobre a janela do apartamento, e vários trovões iluminavam todo o apartamento. De repente Fernando foi tomado pela sensação de não estar sozinho naquele lugar, e tinha certeza que não era Renato. Correu imediatamente para o banheiro, procurando por Renato. O banheiro era pequeno, no formato retangular, tinha quatro metros de profundidade e dois metros e meio de largura, Fernando conhecia essas medidas por ter sido ele a azulejá-lo todo quando vieram se mudar. Os azulejos eram brancos e iam do chão até o teto. Do lado a esquerda de quem entra ficava um pequeno armário com pia embutida, ao lado da pia ficava a janela basculante. Do lado oposto ficava a privada e no final do banheiro tinha um box amplo, pois os dois tinham o hábito de tomarem banho juntos. Quando Fernando chegou ao banheiro o chuveiro estava ligado e aparentemente Renato estava no box tomando banho. Por causa da temperatura da água, estava difícil ver alguma coisa entre a névoa, mas Fernando conseguia identificar que Renato estava lá. Porém, estranhamente sentiu um calafrio.
"Rê, tudo bem?", perguntou Fernando, sem resposta. A figura reagiu timidamente ao chamado, aparentemente ignorando. Determinado a dar um basta no seu medo, Fernando avança em direção do box e o abre. Não tem nada no box, nem mesmo o chuveiro está ligado, o som que escutava era da chuva que caía torrencialmente na janela do banheiro. De repente um som vem do quarto e Fernando leva mais um susto, parece o de algo caindo no chão. Ele corre até o quarto e não encontra nada. Cansado dessa brincadeira sem graça Fernando senta na cama e olha para a Janela. Uma palavra está escrita na janela, como se feita recentemente com dedos.
Uma palavra, um choque...
"SanoDji", balbucia Fernando, dando passos para longe da janela e sentando-se na cama. Ele continua repetindo o nome diversas vezes e uma dor de cabeça enorme começa de imediato. Ele não consegue se concentrar e nem esquecer essa palavra, que finalmente percebe não ser uma palavra, e sim um nome. SanoDji é um nome, mas Fernando consegue entender de onde sente tanta familiaridade e nem porque sente-se mal ao pronunciá-lo, uma preocupação enorme toma conta dele. Ele abaixa a cabeça para respirar e quando torna a levantar, dá de cara com uma enorme sombra negra. A sombra não parece ser de Fernando e permanece parada por segundos que parecem horas. Fernando sente-se compelido a levantar e a encarar ela de frente, e quando se levanta a sombra vem em sua direção e o chama de Jonas. Novamente Fernando escuta esse maldito nome. Ele não entende porque tantas vezes escutou esse nome e porque o persegue de tal forma, pois apesar de aparentemente causar certa repulsa escutá-lo, ao mesmo tempo causa certo saudosismo.
– Precisamos conversar... – Diz a Sombra, com uma voz serena e horripilante.
Um braço negro surge da sombra e estica até o pescoço de Fernando tão rápido que ele não tem reação. Fernando é comprimido contra a parede do quarto e se sente completamente acuado, então segura a mão negra da sombra e tenta afastá-la antes que o mate, quando faz isso leva um susto. Ele vê que suas mãos estão completamente brancas. E algo vem a sua mente, ele não era negro, ele era branco. Ele não era Fernando, era Jonas. Mas ele também é Fernando, e se não for Jonas, quem Fernando é? Imerso em desespero ele olha em volta procurando algo com que se separar da criatura e vê seu corpo desmaiado na cama... Se aquele é seu corpo, quem seria? A confusão é tão grande que Fernando grita desesperado. De repente violentos tapas atingem o rosto de Fernando. Sente-se abrindo os olhos e a primeira coisa que vê é Renato, ao seu lado, com um semblante preocupado.
– Tudo bem, Fê? – Pergunta Renato, enquanto Fernando se senta na cama. – Você estava gritando muito durante o sono...
– O que aconteceu? – Pergunta Fernando, ainda em choque.
– Quando fui tomar banho você apagou na cama, dormiu que nem um anjo... – Respondeu Renato, reparando que ao dizer "anjo", o rosto de Fernando fez uma careta. – Acho que teve um pesadelo dos brabos... Quem é Jonas?
– Heim? – Escutar esse nome pela segunda vez na noite dá um novo susto em Fernando, que desperta de vez. – Jonas?
– É, Jonas? Por acaso está pensando em outro? – Riu Renato, tentando descontrair o clima tenso que a menção do nome causara.
– De forma alguma... Só que desde que acordei no hospital, tenho escutado esse nome... Sei lá.
– Será que algum enfermeiro tinha esse nome e você escutou muitas vezes no coma? Pode ser isso... Você nunca foi de ter pesadelos.
– Nunca?
– Nunca, não se lembra...
A afirmação de Renato soou estranha para Fernando. De algum modo se lembrava de uma senhora nordestina lhe acudindo em diversas noites. Fernando chorava enrolado no lençol e essa senhora dizia-lhe para que fizesse uma prece que os sonhos ruins acabariam. Fernando sentia muita saudade dessa mulher, mas sequer conseguia lembrar seu nome ou de onde a conhecia, apenas sentia muita saudade. Renato, desistindo de tentar compreender seu namorado, levantou-se da cama e foi até a cozinha buscar copos de água para ambos, já Fernando permaneceu sentado na cama imerso em suas preocupações. Minutos depois Renato retornou com os copos d'água e depois de beberem, Fernando voltou a falar:
– Sabe, quando fui no neurologista, ele me disse que eu perderia a memória de determinadas coisas, mas não sabia quais... – Comentou Fernando. – Me lembrei agora de minha infância, e vi uma senhora nordestina cuidando de mim enquanto tinha pesadelos.
– Nordestina? Impossível... – Questionou Renato. – Não lembra? Foi criado por seus pais, e eles podiam ser tudo menos nordestinos. Nem babá você teve.
– Estranho, a memória é tão perfeita que só me falta saber o nome dela...
– Deixa disso, Fernando, vamos dormir.
– Do que me chamou?
– Fernando, ué.
– Mas meu nome é Jonas.
Renato levou um susto ao escutar essa frase. "Fernando está pirado...", pensou, enquanto corria em direção ao telefone. Bem que o médico os advertira que distúrbios desse tipo poderiam acontecer. Pegou o telefone sem fio na sala e voltou para o quarto. Fernando estava agora de pé, na janela, fazendo movimentos com os dedos no vidro. Renato parou o que estava começando a fazer e prestou muita atenção em Fernando, se algo estava errado precisava primeiro entender o que acontecia. Passados alguns segundos na janela, Fernando foi calmamente até a sala, sempre seguido de perto por Renato, pegou uma folha de caderno e uma caneta em uma mesa e sentou-se na mesma. Escreveu algo bem rápido por alguns minutos e voltou para o quarto. Renato, estranhando tudo aquilo, pegou a folha de caderno discretamente e foi até onde Fernando fora. Para surpresa de Renato, Fernando estava agora dormindo tranqüilamente, como se nada tivesse acontecido. "Sonambulismo, só me faltava essa...", pensou Renato, colocando a folha de caderno em cima do criado-mudo da cama e deixando pra ler o que Fernando escrevera no dia seguinte.
A noite terminou rápido, e na manhã seguinte a primeira coisa que Renato fez foi perguntar a Fernando se ele lembrava de alguma coisa da noite anterior. Fernando estranhou a pergunta e disse apenas que se lembrava de ter tido um pesadelo, ter sido acordado por Renato e de depois ter dormido normalmente. Imediatamente Renato sacou a folha escrita e lhe mostrou. Fernando observou a folha estupefato e novamente amaldiçoou esse nome Jonas, algo estava acontecendo com ele e não conseguia entender o que exatamente ocorria. Fernando leu a folha diversas vezes e compreendeu que era um recado, preocupante, para ele, mas ainda não entendia direito o que era Jonas. Fernando e Renato eram pessoas levemente descrentes para assuntos estranhos, como mensagens escritas durante ataques de sonambulismo, só que os últimos dias tinham sido demais para eles. De comum acordo decidiram que teriam que ir a algum lugar que pudesse ajudá-los nesse problema, mesmo que não fosse o hospital ainda.
Um recado simpático...
– Ótimo, temos um desejo, mas pra onde vamos? – Perguntou Fernando.
– Para o hospital? – Respondeu Renato.
– Não, e mesmo que fôssemos, o resultado final do exame só sai semana que vem... E haja dinheiro pra tanto hospital. – Afirmou Fernando.
– Não sei então, podemos ver com o porteiro, ele deve saber onde tem alguma coisa que saiba como nos ajudar... – Disse Renato, sem saber se estava correto.
– Ele não é crente?
– Não... Esqueceu? Tá vendo coisas de novo?
– Coisas?
– Sim, ontem você disse da nordestina, agora nosso porteiro macumbeiro virou crente...
– Nordestina? Como assim? – Nesse momento Fernando se lembrou da senhora, e teve uma revelação. – Lembrei!
– Lembrou do que?
– Essa senhora que você falou... É a mãe desse Jonas!
Renato silenciou-se de vez e saiu da cama. Precisava tomar um banho e relaxar, era o segundo devaneio de Fernando em menos de doze horas, e estava resistindo bravamente para não ligar pro Doutor Eduardo. "Talvez algumas pílulas de prozac resolvam essa crise... Ou uma caixa inteira.", pensava Renato enquanto ligava o chuveiro. Fernando percebeu que seu amado estava nitidamente preocupado com sua saúde mental e pensou em fazer-lhe algum agrado. Levantou-se da cama e ligou o rádio relógio, colocando-o em uma estação de rádio que tocava música clássica. Depois caminhou para o banheiro e sorriu maliciosamente para Renato, que já estava aos poucos se envolvendo com o clima.
– Vamos relaxar um pouco... – Disse Fernando, sentindo um misto de agonia e prazer estranho, mas que preferiu ignorar em prol de Renato.