Revelações de Jonas, Conspiração: Quarta Etapa do Plano


Revelações de Jonas: Conspiração
Quarta Etapa do Plano
Nova vida

Fernando acorda como se estivesse em uma espécie de transe estranho. Olha para os lados e se vê entrevado numa cama de hospital. Não lembra exatamente como veio parar aqui e nem o que o trouxera para cá, mas tem certeza que quer se levantar. Sem muita precaução arranca com violência os tubos que até momentos atrás faziam a função que seus pulmões faziam antes, o que lhe dá profunda dor, pois parecia não fazer isso há muito tempo, simplesmente respirar. A seguir arranca de seu braço direito a agulha de onde vinha o soro e os remédios que lhe mantinham alimentado. Um esguicho de sangue saiu de sangue em resposta a violência de seu ato, sujando toda a maca e parte dos equipamentos. "Preciso saber que dia é hoje... Preciso saber...", pensa enquanto caminha em direção a um espelho.

Ele leva um susto. Ao olhar no espelho vê diante dele um jovem de cor branca com aproximadamente dezessete anos, de cabelos emaranhados e desnudo. A imagem dura até Fernando coçar os olhos e se ver novamente como é. Fernando é um rapaz negro no auge de seus vinte e cinco anos, físico atlético e medindo aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura. Não possui cabelos, sempre os raspando pelo menos uma vez por semana, para manter sua cabeça sempre o mais lustrada possível. Recuperado da visão estranha que vira no espelho, Fernando sai de seu quarto no exato momento em que os enfermeiros do andar chegam para ver o que acontecera com o paciente, cujos sinais de vida subitamente desapareceram.

– Milagre! – Berra um dos enfermeiros ao ver Fernando de pé diante deles, saindo da sala.

– Heim? – Indaga Fernando. – Não estou entendendo nada...



Os enfermeiros ficam estáticos alguns segundos, na maioria do tempo se benzendo, e então, com a eficácia tradicional de quem trabalha naquele hospital, tratam do ferimento que Fernando fizera em si mesmo ao arrancar a agulha intravenosa. Um deles, uma senhora negra de aparentemente uns cinqüenta anos, corre até um terminal telefônico instalado no corredor e chama pelo médico de Fernando. "É um milagre doutor Eduardo... Ele está aqui no corredor, andando...", diz a mulher empolgada para alguém no fone, sendo escutada por Fernando. Depois disso ele não escuta mais nada, pois é guiado pelos demais enfermeiros de volta a sua cama de hospital. Com o cuidado tradicional eles limpam Fernando e colocam curativos nele, verificam também se quando ele retirou o respirador, se nada ficou dentro dele. Quando terminam todo o tratamento, é o tempo exato que leva para o Dr. Eduardo chegar correndo na sala.

– Oh, meu deus! – É a única coisa que Dr. Eduardo fala, ao ver Fernando sentado na maca.

– Boa... – Diz Fernando, dando uma pausa e olhando a janela, constatando que é o início da manhã. – Ops, bom dia doutor...

– Bom dia, Fernando. – Responde Dr. Eduardo, ainda chocado. – Como se sente?

– Confuso, não sei porque estou aqui e nem que dia é hoje...

– Hoje é dia 12 de maio de 2006, Fernando, e você está aqui por causa de um camarão que consumiu há pelo menos vinte e quatro horas atrás.



Imediatamente, como se pegasse no tranco, Fernando se lembra desse evento. Ele está na praia de Copacabana com amigos quando um deles lhe oferece um pedaço de seu salgado. Faminto, e como nunca nega comida mesmo sabendo dos males que comer na rua podem lhe causar, ele abocanha um bom pedaço da comida e engole sem mastigar muito. Em seguida bebe um bom gole de refrigerante e volta a conversar. "Muito bom... É o que?", pergunta ao amigo, gostando do sabor do salgado. "Risole de camarão, Fernando, gostou?", responde o amigo para seu desespero. Fernando é absolutamente alérgico a camarão, mesmo tocar seus dedos nele cru lhe dá ulcerações nas partes que tocaram o animal, um caso raro e perigoso de alergia. Fernando coloca o dedo na garganta tentando provocar o vômito enquanto os presentes que conhecem seu problema correm em seu auxílio. Sente uma dor horrível no estômago que passa rapidamente para o peito. Fecha os olhos e quando abre novamente vê o Dr. Eduardo falando com ele algo que não compreende, então simplesmente apaga.

– Foi uma situação complicada. – Diz o Dr. Eduardo. – Você chegou aqui com um choque anafilático dos mais complicados que já vi em minha carreira médica... E na dos demais especialistas daqui. Tivemos que reanimá-lo mais de quinze vezes durante o procedimento de retirada do alimento... Seu cérebro passou praticamente mais de quinze minutos sem oxigênio, é um milagre até que consiga falar algo que se compreenda.

– Nossa... – Balbuciou Fernando, olhando para uma imagem sacra no topo de seu quarto.

– Exato, e se tiver algum tipo de fé, aconselho-o a agradecer muito porque você teve muita sorte hoje.



Fernando comemorou por dentro, estava vivo e isso era maravilhoso. Uma morte ridícula dessas seria algo vergonhoso para ele, preferia morrer atropelado ou num assalto, mas por causa de um camarão... Dr. Eduardo aconselhou ele a passar mais dois dias no hospital para efetuarem alguns testes nele, mas o que Fernando mais queria era retornar para casa. Nesse momento teve um lapso de memória, não sabia porque queria voltar tanto para casa, mas queria voltar. Preocupado com isso, interrompeu Dr. Eduardo nos exames de praxe (como escutar o coração e a respiração) e começou a falar:

– Doutor, eu estou com a impressão de estar esquecendo algo... – Falou Fernando.

– Não se preocupe, esse problema é normal quando acontecem as coisas que te descrevi. – Respondeu o Dr. Eduardo – Amanhã o neurologista chefe do hospital vai examiná-lo antes de saber se levará alta ou não, até lá, descanse e relaxe, com o passar dos dias tudo vai voltar ao normal.



Algo no interior de Fernando gritava que as coisas jamais seriam normais para ele, mas ele preferiu ignorar essas impressões e relaxar um pouco. Com o término dos exames preliminares, Dr. Eduardo se despediu e saiu da sala, pedindo apenas a Fernando que mantivesse preso nele os eletrodos do monitor cardíaco, pois não queriam maiores problemas. Seguindo as orientações do médico, Fernando deixou as enfermeiras prenderem novamente o equipamento em seu peito e apesar do desconforto causado pelos fios, acabou cedendo ao tédio e adormecendo meia hora depois, pra querer acordar. Mal Fernando adormeceu começou a escutar vozes em volta dele, chamando por um nome que lhe era familiar, mas ao mesmo tempo sentia-se compelido a esquecê-lo. "Jonas! Jonas!", diziam diversas vozes, em torno de Fernando.

Incomodado com as vozes e uma sensação incômoda de estar sendo observado, Fernando abriu os olhos. Ele se viu cercado de muitas pessoas, com fisionomias as mais diversas, que olhavam ele com profundo pesar. Olhou para si mesmo e via que sua pele não era negra, mas branca. "Você não tem idéia do que fez Jonas.", disse uma senhora de aparentemente sessenta anos. "Seu egoísmo é terrível. Como pôde?", perguntou um senhor negro, com pelo menos trinta anos. "Não acreditamos que fosse capaz disso.", falou uma criança de no máximo doze anos. Fernando fechou os olhos e gritou que parassem de falar seu nome, que parassem de culpá-lo por algo que não entendia. Então sentiu mãos o sacudindo e abriu os olhos, era uma enfermeira.

– O senhor está bem? – Disse uma enfermeira, com olhar preocupado.

– Onde eles estão? – Perguntou Fernando, ainda grogue.

– Eles quem? – Respondeu a enfermeira. – Só estamos nós dois aqui... Deve ter sido um pesadelo, senhor.

– Pesadelo...?

– É, o senhor dormiu algumas horas atrás e não faz cinco minutos que começou a gritar e se debater na cama, no início pensei que fosse algo mais sério, mas pelo jeito foi só um sonho ruim.

– Faz quanto tempo que dormi?

– Seis horas pelo menos, não era meu turno, mas me avisaram do milagre que aconteceu contigo... Graças a deus o senhor está bem.

– Obrigado.



Fernando sentiu uma vontade absurda de ir no banheiro e perguntou onde ficava o mictório, a enfermeira apontou rindo para uma porta bem em frente a maca. "Ah, obrigado de novo...", respondeu Fernando sem graça e caminhou para o banheiro. Depois de aliviar sua vontade, perguntou a enfermeira se ela tinha alguma idéia de quando seria liberado, e ela deu com os ombros, sem saber. Disse apenas que o Dr. Felix, neurologista, tinha avisado que o exame de ressonância magnética seria feito as quinze horas, e que já eram quase quatorze horas. A enfermeira perguntou a Fernando se ele não havia sentido falta de algo, e Fernando estranhou a pergunta, querendo entender o motivo de sua dúvida.

Novamente a enfermeira deu com os ombros e avisou que mesmo que fosse embora, provavelmente só poderia fazer acompanhado, e isso aconteceria as dezoito horas, durante o horário de visitas. Ao escutar a palavra "visitas", Fernando ficou empolgado e ansioso por esse horário, mas não conseguia lembrar porque ficava ansioso, sequer desconfiar do motivo. Parecia um bloqueio na sua cabeça. Desistiu de entender o que se passava consigo e decidiu aguardar a hora do exame. Enquanto o tempo passava, a enfermeira deixou a refeição de Fernando e voltou para a sala das enfermeiras. E Fernando assistiu televisão pra passar o tempo, sentia-se como se não fizesse isso há meses.

Finalmente chegou a hora do exame, Fernando estava ansioso por ele pois isso definiria se ele voltaria para casa naquele dia ou se demoraria ainda mais naquele hospital. O responsável por isso seria o neurocirurgião Felix Almeida, o chefe dos neurocirurgiões do hospital Copa D´or, e com certeza, da rede D´or. Fernando foi deitado em outra maca e levado de elevador até o andar onde ficava a sala de ressonância. Ao entrar na sala sentiu o cheiro de limpeza do local e um frio absurdo gelou-lhe da cabeça aos pés, e estar nu vestindo apenas a fina roupa de hospital não ajudava nada. "O equipamento é caro, não podemos deixá-lo pifar por causa do calor do Rio, daí a necessidade do frio excessivo... Mas você vai sair daqui rápido.", explicou o enfermeiro que empurrava a maca.


Máquina de Ressonância Magnética.


Fernando se levantou e deitou sob a superfície gelada do aparelho de ressonância. Seria um exame rápido, assim esperava, senão provavelmente teriam que tirá-lo com um quebrador de gelo. O Doutor Felix chegou segundos depois, apresentando-se educadamente e com um ar de ceticismo que deixava Fernando assombrado.

– Bom dia, senhor Fernando, meu nome é Dr. Félix, mas se quiser me chamar de Almeida não tem problema. – Disse o Dr. – Como pode ver, estamos diante de um aparelho dos mais modernos do mundo, e apesar de você estar nitidamente saudável para seus próprios padrões e para os dos demais funcionários do hospital, não sou tão crente quanto eles em milagres, apenas acredito no deus ciência. Se pode ver, essa mesa possui um sistema de rolamento igual a aqueles de caixas de supermercado que vão levá-lo até o interior do aparelho. – Enquanto falava, apontou para o buraco branco do aparelho de ressonância. – Lá dentro será bombardeado por íons e outras coisas mais que irão mapear toda sua cabeça, de forma tal a procurarmos eventuais problemas que podem a longo prazo transformar seu dito milagre em tragédia.

– Quanto tempo isso leva? – Perguntou Fernando.

– De cinco a dez minutos. Devo lembrá-lo que tem que tentar ficar o mais calmo possível, não é comprovado que isso interfira no resultado, mas como a atividade intensa altera o fluxo de sangue no músculo, e o cérebro é um músculo, quanto menos pensar melhor para o exame. Consegue passar algum tempo sem pensar? Se não conseguir, tente prestar atenção na música, que coloco propositalmente nos exames para acalmar os pacientes. E tente não se mexer, mas com o frio intenso sei que vai tremer. Ah sim, feche os olhos, a luz é forte. Boa sorte, senhor Fernando.



O Dr. Felix saiu da área do aparelho e foi para a sala de operações, onde um outro funcionário aguarda para dar início ao exame. Com um apertar de botão, o mecanismo de rolamento da máquina se ativou e Fernando entrou vagarosamente na máquina, ao mesmo tempo em que luz brancas muito fortes se acendiam. "O resultado do exame preliminar será imediato... Mas ainda assim analisaremos o material por mais alguns dias, logo, mesmo que vá embora hoje, provavelmente voltará aqui semana que vem para o resultado preciso.", avisou Dr. Felix a Fernando, falando alto de forma que pôde ser ouvido por Fernando de dentro do aparelho. Em seguida Fernando começou a deixar-se levar pela música e pelo frio, relaxando completamente.

Vinte minutos depois Fernando estava novamente na cama do hospital. Tudo estava aparentemente bem, seu cérebro não tinha nenhum coágulo ou problema similar. Era o que Fernando precisava saber para ir embora do hospital. A única resposta que não lhe agradou foi quando perguntou a respeito dos lapsos de memória e o Dr. Feliz disse que provavelmente era por causa da falta de oxigenação do cérebro quando teve as paradas cardíacas, e que eventualmente algumas memórias voltariam do mesmo modo que outras jamais viriam, pois estavam em áreas mortas do cérebro. O dia passou novamente diante da televisão até que o horário de visitas chegou e Fernando foi tomado por uma empolgação tão grande que chegou a estranhar. Nesse momento um rapaz de boa aparência, com no máximo vinte e dois anos de idade, de corpo malhado e bronzeado de praia entrou no quarto de Fernando trazendo flores.

– Fernando... – Disse o jovem, com lágrimas nos olhos.

– Renato... – Respondeu Fernando, de instinto e para seu estranho espanto ao lembrar desse nome.



E os dois jovens rapazes se beijaram apaixonados...

Revelações de Jonas, Conspiração: Terceira Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Terceira Etapa do Plano
Partida



– Sombra Negra, precisamos conversar... – Disse Taniel, ao ver a Sombra chegar acompanhada de Jonas.

– Conversaremos então... – Falou a Sombra. – Com ou sem privacidade? – Perguntou na linguagem que Jonas não compreendia.

– Com privacidade... – Respondeu Taniel, na mesma língua.

– O que o fez descer dos céus para esse pequeno inferno, Taniel? – Afirmou a sombra, em seguida mudando para a língua comum. – Por acaso sente falta de seus semelhantes?

Jonas estranhou a mudança súbita de idioma da Sombra. Obviamente de propósito ela dera a ela uma informação que o levou a pensar que a Sombra assim como Taniel seria um anjo, ou pelo menos era um anjo caído do mesmo patamar de Mizovitan. As duas entidades continuaram a conversar por mais alguns minutos, sempre naquela estranha linguagem que Jonas sequer compreendia.

– Você realmente vai colocar em prática essa tática suicida? – Perguntou Taniel.

– Eu não irei me arriscar de modo algum, está vendo a jovem alma a seu lado? – Respondeu a Sombra. – Ela fará tudo sozinha...

– Mas ele é um espírito missionário... Não pertence as castas guerreiras.

– Não pertencia, quer dizer... Eu, Daik e Mizovitan o doutrinamos nos últimos meses de forma a prepará-lo para isso... E tenho orgulho de dizer que hoje ele sobreviveu a uma matilha de Vermes do Vazio e ao teste de Dragon.

– Você fez o quê? Deixou ele enfrentar Dragon... – Taniel silenciou por um tempo, e fitou Jonas detalhadamente, realmente sentia algo de diferente no jovem, diferente de quando o vira na única vez, ele estava forte. Não tinha nenhuma sabedoria que se ganhava com a experiência, mas era forte. Apenas forte.

– E então, gostou do que viu? – Interrompeu a Sombra.

– Ele é apenas força bruta, não vejo porque vocês o treinaram. É errado isso, você sabe.

– Errado é não tentar. Errado é se julgar acima de qualquer julgamento. Errado é subjugar os menos evoluídos com palavras de ordem sem olhar para o próprio umbigo. O que demos a essa alma foi um propósito, uma forma de resistir ao que virá... Ou de impedir.

– Você sabe que isso não vai dar certo...

– Não tenho nada a perder com isso.



A resposta da Sombra foi o suficiente para Taniel, que se calou e caminhou em direção de Jonas. A Sombra escondeu seu sorriso e observou atentamente seus passos. "Ao menos quero saber se é isso que ele quer.", afirmou Taniel, em linguagem comum. Taniel se aproximou de Jonas e viu que Daik-Haniah e Mizovitan estavam chegando. Talvez tivesse pouco tempo para conversar com o jovem, ou não, mas só tinha uma forma de saber.

– Jonas, é esse seu nome, não? – Perguntou Taniel. – Você está aqui realmente porque quer?

– Não exatamente, era isso ou ser destruído por Mizovitan. – Respondeu Jonas.

– Ah, então você está aqui por livre e espontânea pressão? Bonito isso... – Taniel imediatamente se volta para Mizovitan. – Porque fez isso, Mitzrael?

– Livre arbítrio. – Respondeu o anjo caído. – Eu escolhi matá-lo se não aceitasse trabalhar conosco...

– Sabe que não deixaria isso acontecer. – Avisou Taniel. – Independentemente de nossa amizade.

– Se chegasse a tempo, quem sabe... – Indagou Mizovitan, linguagem desconhecida.

– Com licença, uma pergunta, Taniel. – Interrompeu Jonas.

– Faça.

– Você é um anjo?

– O que você acha? Já viu anjos com asas tão lindas quanto essas?

– Isso... Suas asas são parecidas com as de Daik-Haniah, só agora pude perceber... Não é parecida com a de nenhum dos anjos que vi.

– Sim e não... O que importa saber é que todos nós aqui, a sua exceção e a de Daik-Haniah, somos de uma linhagem idêntica...

– Daik-Haniah?

– Bem, se não te explicaram até agora, não serei eu a explicar... E nem é necessário isso. Você deve saber o necessário somente, pois vejo pelos olhares a minha volta que falei demais.

– Com certeza falou demais. – Disse Daik-Haniah, novamente tornando a falar no idioma desconhecido. – Agora vamos conversar melhor...



Daik-Haniah, Taniel e Mizovitan saíram do ambiente, deixando Jonas e a Sombra sozinhos. Jonas pensou em perguntar a Sombra como uma criatura proveniente dos céus, mesmo não sendo um anjo, aparecia ali e conseguia lidar tão bem com tudo aquilo. A Sombra se antecipou e disse que a linhagem a que eles pertenciam dava-lhes tal capacidade. Eram todos eles capazes de sobreviver em locais onde espíritos comuns sucumbiriam a tentação, e sem aparentarem isso. Disse também que Daik-Haniah era de uma linhagem a parte, com ligação a algo semelhante ao Pai Celestial, mas sem entrar em detalhes. Jonas perguntou se haveria outro Deus, e a Sombra negou, dizendo que Deus apenas haveria um. E que todos eles se conheciam a mais tempo que o anjo mais antigo do céu. Essas explicações bastaram para satisfazer Jonas, que começou a se sentir confuso novamente com o excesso de informações e foi se sentar para descansar daquele dia agitado.

Os dias passaram. Já era madrugada do dia 12 de maio de 2006, os treinamentos seguiam sem interrupção, até que Jonas foi chamado pela Sombra para conversar. Ela aguardava Jonas na mesma caverna onde o jovem encontrara Daik-Haniah pela primeira vez. Jonas conseguia perceber que não estavam apenas eles dois no local, alguém mais os observava. Apesar de perguntar várias vezes o que a Sombra desejava, não conseguiu muito sucesso em sua resposta, a Sombra parecia estar em transe, distante dali. De repente ela retornou e praguejou muito, dizendo "Eles são idiotas... idiotas!" e outras frases de calão mais baixo. Passados alguns segundos, ela percebe as presenças na caverna e volta a sua frieza tradicional.

– Desculpem a triste cena, estava chocado com tamanha tolice... – Disse a Sombra, enquanto Jonas se aproximava, e da escuridão da caverna saía Dragon. – Temos que conversar rápido... Principalmente contigo, Jonas... Ou melhor, SanoDji.

– SanoDji? Que diabos é isso? – Perguntou Jonas.

– Seu nome de agora em diante... Pode continuar utilizando Jonas, se assim o quiser, mas eu e Dragon passaremos a chamá-lo de SanoDji, um nome mais de acordo com sua missão.

– Missão? – Espantou-se Jonas. – Mas eu ainda estou treinando...

– Estava. – Interrompeu, Dragon. – Descobrimos uma certa aceleração nos planos de meus pretensos aliados, logo, significa que seu treinamento acaba hoje.

– Espera... Mas eu não estou preparado! – Protestou Jonas.

– Pena, quando assinou seu contrato comigo, ele não incluía covardia... – Disse a Sombra. – Pensei realmente que o treinamento tivesse tirado isso de você. O que tem de curioso tem de covarde, mas não tenho como treinar alguém melhor, logo, ou vai ou racha.

– E os anjos, o que disseram a respeito disso? – Perguntou Dragon. – Eu sei que você foi avisá-los de parte de seus planos... Para dar validade a eles dentro das regras.

– Os idiotas... Ah que raiva... Eles disseram que preferiam não escutar minhas palavras, deram a autorização às cegas. Não querem saber do que vai acontecer porque se for a vontade de Deus, é inevitável... Às vezes a credulidade deles me irrita, principalmente quando armam as coisas debaixo do nariz deles e são incapazes de ouvir.

– E o Pai, o que acha disso?

– Ele disse que devo fazer como quiser, ele não vai interferir, pois sabe de minhas intenções e dos procedimentos... – Diz a Sombra, mudando rapidamente para a linguagem desconhecida. – Ele apenas se preocupa com SanoDji, considera tolice sacrificar uma de suas crias mesmo que em prol da Terra No fundo, acredito que Ele apenas esteja esperando o Dia do Juízo.

– Preocupado com o garoto... Era de se esperar Dele... Mas até onde sei não existem riscos para o jovem, pelo menos não imediatos. – Falou Dragon, na mesma língua. – O treinamento de vocês deve bastar... Ele ficou forte.

– Sim, mas Taniel descobriu uma possibilidade de falha que nós esquecemos de considerar...

– Que possibilidade?

– Experiência, SanoDji tem toda a teoria, não tem a prática, apenas força sem a sutileza... E ele está certo, sem prática as coisas podem dar errado.

– Então teremos que contar com a sorte. – Afirmou Dragon, voltando a falar na linguagem normal.

– Sorte? Como assim sorte? – Perguntou Jonas, tendo escutado o novo nome dele vezes demais na conversa misteriosa para saber que falavam dele.

– Você vai voltar para a Terra, Jonas. – Falou a Sombra. – Ainda hoje.

– Hoje? – Espantou-se Jonas. – Como assim?

– É, hoje levarei você de volta para o mundo dos vivos... De onde somente poderá voltar com a missão cumprida. Depois de estabelecido na Terra, o que deve levar pelo menos duas semanas, entrarei em contato com você para explicar melhor sua missão.

– Em duas semanas nem terei começado a engatinhar...

– De onde tirou a idéia que nascerá? Você voltará no corpo de uma Terra de Ninguém, já até escolhi o corpo que usará, para sua sorte ele está internado num hospital particular do Rio de Janeiro e selecionei alguém com condições financeiras das melhores, em duas semanas conseguirá se adaptar aos modos dele e suas lembranças se misturarão as dele, daí então receberá meu primeiro contato. Você saberá quando eu me manifestar.

– Poderei vir aqui, como Daik-Haniah e Mizovitan fazem?

– Não, não poderá fazer viagem astral até esse lugar, a não ser que eu o busque... O segredo é fundamental nessa etapa.

– E quando partirei?

– Agora...



A Sombra mais uma vez mostrou sua mão feminina e segurou Jonas firmemente. Dragon observava a tudo quieto, pois sabia o que esperava o jovem rapaz. Como da primeira vez, Jonas foi tragado pela Sombra e desapareceu do desfiladeiro vermelho. Em alguns segundos sentiu seus pés tocarem o chão novamente e sua alma sentiu o cheiro do Rio de Janeiro. A escuridão desapareceu e ele sentiu uma leve brisa no rosto. Ao abrir os olhos levou um susto. Estavam exatamente em cima dos pés da estátua do Cristo Redentor. Ainda era noite no Rio de Janeiro, e as luzes das casas estavam todas acesas. Jonas vislumbrou tudo aquilo com muita saudade e até mesmo felicidade, pois nunca em vida subira naquele ponto turístico, era caro demais chegar e se manter ali. Era mais lindo ao vivo que nas fotos.

"Bonito, eu também fico admirando a vista daqui... Mas era mais belo antes da intervenção humana.", falou a Sombra, dando um imenso salto na direção da cidade. Jonas a acompanhou. Era uma sensação fantástica planar sobre a cidade do Rio de Janeiro com a segurança da imortalidade da alma. A Sombra, muito mais experiente que ele, voava sublime, deixando-se levar pelos bolsões de ar quente para altitudes maiores. Jonas, menos experiente, era obrigado diversas vezes a se concentrar para flutuar, tornando a viagem por mais agradável que fosse, uma experiência cansativa. Enquanto voavam Jonas viu ao longe a Marina da Glória e sentiu saudade de Adalberto, seu amigo morto por Mizovitan. A culpa que sentia pela morte dele ainda doía profundamente no peito.

Seu vôo continua até o hospital Copa D'or, onde a Sombra pousa tranqüilamente na área reservada a helicópteros. Jonas chega segundos depois e seu pouso foi menos tranqüilo, chegando com muita velocidade e por muito pouco não caindo do prédio direto no meio da Rua Figueiredo. A Sombra esperou Jonas se recompor e afundou no interior do prédio passando pelos andares sem dificuldade. Jonas a seguiu, reparando que dentro do hospital haviam inúmeras almas vagando, em sua maioria pessoas como a Dona Glória, que ajudavam os espíritos na travessia dos mortos. Vez ou outra vira anjos, que também o viam e olhavam com desconfiança para ele.

A Sombra para de afundar no andar onde ficavam os quartos das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, e esperou Jonas chegar. Quando chegaram, foram diretamente para o quarto 02, onde um rapaz de pele negra aparentemente dormia completamente tomado por aparelhos com as mais diversas funções. A Sombra Negra passou parte de sua essência sobre o rapaz e constatou o que queria saber. "Realmente minhas fontes estão corretas, é uma casca vazia...", e deixou aparecer um sorriso.

– Agora, SanoDji, você vai tocar a cabeça desse rapaz e se concentrar o máximo que puder em tornar-se parte desse corpo... No início irá doer muito, pois o corpo vai resistir bravamente a sua intrusão, mas não vai resistir por muito tempo porque o corpo não quer morrer e seu novo fio de prata servirá para isso. – Disse a Sombra.

– É seguro? Não tem dono? – Perguntou Jonas, preocupado.

– Nenhum dono... O corpo está completamente abandonado, garanto, tanto que os médicos já rifaram os órgãos dele e em três horas, ao amanhecer, virão fatiá-lo e dar esses órgãos a novos donos... A não ser que ocorra um milagre. Sim, um milagre chamado SanoDji... Entende?

– Quer dizer que depois disso terei que viver uma vida inteira?

– Não, quando cumprir sua missão eu mesmo cortarei o fio de prata e o levarei de volta... Pois eu o costurarei. Até lá estará preso a Terra, e não deseje falhar ou sequer fugir, não conseguirá... Estarei sempre por perto para lembrá-lo disso.

– Não se preocupe, não tentarei fugir.

– Tentará sim, pelo menos a carcaça tentará, pois terá duas semanas pra vencer o cérebro dela e a programação do espírito que a comandava antes... E essa será uma dura batalha.

– Está bem, que assim seja.

– Que assim seja.



Imediatamente a Sombra toca a cabeça de Jonas. De início Jonas olha para os lados sem nada perceber, então aos poucos tudo começa a escurecer e ele começa a sentir-se com sono, uma sensação que não tinha há muito tempo. Então uma forte dor toma conta de seu corpo todo e têm a impressão de estar atravessando uma grossa parede de pedra através de um pequeno buraco, então a dor cessa. Ele olha para suas mãos e se vê negro, sente-se em um lugar estranho e ao mesmo tempo tem a impressão de que ele não deveria estar ali, que a sensação estranha é que é estranha. Então um turbilhão de imagens e memórias invade seu cérebro, e em frações de segundo algo estranho acontece, Jonas sente desaparecer aos poucos, suas memórias de quando vivo se esvaindo como a areia de uma ampulheta sendo mescladas e ao mesmo tempo substituídas pelas do corpo. Seu nome cede lugar a outro, como se Jonas fosse sequer uma lembrança. Seu nome era Fernando...

Revelações de Jonas, Conspiração: Segunda Etapa do Plano

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Se algum calendário existisse naquele lugar desolado, Jonas saberia que seu inferno durava apenas seis meses. Mas a falta de descanso, a falta de repouso e a falta de tempo para si mesmo faziam parecer serem anos. Os dias haviam se arrastado, apenas tinha idéia de dia e noite quando o Cavaleiro Negro e o Devorador de Almas retornavam a suas carcaças na Terra, pois desconfiava que estavam acordados. Ainda assim não tinha plena certeza de nada, dado que pelo que sabia de Daik-Haniah, os distúrbios de sono de seu corpo faziam com que pudesse aparecer a qualquer instante para continuar com o sofrimento.

A Sombra ocupava todo o restante do espaço livre. Ela aparecia sempre com muitos livros, em sua maioria documentos roubados de alguma colônia próxima, e obrigava Jonas a ler. Ela dizia que muitas vezes uma informação bem obtida e sustentada era mais fatal que o fio de uma espada. Jonas lia o tempo todo, muitas vezes era obrigado a ler e ao mesmo tempo desviar dos ataques de Daik-Haniah nos treinos de guerra, ou ter que ler e desvendar mistérios nos treinos do Cavaleiro Negro. Descobriu que os nomes Mizovitan e Mitzrael eram as alcunhas do Cavaleiro Negro, que preferia ser chamado de Mizovitan.

Descobriu também que Mitzrael era o que os humanos chamavam de anjo caído. Ele havia sido expulso da terra dos anjos anos antes, poucas semanas depois que a Sombra surgira e derrotara Deus. Ele parecia ter alguma informação importante que nunca ninguém soube qual era relativa a Sombra e a Deus, e por causa dessa foi desacreditado pelos seus semelhantes e então expulso. Estranhamente a sombra o procurou e contratou Mitzrael como seu principal subalterno. E outra informação a respeito de Mitzrael ele pôde descobrir, ele tinha sido o investigador dos céus, um título batizado de Sombra Azul. E esse cargo tinha sido com certeza sua derrocada, pensava Jonas, em acordo até mesmo com Daik-Haniah. Mizovitan não confirmava nem negava nada, apenas sorria e observava sua espada.

– O segredo da informação é que a sua importância é inversamente proporcional ao crédito que se dá a ela... – Dizia Mizovitan, durante o treinamento. – Em suma, quanto mais importante ela é, mais ridícula se torna.

– E como se aplica isso? – Perguntou Jonas.

– Você acreditava no demônio, quando vivo?

– Não, era ridículo isso...

– Bem, está aí a lógica de minha informação...



Daik-Haniah apenas o ensinava técnicas de combate. Eram coisas simples, as quais Jonas nunca tinha imaginado serem tão práticas. Disse-lhe que qualquer ser vivo sabia lutar, e dar sempre o melhor de si, mas a civilização e a doutrina tradicional haviam arrancado algo precioso de todos os espíritos, o instinto de sobrevivência. Ensinou Jonas a despertar seu animal dentro de si sem perder o controle. Ensinou que não basta apenas força de vontade para vencer uma Guerra, muitas vezes era preciso saber onde bater. Ensinou a Jonas como manipular a própria matéria da qual seu espírito era feito para criar armas como espadas e escudos. Descobriu então que Daik-Haniah assim como Mizovitan era um detetive, e que ele tinha sido candidato a Sombra Azul, mas os problemas que ocasionaram sua queda o tiraram da disputa.

Entendeu finalmente o que haviam dito a respeito de cérebro e vulvas. Pelo que lhe contaram Daik-Haniah era um alto comandante das forças espirituais na Terra. Tinha a missão de observar e julgar a humanidade para quando a hora final chegasse. E junto com ele, vários de seus companheiros vieram. Porém o que nenhum dos amigos de Daik-Haniah sabiam era que um dos seus era um traidor, aliás, uma traidora e através da luxúria conseguiu destruir todos os planos das forças espirituais. Mizovitan os havia avisado, mas a vulva era mais forte e todos foram derrotados. Como conseqüência, uma a que nem mesmo a traidora esperava era que Daik-Haniah fosse quem é, o Devorador de Almas, e quando ela descobriu isso era tarde demais, nada podia ser feito e pelo menos 137 colônias pagaram por isso com suas existências. A colônia de Jonas era apenas uma delas. Da mulher nunca mais se soube, pois ela desapareceu e apenas recolheu seu pagamento. A Sombra dizia que ela se arrependera do que fizera, mas ninguém a procurou mais.

Da Sombra, Jonas nunca soube de nada. Era uma figura estranha. Em um dia elogiava as forças dos céus por sua perseverança e vontade de ferro, no dia seguinte os ofendia como se fossem cães infernais. E essa confusão mental nitidamente mascarava a real intenção da criatura. Por vezes perguntava aos demais instrutores de Jonas quando ele estaria pronto, e todos diziam que em breve. Jonas não sentia tanto avanço assim, mesmo percebendo que muita coisa do que pensava do universo já não eram mais as mesmas.

Era o dia 02 de maio de 2006, no calendário terrestre. Jonas ainda acompanhava o desenrolar dos dias pelos comentários de Mizovitan e Daik-Haniah quando eles apareciam. De certo modo, agradecia por não estar mais na Terra. Eram tão ruins as notícias da degradação de tudo que ele sentia-se cada vez melhor por estar apenas treinando. Seus professores pareciam mais nervosos de que costume. A Sombra ainda não aparecera desde a chegada deles, e isso não era algo comum, pois ela temia que um acidente nos treinos desse cabo de Jonas. Foi quando todos escutaram o eco de pessoas marchando se aproximando deles. Daik-Haniah e Mizovitan voaram em debandada, abandonando Jonas sozinho. "E agora, o que será?", preocupou-se Jonas em seus pensamentos.

Jonas caminhou cautelosamente por entre as pedras, procurando pela fonte dos sons. Quando estava em uma posição mais elevada viu uma quantidade impressionante de criaturas de pele queimada se arrastando pelas pedras. "Estou cercado", constatou vendo que o cerco se fechava contra ele. Jonas pela primeira vez utilizaria na prática o que aprendera com seus mestres, e se escondeu atrás de algumas pedras. As criaturas assemelhavam-se com seres humanos. Tinham baixa estatura, provavelmente não mais que um metro de quarenta, e pele completamente negra. Não possuíam cabelos e estavam sempre nuas, sendo tanto figuras masculinas quanto femininas e os seus olhos eram de uma coloração avermelhada muito escura.

Não demorou muito para que a primeira criatura farejasse Jonas escondido no desfiladeiro. Sem dar o alarme as suas semelhantes, ela saltou sobre Jonas esperando que fosse uma presa fácil. "Fede a espírito fraco...", pensou a mente limitada da criatura. O engano custou-lhe caro demais, no meio do salto viu Jonas sacar uma espada e cortá-la em duas metades perfeitas a partir do meio da cabeça. A criatura se desintegrou por completo, não dando nem tempo para que as outras percebessem o que acontecera. Jonas imediatamente teve uma idéia arriscada e desceu o desfiladeiro correndo. Quando avistou o rio cinzento, Jonas pé após pé se aproximou de suas margens. Tinha que fazer tudo perfeitamente calculado e caminhou até um ponto em que as mãos emergiram e começaram a chicotear umas contra as outras incapazes de tocar Jonas. O jovem sorriu e virou-se na direção das criaturas, e gritou o mais alto que pôde.

Como animais incontroláveis esses monstros correram vorazmente na direção de Jonas que esperou pacientemente o momento correto. Ele sorriu e cravou sua espada profundamente na margem do Rio, deixando praticamente apenas o cabo da arma livre. Faltavam pouco mais de dez segundos para eles chegarem, ele teria apenas uma chance e tinha que contar com a sorte. O plano era absurdamente arriscado e teria que contar com a ignorância das criaturas e a fome das mãos do Rio Cinzento. O primeiro monstro saltou na direção de Jonas. Ele faz uma pequena oração e segura a criatura pela cabeça e a desequilibra, a atirando ao Rio. As mãos seguram a criatura com violência e ela grita, completamente tomada pela dor de ser desmembrada e levada para as profundezas. "Funcionará...", diz Jonas para si mesmo. As demais criaturas chegam, um total de pelo dez seres, pelo que Jonas conta. Ele precisa ser cauteloso, não pode fazer o que planeja enquanto todas não ataquem ao mesmo tempo.

– Vamos, estou sozinho e minha espada está cravada até o cabo no chão... Estão com medo? – Provoca Jonas.



O insulto tem efeito. Mais animais que antes, as criaturas saltam violentamente sobre que Jonas, que toma uma atitude completamente arriscada. Ele segura suas mãos firmes na espada e se joga para trás, afundando até o pescoço no Rio. Ele sente quando as mãos começam a querer puxá-lo para suas profundezas, mas não dura muito. As criaturas caem em cima de Jonas de forma até mesmo cômica e uma a uma todas são agarradas pelas mãos que antes seguravam Jonas. O jovem aproveita seu segundo livre e sai do Rio Cinzento, deixando todas as criaturas sendo consumidas em dor. Ele cospe no Rio e se levanta, quando é atingido nas costas por uma criatura sobrevivente ao terminar de se erguer.

– Verme humano... – Diz a criatura. – Que aparentemente chegara atrasada a armadilha, e por isso escapara. – Você matar irmãos, mim matar humano...

– Vem! – Desafia Jonas, parecendo ignorar que deixara sua espada para trás.



A criatura salta sobre Jonas e os dois rolam no chão. Ambos trocam chutes e socos a esmo, na maior parte do tempo acertando mais o chão que um ao outro. A criatura morde o braço esquerdo de Jonas, quase no ombro, e um jato luminoso sai pela ferida aberta. É uma dor que percorre o corpo todo que se não fosse o treinamento teria incapacitado-o. Deixando-se levar por seus instintos Jonas segura a criatura pelo pescoço e pela virilha, e a joga contra a parede de pedra vermelha do desfiladeiro. Bate uma vez, duas vezes. A criatura se contorce de dor e em frenesi arranha o rosto de Jonas com suas unhas tentando escapar, mas o jovem não cede. Três pancadas... Quatro pancadas... Dez pancadas, a criatura parece estar cedendo ao cansaço. Jonas não para de bater, perde a conta de quantas vezes o corpo já inerte da criatura bate na parede do desfiladeiro. Até que a criatura finalmente se esfacela em suas mãos como pó, Jonas havia destruído esse ser. Satisfeito com o resultado da batalha Jonas urra o mais alto que pode, procurando espantar qualquer criatura restante que estivesse por ali. Mas seu urro atrai criaturas mais perigosas ainda.

– Sinto-me orgulhoso. – Diz a voz da Sombra, se aproximando sorrateira como sempre. – Meus dois discípulos anteriores não tiveram toda essa malícia, e, permita-me dizer, essa selvageria controlada...

– Porque me abandonaram? Para morrer? – Berra Jonas, voltando a sua espada e retirando-a do chão, para apontá-la na altura do que seria o pescoço da Sombra. – Passei seis longos meses nessa filial do inferno, ouvindo um monte de coisa e aprendendo sobre coisas que nem queria saber para de repente ser abandonado pra morrer assim?

– Você morreu? – Pergunta a Sombra, segurando delicadamente a ponta da espada e afastando-a de si. – Até onde vejo está bem inteiro diante de mim, mais audacioso do que nunca... Venha, tem alguém que deseja conhecer você.



Jonas hesita em acompanhar a Sombra, está cansado e frustrado. Tinha sido avisado sempre que um dia seria testado, e que belo detetive se saíra por não perceber quando seria o teste? Apesar disso, sentia que o teste era apenas para verificar as suas habilidades primordiais, e que o verdadeira prova seria quando voltasse ao topo do desfiladeiro. Ele e a Sombra caminharam rápido pelo desfiladeiro até o deserto vermelho, o último ponto conhecido por Jonas daquele mundo. Pensou se eles parariam ali para conversar, mas ao invés disso a Sombra continuou caminho, em direção a montanha para onde Jonas fora impedido de ir pelo anjo chamado Taniel. O treinamento nessas horas se mostrava eficaz, um caminho que antes levara horas fazendo fizeram em questão de menos de um minuto, desde escalar o desfiladeiro até atravessar o deserto e chegar ao topo da montanha. Ali tinha um homem vestindo manto negro aguardando sentado em uma pedra, a única parte do corpo do homem que Jonas conseguia ver eram seus olhos verdes cintilantes.

– Demoraram a chegar... Pensei que viesse sozinho. – Disse o homem, olhando para Jonas. – Você deve ser o jovem chamado Jonas. Meu nome é Dragon.

– Prazer... Mas de onde veio? – Perguntou Jonas.

– Do outro lado da montanha. Lá ficam minhas instalações há pelo menos cinco anos... Você já quase as visitou sem pedir, anos atrás, foi salvo por Taniel.

– Salvo?

– Sim, se tivesse alcançado a montanha aquelas criaturas teriam tomado você... Tomado seu corpo e teria acordado completamente perturbado, com sua alma dilacerada pelos desejos imundos dos Vermes do Vazio. Teria cometido altas atrocidades... Isso se eu não o matasse por ver demais e tivesse seu corpo transformado em Terra de Ninguém.

– Vermes do Vazio? Então o nome daquelas coisas que enfrentei eram esses... E o que é Terra de Ninguém?

– Corpos sem recheio... Carcaças na terra abandonadas por seus donos pelos mais diferentes motivos.

– Isso pode acontecer? Li a respeito, mas não acreditei muito nisso...

– Em geral existem três modos pelos quais um espírito retorna a Terra, um deles é encarnando, o segundo é possuindo um médium por um curto espaço de tempo e o terceiro, e proibido, é tomando uma Terra de Ninguém. Esse tipo de coisa acontece quando o espírito é arrancado de seu corpo de alguma forma não-voluntária ou mesmo voluntária e o corpo não morre. Geralmente na Terra confundem isso com morte cerebral. O fio-de-prata que ligava a alma ao corpo não existe, o que existe é apenas um monte de carne viva. Então um espírito vêm e se apodera da pessoa, passa a viver a vida que seria de outro, com todas as suas lembranças, mas com propósitos diferentes... Se tivesse chegado a montanha, não estaríamos conversando hoje aqui.

– Chega de lições... – Interrompe a Sombra. – Estamos aqui para terminar o último teste, Dragon, e então? O que me diz?

Dragon tira a mão do manto e diz algumas palavras em uma língua que Jonas não entende, mas compreende o que querem dizer. Imediatamente Dragon salta no ar e rodopia de espada em punho na direção de Jonas. O movimento é tão rápido que Jonas mal tem tempo para acompanhar Dragon com o olhar, porém sabe exatamente como proceder. Ele saca sua espada e auxiliado por uma sorte absurda consegue interceptar a lâmina de Dragon com sua espada no exato momento em que seria decapitado. "Bom.", diz Dragon, saltando para trás e preparando uma estocada na barriga de Jonas. O jovem espírito se joga para a esquerda desviando do ataque e consegue ter a malícia de deixar sua espada entre ele e a arma de Dragon, dificultando um novo ataque. Sem se dar conta do adversário, e preferindo não pensar mais nisso, Jonas avança contra Dragon quando este está trazendo de volta sua espada e faz um ataque simples. Dragon defende facilmente o ataque e se livra da espada de Jonas, porém não percebe que Jonas fizera isso de propósito, e aproveitando a guarda aberta de Dragon joga seu corpo contra ele e o derruba. Os dois rolam no chão e por muito pouco não rolam a montanha abaixo. Quando se levantam, Dragon ajeita seu manto negro e estende a mão para Jonas.

– Parabéns... Vejo que realmente está apto para o que lhe espera. – Conclui Dragon, voltando a se virar para a Sombra e falando na linguagem que Jonas desconhecia. – Então será daqui a duas semanas... Algum problema?

– Nenhum, prepararei Jonas para isso em breve... – Assentiu a Sombra. – Alguma observação?

– Sim, Jonas é um nome muito comum... Dê-lhe algo digno da posição que ele conquistou, se o rapaz quiser.

– Darei, pode deixar.

Dragon se despede de todos os presentes e desde a montanha. Jonas nesse momento repara que Dragon era muito mais do que aparentava, e se dá conta que só sobrevivera por sorte. "Ele era um anjo!", percebe Jonas, recebendo a afirmação da Sombra em um gesto ridículo, onde ela fazia uma pomba em sombras e em seguida uma borboleta, apontando sempre pra Dragon, este que se afastava alheio a tudo. Meia hora depois estavam de volta ao tradicional desfiladeiro onde Jonas treinava. Assim que chegaram, Jonas viu uma figura conhecida por ele e que há muito tempo não vira, o tal Anjo Taniel...