Terceira Fase da Missão
O Passado Te Condena
Nas horas seguintes Albano e Regina providenciaram todo o aparato necessário para transformar Renato em um perfeito testa-de-ferro da violência Carioca. Ele seria coberto de cocaína, e depois queimado em uma das fornalhas da Maré. Como estava no aeroporto, fariam tudo parecer um mero seqüestro seguido de morte, algo comum quase nunca investigado. Os agentes da Organização infiltrados na polícia civil garantiriam todos os álibis necessários e colocariam a culpa em algum bandido qualquer que morreria na mesma semana sem poder desmentir nada, mesmo que alguém acreditasse. No dia seguinte instruiriam Fernando na arte de dissimular sofrimento, pois pra evitar suposições sobre crime passional, ele iria ao enterro de Renato e prantearia todas as coisas que sempre se gritam em enterros desse tipo.
O tempo passou na Organização e o dia seguiu normalmente, dentro do que podemos considerar “normal” naquele lugar. Albano passou o dia estudando as plantas do local onde seria sua nova missão, que provavelmente levaria Fernando nela para servir de bucha de canhão. A sala de Albano ficava duas portas antes da sala de Regina e ambas eram ligadas por um corredor secreto localizado atrás da mesa de Regina e por uma parede falsa na sala de Albano. A exceção de Albano e Regina nenhuma pessoa viva sabia da localização dessa porta.
O ambiente da sala de Albano era simples. Apenas tinha uma enorme mesa com um laptop sobre ela e ligado via rede sem fio a Intranet da Organização. Também tinha uma foto de seu pai e de sua mãe, abraçados diante de um Tucano. Próximo a entrada falsa, que ficava no fundo da sala, tinha um enorme arquivo morto onde Albano guardava o material de suas missões. Ele preferia assim, pois em caso de problemas com autoridades era necessário apenas apertar um botão desse arquivo e tudo seria incinerado em segundos, o mesmo não dava pra ser feito com computadores, pois desde a invenção da internet sempre existia algum rastro. Ao lado desse arquivo tinha uma série de ganchos onde ele pendurava sempre seus sobretudos ou outros objetos que o pudessem, como armas de grande porte.
Quando já eram quase dez hora da noite, a porta falsa da sala de Albano se abriu e dela saiu Regina. Ela carregava consigo dois copos de cristal e um balde de gelo com uma garrafa de champagne dentro. Regina sorria maliciosamente e vestia apenas uma camisola fina. Ela caminhou até Albano e colocou o balde e a garrafa sobre a mesa. Tateou carinhosamente os ombros torneados de seu fiel soldado. Albano vestia aquele momento apenas uma camisa de linho cinza que Regina desabotoou-a com a boca. Albano não parecia se importar com nada que acontecia, quando de repente começou a falar:
– Ele é muito inexperiente... Não entendo porque enviá-lo para lá! – Falou Albano, sem dar atenção a todo o fogo de Regina.
– Deixe disso, soldado. – Respondeu Regina. – Vamos comemorar a nova aquisição!
– Comemorar? Ele é um ninguém no que diz respeito a Organização, e vai levar tal importância?
– Questionando ordens, Albano?
O soldado imediatamente se silenciou. Regina estava certa, ele não deveria se importar com nada disso. Apenas com as ordens. Se a Organização queria que fosse desse jeito, assim seria. No fundo Albano planejava realmente era matar Fernando na primeira oportunidade e continuaria sozinho a missão. Tirolez odiava parceiros, eles só serviam para duas coisas: atrapalhar e perder tempo. Ainda mais parceiros desse naipe de Fernando, novatos eram a pior coisa existente, disso Albano tinha certeza. Durante as duas horas que se passaram Albano e Regina se divertiram muito, principalmente Regina.
Fernando voltou para casa desolado. Sentia-se profundamente triste com tudo aquilo e, principalmente, com a morte de Renato. No fundo sabia que era a única opção, seria mais útil um deles sobreviver que os dois amanhecerem mortos. Mesmo assim era complicado sentir todo aquele conflito interno. O jovem negro chegou em casa por volta das sete horas da noite e passou pelo saguão da portaria sem falar nem mesmo com o porteiro. Subiu o elevador e ao entrar em seu apartamento foi direto para o chuveiro. No banho deixou toda a sua tristeza tomar conta de seu corpo, e ali desabou em prantos por muito tempo.
Albano despertou ainda de manhã em seu escritório. Não havia um sinal de Regina, apenas um balde de gelo abandonado e duas taças e a garrafa do champagne vazias. Para sorte de Albano, todo o piso de seu escritório era acarpetado de tal forma que parecia estar em um colchão. E toda a higiene da Organização tornava esse sono completamente possível. Albano vestiu-se, colocou seu sobretudo e saiu de sua sala em direção a recepção. Sentia um pouco de dor de cabeça e muito cansaço nas pernas. Regina era insaciável e todo aquele esforço só podia ser compensado com um bom banho. E isso sempre o lembrava dos fatos que culminaram em sua primeira noite com Regina.
...Tirolez tinha acabado de errar um tiro na Praça Saens Pena, e sentia-se péssimo por isso. E ser essa a quarta vez em que fazia isso num curto período de tempo o fazia duvidar de si mesmo. “Talvez deva treinar mais”, pensava dentro do 6onibus 422 a caminho do centro. Não faziam nem dez minutos que Regina lhe ligara pedindo que viesse rápido até a sede da Organização. Em parte Albano sentia-se preocupado com ela, no fundo sentia-se mais revoltado com todo seu azar.
Ele chegou rápido até o prédio da Organização e de cara estranhou um silêncio estranho nas pessoas. Elas pareciam dispersas das coisas, pois pela primeira vez desde que se tornara famoso, as pessoas não o saudavam, por sinal, pareciam estar imersas em um mundo próprio. Albano sentia-se incomodado com tudo aquilo e colocou a mão em sua pistola, como se procurando uma espécie de apoio para a estranha sensação que lhe tomava o peito. Em paralelo, sentia os gritos de Tirolez em sua mente exigindo libertação e muito, mas muito sangue.
Assim que chegou ao décimo-quarto andar, deparou-se com uma cena preocupante. Todos os vidros da sala de espera tinham sido estilhaçados e a porta secreta foi completamente arrombada, sendo violentamente arremessada contra a secretária, que mal teve tempo de desviar e teve seu tronco e cabeça esmigalhados completamente na parede pela força do impacto. Albano despediu-se silenciosamente da mulher, e notou que ela não era a única pessoa morta. Vários corpos se espalhavam pelos corredores, todos eles com mortes no mínimo curiosas. Um dos mortos tinha sido enfiado, sabe-se Deus como, dentro do galão de água do filtro, que agora despejava sangue sem parar.
Sentindo preocupação pelo estado de Regina, Albano deixou Tirolez no controle da situação e com sua pistola automática em mãos correu até a sala de sua superior. Assim que chegou encontrou Regina amordaçada e presa a parede por pedaços retorcidos dos ferros que antes pertenciam a cadeira.Pelo menos os corpos de cinco seguranças estavam despedaçados e espalhados pelo chão, paredes, cortinas e teto. Apenas os dois misteriosos livros e as estátuas não tinham sido atingidos. Tirolez se aproximou cautelosamente de Regina quando escutou um som e instintivamente saltou de volta para a porta por onde entrara.
Como se por mágica a mesa de Regina flutuou e voou diretamente em cima de Albano, que somente conseguiu escapar porque a mesa era grande demais para passar desse jeito. Sem dar chance da poeira abaixar, tirolêz saltou sobre os destroços e rolou pelo chão da sala, agora praticamente vazia, até Regina. Vendo as cortinas da sala balançarem provocantes, como se insinuando ao erro. Albano apontou sua pistola para os trilhos das cortinas e disparou seis tiros certeiros, que fizeram os trilhos desabarem e revelarem finalmente que além de Albano e Regina não havia mais nenhuma pessoa na sala. Com uma relativa sensação de segurança, Albano voltou-se para Regina e retirou sua mordaça, para saber o que acontecia, mas Regina apenas balbuciou olhando pra o vitral de sua sala.
– Pra cima...
Sem tempo de reação, Albano deu novo salto para trás no exato momento em que o vitral da sala de Regina desprendeu-se da janela e voou contra o lugar onde Albano estava. Uma explosão de estilhaços se espalhou pela sala, cortando Albano e Regina em diversas partes do corpo. Então, onde antes ficava o vitral tinha um homem em pé com aparentemente uns cinqüenta anos. Vestia-se com uma calça jeans preta e uma camiseta branca simples, sem marca. Seu rosto seria belo para os padrões normais, exceto por uma enorme cicatriz no olho direito, que por sinal, não abria. O homem tinha cabelos ruivos compridos e um penteado punk, com uma enorme crista de galo.
Tirolez dispensava apresentações e descarregou sua arma contra o homem, que deu alguns saltos pra trás e tombou na sala de Regina, gritando de dor. Tirolez não queria saber, puxou sua outra arma e a descarregou do mesmo jeito, com vários tiros na cabeça do homem que em questão de segundos transformou-se em uma pasta de sangue e ossos. Tirolez assoprou satisfeito o cano de sua arma e caminhou até Regina, confiante, mas então escutou um som completamente insólito.
– Acho que deveria doer, não? – Disse uma voz ecoando pela sala, vinda de um corpo sem cabeça que levantava.
O misterioso homem se levantou como se não tivesse levado nenhum tiro. Sua cabeça e seu sangue retornavam para o mesmo lugar de antes, como se nada tivesse acontecido. Tirolez simplesmente travara, pois era a primeira vez que vira algo desse tipo. Talvez tivesse visto em filmes, mas ao vivo, jamais. Quando a cabeça do homem se refez por completo ele ergueu sua mão direita e alguns vergalhões saíram rápidos do chão e prenderam Albano contra a parede, ao lado de Regina.
– O “fiel cavaleiro”... Ou seria melhor dizer “cachorro”? – Falou o homem, observando Albano profundamente nos olhos.
– ...
– O gato comeu sua língua agora? – Continuou o homem. – Bem, que mal educado eu fui... Nem me apresentei... Meu nome é Niamaran. Regina e eu fomos intimamente apresentados, você deve ser o tal Albano, não?
– O que você deseja?
– Dar ordens. Não é assim que sua Organização trabalha? Bem, eu tive uma reunião amigável com o chefe de Regina e depois de um pouco de persuasão ele me cede o comando da Organização no Brasil.
– Impossível! – Berrou Regina, finalmente compreendendo o que o homem viera fazer ali. – Jamais daríamos esse tipo de status a alguém como você...
– Será? Veja bem, eu obedeço a nenhuma regra que senão a minha regra e a de meu Senhor, logo, gostaria de mostrar a vocês uma coisa.
O homem então ergueu suas mãos e o telão de reuniões embutido na sala desceu. Niamaran sacou do bolso de Regina o controle remoto do telão e o ligou. Com um trocar rápido de canal ele sintonizou em uma freqüência estranha, com apenas chuviscos. Segundos depois uma imagem começou a aparecer de uma pessoa oculta por sombras em algo que lembrava muito um filme de ficção cientifica. A pessoa falava em uma língua estranha com Niamaran, que entendia perfeitamente e respondia. Albano percebeu então que Regina compreendia essa estranha língua. Em segundos Regina mudou de uma aparente revolta para uma resignação completa. Ela parecia aceitar as palavras de Niamaran.
– Ordens são ordens. – Disse Regina, respirando fundo. – Niamaran é o novo chefe da Organização no Brasil.
– Aquele homem então era...?
– Sim, Lúcifer, encarnado e dando ordens em aramaico, você ainda vai aprender alguma coisa dessa língua. – Interrompeu Niamaran. – Ele me colocou no comando no lugar de Abados, ou seja, Regina. Agora os dois são meus subordinados... Minha primeira ordem é para cessarem os atentados contra aqueles garotos.
– Por que?- Questionou Regina. – Um deles é o Devorador de Mundos, para nossa Organização chegar a seu objetivo temos que fazê-lo livre!
– Errado! – Berrou Niamaran. – Ele não é a Besta-Fera, é pior. Não confundam vespeiro com colméia. A fera que procuram é outra, ele não está nos livros. Se o despertarem como as borboletas quase fizeram por acidente será pior aos planos de vocês e, principalmente, aos meus... E isso vale para todos os que o cercam!
– Por quê? – Indagou Regina, querendo entender.
– Enquanto existirem ele tem algo a perder, logo, não se tornará perigoso a ninguém exceto ele mesmo... E ele está se destruindo, tenho agentes próprios fazendo isso, e em breve todos estarão mortos para nossos padrões e estarão completamente inúteis quando a hora chegar. Um tiro sem balas.
– E de resto? O que pretende então, agora que estamos sob suas ordens?
– Dar início ao plano...
Niamaran desapareceu e assim como ele tudo a sua volta. De repente Albano estava novamente na porta do prédio da Organização, ileso e sem nenhuma marca no corpo. Sua cabeça apenas doía muito. Pelo olhar as pessoas nada parecia ter acontecido, nada. Provavelmente tudo fora uma ilusão, ou algo causado pelo seu desapontamento consigo mesmo. Observou seu relógio e constatou que realmente não tinha se passado nem um minuto desde que conferira o relógio antes de caminhar até a portaria. Mas algo em Tirolez lhe fazia pensar duas vezes, pois de qualquer modo Regina tinha lhe ligado e precisava falar com ela. Assim que entrou na sala de Regina ela estava sentada sobre sua mesa chorando. Mas não era de tristeza, era de ódio. Ela amaldiçoava um nome que a poucos segundos Albano escutara em sua alucinação.
– Não foi um sonho. – Disse Regina, enxugando as lágrimas do rosto.
– Então temos um novo chefe? Mas e o que aconteceu?
– Ele aconteceu, ele quis dar uma prova de poder e me humilhou... Só uma vez encontrei alguém assim.
– Lúcifer?
– Não, Cristo. Ele tinha o mesmo poder de Cristo na Terra. Não era como nós, era muito mais... Ainda bem que você não se preocupa em entender essas coisas, apenas em acatar ordens.
– Às vezes não questionar é uma benção.
– Há, há, há, há, há! – Riu Regina, sentindo ironia na palavra “Benção”. – Você é o único que me entende...
Regina levantou-se e abraçou Albano. “As ordens de matar aqueles garotos está suspensa... E você não errou os tiros, Niamaran o fez errar.”, falou Regina nos ouvidos de Albano que sentiu-se em parte aliviado por sua falha não ser culpa exclusivamente dele. Em seguida ela olhou fundo nos olhos e Albano e Albano olhou fundo nos olhos de Regina. Seus lábios se aproximaram e eles se beijaram profundamente. Não havia amor naquele beijo, apenas um desejo cruel que um sentia pelo outro. Em seguida Regina tornou a chegar perto da orelha de Albano e disse:
– Mostre-me a maravilha que é o amor carnal...
...Envolto em lembranças, e sem dar nenhuma saudação as pessoas da Organização que chegavam, Albano pegou o elevador até a garagem e foi até seu carro, voltando para sua casa. Para sua sorte aquele seria um dia vazio e poderia resolver tudo durante o anoitecer, inclusive Fernando. Passaria então o restante do dia dormindo em sua cama. Por telefone ordenou a secretária que desse o aviso a Fernando e encerrou mais um dia tedioso de trabalho.
Enquanto isso, durante a noite, em um desfiladeiro de sangue uma figura conhecida gritava tão alto que seus berros eram escutados a milhas de distância. Ou ao menos deveriam, se houvesse viva alma naquela desolação.
– ... Por que eu precisei fazer isso? – Berrava Jonas para uma sombra imóvel e que não lhe dirigia o olhar. – Pensei que precisaria apenas manifestar aquela maldita energia, mas não! Precisei espalhar os miolos daquele cara pela sala!
– Acalme-se, você não está raciocinando... Deixe seu corpo dormindo na Terra. – Respondeu a Sombra, com um tom de voz menos calmo que o tradicional. – Não é um pedido, é uma ordem!
– Fodam-se suas ordens! – Respondeu Jonas.
A Sombra mudou de feição, ou melhor, adquiriu uma. Por mais paciente que fosse, por mais necessário que aquele moleque pudesse ser, sua arrogância estava dando nos nervos. Ela simplesmente expandiu sua aura enegrecida em torno de Jonas e o envolveu completamente. A jovem alma não teve muito tempo de reação, apenas começou a se debater enquanto seu corpo espiritual lentamente parecia ser tragado para dentro daquela criatura sombria, com a sensação de ser digerido lenta e dolorosamente. Jonas berrou e implorou por perdão, mas a sombra continuou a cobrir sua alma.
– Entenda uma coisa, pela última vez, eu não da sua laia. – Falou a Sombra, voando vários metros e depois deixando o corpo imóvel de Jonas despencar violentamente contra o chão rochoso do desfiladeiro. – Nunca, mas nunca mais me dirija desse jeito a palavra.
– Desculpe-me... – Respondeu Jonas, segundos depois, se levantando e limpando-se da queda. – É horrível conviver com os sentimentos e sensações da carne.
– Por essas e outras que todos os espíritos ao nascer têm suas mentes apagadas de outras encarnações... Quando acordar quero que se lembre que hoje será apresentado a sua missão. Será difícil e aquele homem que conheceu quer que você morra, portanto, atenção redobrada.
– Quando eu serei fundamental em seu plano?
– Você saberá exatamente quando... Agora volte ao mundo dos vivos, pois seu telefone toca.
Fernando acordou de súbito. De fato, o telefone tocava, era seu celular. Reconheceu de imediato o telefone da Organização na bina do aparelho. Respirou fundo e atendeu. Foram instruções simples, avisando-lhe que seu encontro com albano fora transferido pro início da noite, naquele mesmo prédio. Em seguida a secretária esse despediu, cobrando um encontro, e desligou. Fernando respirou novamente, dessa vez aliviado em não precisar correr pra encontrar com aquele “branquelo do Albano”. Novamente observou o visor do celular e deu-se conta que ainda eram apenas oito horas da manhã. Provavelmente a qualquer momento ligariam perguntando a respeito de Renato ou algum jornal falaria dele. “Quem dera esse momento não chegue nunca...”, pensava Fernando enquanto ia até sua cozinha e começava a preparar um pão com manteiga para comer.
Tomado o café da manhã, Fernando tomou outro banho, dessa vez pra atenuar as marcas nos olhos, pois chorara quase a noite toda até dormir. Mas agora, naquele momento, sentia-se tolo por ter desperdiçado lágrimas a alguém que de fato nunca amara, nunca dividira uma vida. “Agora estou habitando apenas um naco de carne viva, eu sou Jo... SanoDji”, disse Fernando, fazendo questão de gravar o quanto antes o nome pelo qual era chamado pelos membros, e que deveria ser sua nova alcunha. Jonas era um nome arriscado demais para ele.
De repente Fernando lembrou dos eventos do dia anterior e sentiu-se intrigado por algo. Sem hesitar foi correndo até seu quarto e arrumou os espelhos do armário de forma tal que pudesse ver suas costas. Queria ver o que de tão interessante que Regina vira. Ansioso, observou seu reflexo no espelho e tomou um enorme susto. Exatamente na base dos ossos externos, haviam duas protuberâncias estranhas, semelhantes a cicatrizes feitas a ferro e fogo. Pela aparência delas, eram novas, provavelmente surgiram quando estivera no hospital, e quando Fernando as tocou sentiu dor, muita dor. E teve a nítida impressão de escutar uma gargalhada ecoar por seu apartamento.
– Não precisa sair de casa, estou indo para aí... – Falou Albano, desligando o telefone antes que Fernando pudesse perguntar algo.
Albano tocou a campainha da casa de Fernando cinco minutos depois. Fernando correu e abriu a porta, procurando ser o mais delicado possível com aquele homem que tanto odiava. O visitante vestia seu tradicional sobretudo e debaixo dele um conjunto social também todo preto. Sua barba estava mal-feita, parecendo que tinha acabado de acordar, e seus olhos exibiam olheiras tão profundas que seus óculos escuros eram incapazes de esconder. Mas no que Fernando mais reparou foi no cheiro de Kenzo, forte e inconfundível, que chegava até mesmo a provocar-lhe estranhos pensamentos e sensações (que antes de Jonas nem eram tão estranhos).
O assassino observava Fernando, deliciando-se com o incômodo causado, e demonstrando conhecer a casa dirigiu-se direto para o sofá e ali se acomodou. Educadamente Fernando ofereceu café a Albano, porém este negou a oferta e pediu um cinzeiro. Sem cinzeiros na casa, pois ninguém fumava, Fernando improvisou e pegou uma xícara de café vazia a Albano, entregando-a como substituto ao cinzeiro.
– Desculpe a falta de cinzeiro. – Desculpou-se Fernando, puxando uma cadeira de madeira e sentando-se diante de Albano.
– Sem problemas, vamos direto ao assunto que sei que você me odeia e me quer fora de sua casa o quanto antes. – Respondeu Albano, acendendo o cigarro e tirando do bolso de seu sobretudo um tubo de arquitetura pequeno.
– O que é isso? – Perguntou Fernando, tentando sem sucesso pegar o tubo das mãos de Albano.
– São plantas, mas isso não tem nada a ver com você... Quero saber se você sabe dirigir.
– Se sei? Claro que sei!
– Ótimo, amanhã partimos para Angra dos Reis, passe no escritório da Organização e pegue seu material as dez horas da manhã em ponto. Lá te darei novas instruções.
– Posso saber o que faremos?
– Até segunda ordem somos os novos agentes de segurança da esposa do vereador local recém assassinado por um monstro no Mac Donald’s... – Nesse momento Albano repara um certo olhar perdido em Fernando. – Você tem lido jornais?
– Não ultimamente... Ando ocupado matando namorados...
– Bem, um vereador de Angra dos Reis morreu assassinado, junto com toda a equipe, e faremos o serviço de segurança da esposa dele, única sobrevivente, e que está sendo transferida amanhã do hospital Barra D’or até Angra. Vamos escoltá-la com segurança até Angra e de lá receberemos novas ordens.
– Só isso?
– Só... Agora descanse e durma... A viagem será longa e as instruções também. Sabe dar tiro?
– Não...
– Então vai aprender amanhã.
Sem dizer mais uma palavra, Albano apaga a guimba do cigarro na xícara de café, se levanta e segue até a porta do apartamento. Fernando sequer se move, preocupado com o tipo de instrução que receberá no dia seguinte. Albano sorri educadamente para Fernando, abre a porta e se vai. Está atrasado, tem que passar na sede da Organização para providenciar o material do novato e, principalmente, para passar uma parte da noite no estande de tiros. Há dois dias que não sente o gosto da pólvora em seus dedos, e ele precisa sanar seu vício de algum jeito. Se Tirolez der sorte, encontrará no caminho algum sem teto solitário para acrescentar emoção a seu treino. Alvos reais são melhores que aqueles pedaços de cartolina preta.
Fernando continuou calado na cadeira. Agora não se sentia tão mal na companhia de Albano, até parecia admirar sua frieza e dedicação, mas algo não encaixava nisso tudo. Albano parecia natural demais na sua presença, parecia até conhecê-lo, se é que isso era possível. E porque Albano sorrira ao sair? De repente tocou-se de estar sem camisa o tempo todo em que Albano estivera em sua casa. “E se ele viu a tatuagem? Pior! Se ele SOUBER o que significa?”, pensou desesperado durante as horas que levou para finalmente dormir...