Revelações de Jonas, Conspiração: Quinta Etapa do Plano


Revelações de Jonas: Conspiração
Quinta Etapa do Plano
Tirolez?

Albano era uma pessoa de poucas palavras... Que lembrava muito.

Era um homem magro, alto, com traços europeus. Isso contrastava nitidamente com seu sotaque nordestino, mais especificamente do litoral do Sergipe. Ele era descendente de uma família holandesa que se estabeleceu no país durante a invasão da Holanda ao nordeste. Acabou vindo morar no bairro do Leme, Rio de Janeiro, de um modo diferente do tradicional em virtude da profissão de seu pai. Seu pai era piloto de testes de aviões da FAB e por motivos de força maior teve que ser transferido para a base do III Comar, localizado na Praça XV. Esse fato aconteceu em fevereiro de 1985, quando Albano ainda tinha dez anos. A maior parte de sua infância aconteceu dentro do quartel, pois aficionado pela vida e imagem perfeita do pai, sempre o acompanhava no serviço.

Em virtude disso deu seu primeiro tiro aos doze anos com uma arma surrupiada de um soldado dorminhoco na base aérea. Seu pai soube de tudo na hora do disparo (não era surdo, assim como todos do quartel). Albano tinha dado um tiro certeiro em uma latinha de refrigerante a cem metros dele, que colocara numa mureta da base. A pontaria do jovem acabou salvando-o de uma bronca do pai e, por sua vez, dos superiores e garantindo-lhe uma vaga única na Academia de Tiro das forças armadas. E isso com apenas doze anos.

Quando completou quinze anos foi campeão brasileiro em uma competição não-oficial militar de tiro, nas categorias Alvo Estático e Alvo em Movimento. Ganhou de prêmio um curso de tiro profissional, pago pelo dinheiro arrecadado pelo concurso e foi realizá-lo nos Estados Unidos. Lá aprendeu a manejar diversos tipos de munições e os mais diversos tipos de situações que poderia passar tanto com armas manuais quanto com automáticas. Voltou com dezessete anos de sua viagem e fez prova para fuzileiro da força aérea. Foi quando seu mundo até então perfeito deu suas caras.

Seu pai havia sido deslocado, em função da idade, para funções burocráticas dentro da Força Aérea e sua mãe estava cada vez mais preocupada com ele. Albano não conseguia entender o que acontecia, em meio a volúpia adolescente, e deixou escapar diversos sinais de que algo estava errado. Primeiro seu pai adquirira o hábito de beber, e depois disso sua mãe começou a aparecer com diversas marcas pelo corpo que diziam ser provenientes de quedas as quais Albano nunca testemunhava. Mas sua mãe sempre lhe dizia para orar e para pedir proteção a Deus, pois enquanto tivesse fé, Deus os protegeria de tudo. E como um bom filho, Albano sempre acompanhava sua mãe na igreja e orava, estranhando apenas a ausência cada vez mais constante de seu pai. Era algo doentio, a fé de sua mãe aumentava na mesma proporção que a ausência de seu pai, e simultaneamente viu várias vezes sua mãe dando muitas somas de dinheiro nas mãos dos pastores da igreja para providenciar milagres que Albano não entendia quais eram.

Um dia Albano retornou de seu quartel, já com vinte anos de idade, e viu uma cena que o deixaria chocado. Sua mãe estava sentada no sofá com os olhos voltados pra cima. Em seu treinamento já tinha visto pessoas mortas antes e ele sabia o que estava acontecendo, mas nada o prepararia para chegar em casa e ver sua própria mãe nesse estado. Albano tentou ainda reanimá-la sem sucesso, foi quando percebeu que o pescoço dela tinha sido esmigalhado com muita força. Imediatamente pegou o telefone e ligou para a polícia, mas o telefone estava mudo. Sentindo uma péssima sensação, Albano se levantou e correu para a rua, tentando procurar algum vizinho. Foi ajudado pela vizinha do lado, que disse que tinha escutado uma violenta discussão entre os pais de Albano e que no final de tudo se silenciou e então o pai dele saiu apressado de carro.

Albano não queria acreditar nos fatos que socavam sua moral e sua integridade mental, e se levantou mentalmente. Pediu a vizinha para que o ajudasse chamando a polícia e disse que desconfiava de onde o pai estivesse, e que o traria para obter explicações. Pegou um táxi que o levou rapidamente para o local onde provavelmente seu pai estaria, o III Comar. Assim que chegou foi avisado pelos soldados que seu pai chegara perturbado e que estava dentro de um avião tucano que havia descido ali para fazer manutenção. Albano chegou no hangar correndo, mas só a tempo de ver o pequeno avião de acrobacias decolando rapidamente pela pista, sendo perseguido pelos mecânicos desesperados. Rapidamente Albano chegou até a torre de comando e solicitou a um dos controladores de vôo que tentasse falar com seu pai.

– Avião Tucano T-27, responda. – Disse o controlador. – Você decolou sem autorização da Torre, solicitamos retorno imediato ao local de origem. Câmbio.

– T-27 respondendo. – Disse o pai de Albano, do outro lado.

– Pai! Volte! – Berrou Albano, no microfone. – O que está fazendo? Enlouqueceu?

– Não filho, eu voltei ao normal... Um monstro como eu não pode viver em sociedade. – Informou seu pai. – Se você está aqui, viu o que fiz... Foi quando me dei conta do que deixei acontecer comigo mesmo. Deus me perdoe pelo que fiz, e pelo que farei. Câmbio, desligo!

Sem dar tempo de Albano falar mais nada, seu pai desligou o rádio em definitivo. Os radares do CINDACTA I ainda acompanharam a viagem do EMB-12 pelo radar até que ele desapareceu na imensidão das águas do oceano atlântico. Albano acompanhou tudo isso pelos radares com lágrimas nos olhos. Mesmo depois que o radar cessou de emitir informações sobre o tucano, Albano permaneceu parado no mesmo local, sem emitir reações. Preocupados com a saúde mental dos fuzileiros, os controladores de vôo chamaram uma equipe médica para ajudá-lo.

Dois meses de terapia se passaram no centro de saúde das forças armadas, em completa internação. Albano parecia ter se desligado do mundo nesse período, pois tudo aquilo que considerava mais sólido esfacelou-se como castelo de areia ao ser atingindo por uma onda do mar. Nessas semanas todas pensava na fé de sua mãe e de seu pai, em sua própria fé, e indagou-se onde estaria Deus nisso tudo. Sua resposta foi tão silenciosa quanto o que julgara ter percebido naquele fatídico dia. Exatamente no dia 19 de Julho de 1995, Albano recebeu alta do hospital psiquiátrico das forças armadas e foi levado para uma nova casa nos alojamentos da Vila Militar, com o objetivo que esquecesse as cenas horríveis que passara no Leme. E Albano permaneceu trancado naquele lugar, de licença médica, sem dizer uma única palavra por mais quase um ano.

Em março de 1996, uma pessoa foi a casa de Albano. Era um homem branco de cabelos loiros compridos, com aparência alemã, olhos azuis e uma voz sedosa. As mulheres da Vila Militar que moravam próximas de Albano ficaram encantadas pelo homem, que além de bonito era um verdadeiro cavalheiro. Ele tocou a campainha diversas vezes, sem resposta, até que um transeunte disse que a porta ficava sempre aberta e que Albano nunca saía de casa. O homem sorriu e abriu a porta. Como se conhecesse a casa, ele foi direto até o quarto de Albano, onde o militar licenciado assistia televisão.

– Bom dia, jovem Albano. – Disse o homem.

– ... – Silenciou Albano, apenas virando seu rosto na direção do desconhecido.

– Meu nome é Felipe, sei que é uma pessoa de poucas palavras, mas vim aqui oferecer um emprego... Uma forma de expurgar toda essa dor que sente em você.

– ...

– Bem... Eu represento uma firma de advogados que fica localizada nesse endereço da Avenida Presidente Vargas. – O homem entrega um envelope fechado na mão de Albano. – E temos para você uma nova possibilidade em emprego, algo que vai te tirar desse marasmo a que se submeteu quando aquele incidente trágico ocorreu.

– Quem lhe falou? – Perguntou Albano, falando pela primeira vez naquele mês.

– Temos nossas fontes... Se quiser saber mais, procure-nos.

O homem saiu do quarto de Albano e desapareceu em minutos, sem deixar qualquer vestígio de sua presença. Albano se levantou e foi até a janela de seu quarto, segurando o envelope. Com um canivete o abriu, e nele apenas tinha uma seqüencia de 12 números, divididos em três grupos de quatro algarismos cada. "Um telefone e um ramal, acredito.", indagou Albano. Ele foi até sua sala e discou os números na ordem em que apareciam, e uma voz eletrônica atendeu. "Somente recebemos ligações de celular", dizia a voz. Albano estranhou e se lembrou que o homem falara que o escritório ficava na avenida Presidente Vargas, e decidiu ir para lá. Horas depois estava na avenida Presidente Vargas, próximo a igreja da Candelária. Pegou seu celular e discou para o número. A voz eletrônica foi substituída por outra gravação, de uma mulher de voz sexy.

- Boa tarde, nosso endereço é Av. Presidente Vargas 1056, Sala 1304, obrigado. – Disse a gravação, repetindo diversas vezes.

Albano imediatamente caminhou até esse prédio. Era um prédio próximo a sede do DETRAN, com uma bela portaria e muita gente entrando e saindo. Parecia ser um simples prédio comercial, e por esse motivo não foi necessário se identificar com o porteiro. Depois de alguns minutos de espera na portaria, o elevador chegou e ele subiu até o décimo - terceiro andar, para a sala 04, que, aliás, era o último andar do prédio. Quando a porta automática do elevador abriu, Albano levou um susto, não havia corredor nesse andar, apenas uma sala pequena com as paredes cobertas por espelhos que davam a ilusão de ser um local maior que seus aproximadamente quatro metros quadrados. Do lado esquerdo da sala tinha um banco acolchoado com encosto, onde Albano se sentou, e uma câmera de segurança ficava apontada diretamente para o banco, na parede oposta. Assim que o elevador fechou suas portas, as luzes da sala se apagaram, deixando à mostra somente um ponto vermelho do sensor da Câmera de segurança.

A espera durou pouco tempo. Albano escutou um clique e uma pequena fresta de luz apareceu na quina da parede, revelando que uma das paredes era na verdade uma imensa porta corrediça coberta por um espelho. As luzes tornaram a acender e um homem baixinho vestindo um terno negro, oriental, veio até ele vindo por essa porta.

– Boa tarde, Senhor, em que posso serví-lo? – Perguntou o homem, com um leve sotaque que Albano não sabia de onde era.

Albano nada disse, apenas entregou o envelope que recebera. O homem sorriu gentilmente e pediu a Albano que o acompanhasse. Eles seguiram por um corredor com pelo menos cinco portas que ia dar em uma curva, nessa curva aparecia outro corredor com apenas uma enorme porta de madeira no final. O chão daquele lugar era todo acarpetado em vermelho, exceto quando estavam a uns dois metros dessa porta de madeira, onde o carpete vermelho acabou dando lugar a um carpete negro. O oriental parou de acompanhar Albano e disse a ele que abrisse a porta e aguardasse que seu anfitrião estava aguardando-o.

Ao entrar na sala Albano deu de cara com um imenso saguão cinzento. O saguão era do mesmo tamanho de uma sala de cinema. Todas as paredes eram adornadas por cortinas negras com detalhes em dourado mostrando diversas cruzes nas mais diversas posições. A uns três metros de altura, oposto a porta, tinha um maravilhoso vitral mostrando a figura de um anjo com uma asa de penas do lado direito e uma asa de dragão do esquerdo. Logo abaixo desse vitral tinha uma enorme mesa de escritório com um jogo de duas cadeiras para visitas e uma bela cadeira de diretor para o provável dono de tudo aquilo. Sob a mesa tinha um terminal de computador e algumas papeladas.

Na parede a esquerda de Albano tinha um altar com um livro aberto sobre ele. Ao lado do altar estava uma estátua de um anjo feita em puro mármore, segurando imponente uma tocha. O altar e a estátua eram iluminados por uma luz branca direta, que dava uma posição de destaque interessante a tudo aquilo. Na parede oposta tinha outro altar com outro livro sobre ele, um livro de páginas negras. Ao lado desse livro também tinha um estátua de um anjo, mas sua posição não era altiva como a da outra estátua. Ele estava de joelhos, com as mãos abertas tocando chão, e olhando para o alto com lágrimas no rosto, dando-lhe um olhar sofrido. Suas asas estavam danificadas, parecendo que tinham sido quase totalmente destroçadas, e suas mãos seguravam penas, e tinham dessas penas esculpidas por toda a base da estátua. Nesse local a iluminação provinha de uma luz azul escura dando um aspecto sombrio a essa parede.

Albano ficou curioso em saber o que continha em cada um dos livros e caminhou afoito em direção do livro mais bem iluminado. Assim que chegou nele se decepcionou, o livro estava completamente em branco. Folheou outras páginas, sem desmarcar a original e continuou sem encontrar nenhum palavra, e decidiu ver sua capa. Nela estava escrito "Livro das Revelações". de uma forma muito antiga, aliás, o livro parecia ser muito antigo, dado que pelo que Albano percebeu era todo costurado a mão e com a capa feita do couro de algum animal. Depois disso voltou sua atenção para a estátua do anjo. Tinha nela uma assinatura e uma explicação, ambas em Italiano, as quais teriam sido completamente indecifráveis por Albano não fosse uma placa de vidro salvadora na parede, mostrando a tradução do que estava escrito.

L'Angelo di Verità.
Elemento portante della luce Divine, quell'che porterà la verità e la vergogna.
Di Raffaello de Urbino


"Anjo da verdade. O portador da luz divina, aquele que trará a verdade e a vergonha.", leu Albano, intrigado. Enquanto caminhava para o outro lado da sala, escutou o som de uma porta se abrindo e de trás das cortinas da parede onde estava saiu uma pessoa. Era uma mulher de pelo menos um metro e oitenta, de cabelos negros perfeitamente lisos e usando um óculos escuros. Vestia um blazer preto que exaltava suas formas perfeitas e usava um perfume que mexia com os brios de Albano. Ela se dirigiu calmamente até a grande mesa de escritório e sentou-se na cadeira que parecia ser a ela reservada, a do chefe.

– Pelo que v, gosta de boa arte... – Disse a mulher, enquanto apertava um botão na mesa. – Tragam vinho para mim e um... O que deseja beber?

– Um copo de água, apenas. – Respondeu Albano.

– ....Água para nosso convidado. – Pediu a mulher, soltando o botão da mesa. – Bem, meu nome é Regina, o que é?

– Albano.

– Albano, tudo bem. O que o trouxe aqui?

– Um de seus funcionários, Felipe... – Ao ouvir Albano dizer o nome de seu contato, Regina rapidamente mexeu no mouse do computador e depois de dedilhar muito no teclado ela se virou novamente para Albano.

– Ah, sim... Estou com seu histórico aqui. Diga-me, qual sua posição a respeito de Deus?

– Heim? Porque a pergunta?

– Dependendo da sua resposta, tenho algo a lhe dizer ou não...

– Quer saber se acredito em Deus? Isso?

– Não, quero saber o que diria dele se fosse uma pessoa... Se não acreditar, não faz diferença para o que quero saber.

Albano silenciou, nunca escutara uma pergunta desse tipo antes, pelo menos não nessas circunstâncias. A mulher parecia ter muito dinheiro e transpirava seriedade, mesmo com toda sua sensualidade. Albano sentiu que suava frio por algum motivo que desconhecia e mesmo assim não conseguia pensar em uma resposta a esse questionamento. Aliás, ele tinha uma resposta sim, sempre se perguntava onde estava Deus enquanto seu pai estrangulara sua mãe, e onde esse mesmo Deus estava quando seu pai voou em direção a morte. ele sentia certa raiva dessa entidade misteriosa, mas nada que lhe dessa ódio, apenas indiferença.

– Sou indiferente com relação a Deus, se quer saber... Ele lá, eu aqui. – Respondeu Albano.

– Ótimo... Então vamos conversar...


O tempo passou, dias viraram semanas, semanas viraram meses e meses tornaram-se anos. Albano fazia parte da Organização desde 13 de Março de 1996, e agora, dez anos depois, dia 13 de março de 2006 era uma das pessoas mais respeitadas da Organização. Ele realizava pequenos trabalhos para a organização, que envolviam desde a ameaças simples a até queima de arquivo. Era, segundo Regina, o líder do setor dele. Desde que entrara na Organização, Albano nunca fez perguntas, ele sentia-se compelido a servir essa Organização sem perguntar por suas intenções, exatamente como aprendera no quartel. "Soldados não questionam ordens, soldados cumprem ordens.", dizia para si mesmo quando alguma dúvida aparecia. Esses serviços eram perfeitos para liberar a raiva que sentia de tudo que acontecera com sua família no passado, e até mesmo dentro da organização ele tinha um apelido por causa de sua eficácia e mudez completa. Era Tirolez. Porque esse nome? Ninguém sabia responder... Mas Albano gostava desse nome.

Revelações de Jonas, Conspiração: Quarta Etapa do Plano


Revelações de Jonas: Conspiração
Quarta Etapa do Plano
Nova vida

Fernando acorda como se estivesse em uma espécie de transe estranho. Olha para os lados e se vê entrevado numa cama de hospital. Não lembra exatamente como veio parar aqui e nem o que o trouxera para cá, mas tem certeza que quer se levantar. Sem muita precaução arranca com violência os tubos que até momentos atrás faziam a função que seus pulmões faziam antes, o que lhe dá profunda dor, pois parecia não fazer isso há muito tempo, simplesmente respirar. A seguir arranca de seu braço direito a agulha de onde vinha o soro e os remédios que lhe mantinham alimentado. Um esguicho de sangue saiu de sangue em resposta a violência de seu ato, sujando toda a maca e parte dos equipamentos. "Preciso saber que dia é hoje... Preciso saber...", pensa enquanto caminha em direção a um espelho.

Ele leva um susto. Ao olhar no espelho vê diante dele um jovem de cor branca com aproximadamente dezessete anos, de cabelos emaranhados e desnudo. A imagem dura até Fernando coçar os olhos e se ver novamente como é. Fernando é um rapaz negro no auge de seus vinte e cinco anos, físico atlético e medindo aproximadamente um metro e setenta e cinco de altura. Não possui cabelos, sempre os raspando pelo menos uma vez por semana, para manter sua cabeça sempre o mais lustrada possível. Recuperado da visão estranha que vira no espelho, Fernando sai de seu quarto no exato momento em que os enfermeiros do andar chegam para ver o que acontecera com o paciente, cujos sinais de vida subitamente desapareceram.

– Milagre! – Berra um dos enfermeiros ao ver Fernando de pé diante deles, saindo da sala.

– Heim? – Indaga Fernando. – Não estou entendendo nada...



Os enfermeiros ficam estáticos alguns segundos, na maioria do tempo se benzendo, e então, com a eficácia tradicional de quem trabalha naquele hospital, tratam do ferimento que Fernando fizera em si mesmo ao arrancar a agulha intravenosa. Um deles, uma senhora negra de aparentemente uns cinqüenta anos, corre até um terminal telefônico instalado no corredor e chama pelo médico de Fernando. "É um milagre doutor Eduardo... Ele está aqui no corredor, andando...", diz a mulher empolgada para alguém no fone, sendo escutada por Fernando. Depois disso ele não escuta mais nada, pois é guiado pelos demais enfermeiros de volta a sua cama de hospital. Com o cuidado tradicional eles limpam Fernando e colocam curativos nele, verificam também se quando ele retirou o respirador, se nada ficou dentro dele. Quando terminam todo o tratamento, é o tempo exato que leva para o Dr. Eduardo chegar correndo na sala.

– Oh, meu deus! – É a única coisa que Dr. Eduardo fala, ao ver Fernando sentado na maca.

– Boa... – Diz Fernando, dando uma pausa e olhando a janela, constatando que é o início da manhã. – Ops, bom dia doutor...

– Bom dia, Fernando. – Responde Dr. Eduardo, ainda chocado. – Como se sente?

– Confuso, não sei porque estou aqui e nem que dia é hoje...

– Hoje é dia 12 de maio de 2006, Fernando, e você está aqui por causa de um camarão que consumiu há pelo menos vinte e quatro horas atrás.



Imediatamente, como se pegasse no tranco, Fernando se lembra desse evento. Ele está na praia de Copacabana com amigos quando um deles lhe oferece um pedaço de seu salgado. Faminto, e como nunca nega comida mesmo sabendo dos males que comer na rua podem lhe causar, ele abocanha um bom pedaço da comida e engole sem mastigar muito. Em seguida bebe um bom gole de refrigerante e volta a conversar. "Muito bom... É o que?", pergunta ao amigo, gostando do sabor do salgado. "Risole de camarão, Fernando, gostou?", responde o amigo para seu desespero. Fernando é absolutamente alérgico a camarão, mesmo tocar seus dedos nele cru lhe dá ulcerações nas partes que tocaram o animal, um caso raro e perigoso de alergia. Fernando coloca o dedo na garganta tentando provocar o vômito enquanto os presentes que conhecem seu problema correm em seu auxílio. Sente uma dor horrível no estômago que passa rapidamente para o peito. Fecha os olhos e quando abre novamente vê o Dr. Eduardo falando com ele algo que não compreende, então simplesmente apaga.

– Foi uma situação complicada. – Diz o Dr. Eduardo. – Você chegou aqui com um choque anafilático dos mais complicados que já vi em minha carreira médica... E na dos demais especialistas daqui. Tivemos que reanimá-lo mais de quinze vezes durante o procedimento de retirada do alimento... Seu cérebro passou praticamente mais de quinze minutos sem oxigênio, é um milagre até que consiga falar algo que se compreenda.

– Nossa... – Balbuciou Fernando, olhando para uma imagem sacra no topo de seu quarto.

– Exato, e se tiver algum tipo de fé, aconselho-o a agradecer muito porque você teve muita sorte hoje.



Fernando comemorou por dentro, estava vivo e isso era maravilhoso. Uma morte ridícula dessas seria algo vergonhoso para ele, preferia morrer atropelado ou num assalto, mas por causa de um camarão... Dr. Eduardo aconselhou ele a passar mais dois dias no hospital para efetuarem alguns testes nele, mas o que Fernando mais queria era retornar para casa. Nesse momento teve um lapso de memória, não sabia porque queria voltar tanto para casa, mas queria voltar. Preocupado com isso, interrompeu Dr. Eduardo nos exames de praxe (como escutar o coração e a respiração) e começou a falar:

– Doutor, eu estou com a impressão de estar esquecendo algo... – Falou Fernando.

– Não se preocupe, esse problema é normal quando acontecem as coisas que te descrevi. – Respondeu o Dr. Eduardo – Amanhã o neurologista chefe do hospital vai examiná-lo antes de saber se levará alta ou não, até lá, descanse e relaxe, com o passar dos dias tudo vai voltar ao normal.



Algo no interior de Fernando gritava que as coisas jamais seriam normais para ele, mas ele preferiu ignorar essas impressões e relaxar um pouco. Com o término dos exames preliminares, Dr. Eduardo se despediu e saiu da sala, pedindo apenas a Fernando que mantivesse preso nele os eletrodos do monitor cardíaco, pois não queriam maiores problemas. Seguindo as orientações do médico, Fernando deixou as enfermeiras prenderem novamente o equipamento em seu peito e apesar do desconforto causado pelos fios, acabou cedendo ao tédio e adormecendo meia hora depois, pra querer acordar. Mal Fernando adormeceu começou a escutar vozes em volta dele, chamando por um nome que lhe era familiar, mas ao mesmo tempo sentia-se compelido a esquecê-lo. "Jonas! Jonas!", diziam diversas vozes, em torno de Fernando.

Incomodado com as vozes e uma sensação incômoda de estar sendo observado, Fernando abriu os olhos. Ele se viu cercado de muitas pessoas, com fisionomias as mais diversas, que olhavam ele com profundo pesar. Olhou para si mesmo e via que sua pele não era negra, mas branca. "Você não tem idéia do que fez Jonas.", disse uma senhora de aparentemente sessenta anos. "Seu egoísmo é terrível. Como pôde?", perguntou um senhor negro, com pelo menos trinta anos. "Não acreditamos que fosse capaz disso.", falou uma criança de no máximo doze anos. Fernando fechou os olhos e gritou que parassem de falar seu nome, que parassem de culpá-lo por algo que não entendia. Então sentiu mãos o sacudindo e abriu os olhos, era uma enfermeira.

– O senhor está bem? – Disse uma enfermeira, com olhar preocupado.

– Onde eles estão? – Perguntou Fernando, ainda grogue.

– Eles quem? – Respondeu a enfermeira. – Só estamos nós dois aqui... Deve ter sido um pesadelo, senhor.

– Pesadelo...?

– É, o senhor dormiu algumas horas atrás e não faz cinco minutos que começou a gritar e se debater na cama, no início pensei que fosse algo mais sério, mas pelo jeito foi só um sonho ruim.

– Faz quanto tempo que dormi?

– Seis horas pelo menos, não era meu turno, mas me avisaram do milagre que aconteceu contigo... Graças a deus o senhor está bem.

– Obrigado.



Fernando sentiu uma vontade absurda de ir no banheiro e perguntou onde ficava o mictório, a enfermeira apontou rindo para uma porta bem em frente a maca. "Ah, obrigado de novo...", respondeu Fernando sem graça e caminhou para o banheiro. Depois de aliviar sua vontade, perguntou a enfermeira se ela tinha alguma idéia de quando seria liberado, e ela deu com os ombros, sem saber. Disse apenas que o Dr. Felix, neurologista, tinha avisado que o exame de ressonância magnética seria feito as quinze horas, e que já eram quase quatorze horas. A enfermeira perguntou a Fernando se ele não havia sentido falta de algo, e Fernando estranhou a pergunta, querendo entender o motivo de sua dúvida.

Novamente a enfermeira deu com os ombros e avisou que mesmo que fosse embora, provavelmente só poderia fazer acompanhado, e isso aconteceria as dezoito horas, durante o horário de visitas. Ao escutar a palavra "visitas", Fernando ficou empolgado e ansioso por esse horário, mas não conseguia lembrar porque ficava ansioso, sequer desconfiar do motivo. Parecia um bloqueio na sua cabeça. Desistiu de entender o que se passava consigo e decidiu aguardar a hora do exame. Enquanto o tempo passava, a enfermeira deixou a refeição de Fernando e voltou para a sala das enfermeiras. E Fernando assistiu televisão pra passar o tempo, sentia-se como se não fizesse isso há meses.

Finalmente chegou a hora do exame, Fernando estava ansioso por ele pois isso definiria se ele voltaria para casa naquele dia ou se demoraria ainda mais naquele hospital. O responsável por isso seria o neurocirurgião Felix Almeida, o chefe dos neurocirurgiões do hospital Copa D´or, e com certeza, da rede D´or. Fernando foi deitado em outra maca e levado de elevador até o andar onde ficava a sala de ressonância. Ao entrar na sala sentiu o cheiro de limpeza do local e um frio absurdo gelou-lhe da cabeça aos pés, e estar nu vestindo apenas a fina roupa de hospital não ajudava nada. "O equipamento é caro, não podemos deixá-lo pifar por causa do calor do Rio, daí a necessidade do frio excessivo... Mas você vai sair daqui rápido.", explicou o enfermeiro que empurrava a maca.


Máquina de Ressonância Magnética.


Fernando se levantou e deitou sob a superfície gelada do aparelho de ressonância. Seria um exame rápido, assim esperava, senão provavelmente teriam que tirá-lo com um quebrador de gelo. O Doutor Felix chegou segundos depois, apresentando-se educadamente e com um ar de ceticismo que deixava Fernando assombrado.

– Bom dia, senhor Fernando, meu nome é Dr. Félix, mas se quiser me chamar de Almeida não tem problema. – Disse o Dr. – Como pode ver, estamos diante de um aparelho dos mais modernos do mundo, e apesar de você estar nitidamente saudável para seus próprios padrões e para os dos demais funcionários do hospital, não sou tão crente quanto eles em milagres, apenas acredito no deus ciência. Se pode ver, essa mesa possui um sistema de rolamento igual a aqueles de caixas de supermercado que vão levá-lo até o interior do aparelho. – Enquanto falava, apontou para o buraco branco do aparelho de ressonância. – Lá dentro será bombardeado por íons e outras coisas mais que irão mapear toda sua cabeça, de forma tal a procurarmos eventuais problemas que podem a longo prazo transformar seu dito milagre em tragédia.

– Quanto tempo isso leva? – Perguntou Fernando.

– De cinco a dez minutos. Devo lembrá-lo que tem que tentar ficar o mais calmo possível, não é comprovado que isso interfira no resultado, mas como a atividade intensa altera o fluxo de sangue no músculo, e o cérebro é um músculo, quanto menos pensar melhor para o exame. Consegue passar algum tempo sem pensar? Se não conseguir, tente prestar atenção na música, que coloco propositalmente nos exames para acalmar os pacientes. E tente não se mexer, mas com o frio intenso sei que vai tremer. Ah sim, feche os olhos, a luz é forte. Boa sorte, senhor Fernando.



O Dr. Felix saiu da área do aparelho e foi para a sala de operações, onde um outro funcionário aguarda para dar início ao exame. Com um apertar de botão, o mecanismo de rolamento da máquina se ativou e Fernando entrou vagarosamente na máquina, ao mesmo tempo em que luz brancas muito fortes se acendiam. "O resultado do exame preliminar será imediato... Mas ainda assim analisaremos o material por mais alguns dias, logo, mesmo que vá embora hoje, provavelmente voltará aqui semana que vem para o resultado preciso.", avisou Dr. Felix a Fernando, falando alto de forma que pôde ser ouvido por Fernando de dentro do aparelho. Em seguida Fernando começou a deixar-se levar pela música e pelo frio, relaxando completamente.

Vinte minutos depois Fernando estava novamente na cama do hospital. Tudo estava aparentemente bem, seu cérebro não tinha nenhum coágulo ou problema similar. Era o que Fernando precisava saber para ir embora do hospital. A única resposta que não lhe agradou foi quando perguntou a respeito dos lapsos de memória e o Dr. Feliz disse que provavelmente era por causa da falta de oxigenação do cérebro quando teve as paradas cardíacas, e que eventualmente algumas memórias voltariam do mesmo modo que outras jamais viriam, pois estavam em áreas mortas do cérebro. O dia passou novamente diante da televisão até que o horário de visitas chegou e Fernando foi tomado por uma empolgação tão grande que chegou a estranhar. Nesse momento um rapaz de boa aparência, com no máximo vinte e dois anos de idade, de corpo malhado e bronzeado de praia entrou no quarto de Fernando trazendo flores.

– Fernando... – Disse o jovem, com lágrimas nos olhos.

– Renato... – Respondeu Fernando, de instinto e para seu estranho espanto ao lembrar desse nome.



E os dois jovens rapazes se beijaram apaixonados...

Revelações de Jonas, Conspiração: Terceira Etapa do Plano

Revelações de Jonas: Conspiração
Terceira Etapa do Plano
Partida



– Sombra Negra, precisamos conversar... – Disse Taniel, ao ver a Sombra chegar acompanhada de Jonas.

– Conversaremos então... – Falou a Sombra. – Com ou sem privacidade? – Perguntou na linguagem que Jonas não compreendia.

– Com privacidade... – Respondeu Taniel, na mesma língua.

– O que o fez descer dos céus para esse pequeno inferno, Taniel? – Afirmou a sombra, em seguida mudando para a língua comum. – Por acaso sente falta de seus semelhantes?

Jonas estranhou a mudança súbita de idioma da Sombra. Obviamente de propósito ela dera a ela uma informação que o levou a pensar que a Sombra assim como Taniel seria um anjo, ou pelo menos era um anjo caído do mesmo patamar de Mizovitan. As duas entidades continuaram a conversar por mais alguns minutos, sempre naquela estranha linguagem que Jonas sequer compreendia.

– Você realmente vai colocar em prática essa tática suicida? – Perguntou Taniel.

– Eu não irei me arriscar de modo algum, está vendo a jovem alma a seu lado? – Respondeu a Sombra. – Ela fará tudo sozinha...

– Mas ele é um espírito missionário... Não pertence as castas guerreiras.

– Não pertencia, quer dizer... Eu, Daik e Mizovitan o doutrinamos nos últimos meses de forma a prepará-lo para isso... E tenho orgulho de dizer que hoje ele sobreviveu a uma matilha de Vermes do Vazio e ao teste de Dragon.

– Você fez o quê? Deixou ele enfrentar Dragon... – Taniel silenciou por um tempo, e fitou Jonas detalhadamente, realmente sentia algo de diferente no jovem, diferente de quando o vira na única vez, ele estava forte. Não tinha nenhuma sabedoria que se ganhava com a experiência, mas era forte. Apenas forte.

– E então, gostou do que viu? – Interrompeu a Sombra.

– Ele é apenas força bruta, não vejo porque vocês o treinaram. É errado isso, você sabe.

– Errado é não tentar. Errado é se julgar acima de qualquer julgamento. Errado é subjugar os menos evoluídos com palavras de ordem sem olhar para o próprio umbigo. O que demos a essa alma foi um propósito, uma forma de resistir ao que virá... Ou de impedir.

– Você sabe que isso não vai dar certo...

– Não tenho nada a perder com isso.



A resposta da Sombra foi o suficiente para Taniel, que se calou e caminhou em direção de Jonas. A Sombra escondeu seu sorriso e observou atentamente seus passos. "Ao menos quero saber se é isso que ele quer.", afirmou Taniel, em linguagem comum. Taniel se aproximou de Jonas e viu que Daik-Haniah e Mizovitan estavam chegando. Talvez tivesse pouco tempo para conversar com o jovem, ou não, mas só tinha uma forma de saber.

– Jonas, é esse seu nome, não? – Perguntou Taniel. – Você está aqui realmente porque quer?

– Não exatamente, era isso ou ser destruído por Mizovitan. – Respondeu Jonas.

– Ah, então você está aqui por livre e espontânea pressão? Bonito isso... – Taniel imediatamente se volta para Mizovitan. – Porque fez isso, Mitzrael?

– Livre arbítrio. – Respondeu o anjo caído. – Eu escolhi matá-lo se não aceitasse trabalhar conosco...

– Sabe que não deixaria isso acontecer. – Avisou Taniel. – Independentemente de nossa amizade.

– Se chegasse a tempo, quem sabe... – Indagou Mizovitan, linguagem desconhecida.

– Com licença, uma pergunta, Taniel. – Interrompeu Jonas.

– Faça.

– Você é um anjo?

– O que você acha? Já viu anjos com asas tão lindas quanto essas?

– Isso... Suas asas são parecidas com as de Daik-Haniah, só agora pude perceber... Não é parecida com a de nenhum dos anjos que vi.

– Sim e não... O que importa saber é que todos nós aqui, a sua exceção e a de Daik-Haniah, somos de uma linhagem idêntica...

– Daik-Haniah?

– Bem, se não te explicaram até agora, não serei eu a explicar... E nem é necessário isso. Você deve saber o necessário somente, pois vejo pelos olhares a minha volta que falei demais.

– Com certeza falou demais. – Disse Daik-Haniah, novamente tornando a falar no idioma desconhecido. – Agora vamos conversar melhor...



Daik-Haniah, Taniel e Mizovitan saíram do ambiente, deixando Jonas e a Sombra sozinhos. Jonas pensou em perguntar a Sombra como uma criatura proveniente dos céus, mesmo não sendo um anjo, aparecia ali e conseguia lidar tão bem com tudo aquilo. A Sombra se antecipou e disse que a linhagem a que eles pertenciam dava-lhes tal capacidade. Eram todos eles capazes de sobreviver em locais onde espíritos comuns sucumbiriam a tentação, e sem aparentarem isso. Disse também que Daik-Haniah era de uma linhagem a parte, com ligação a algo semelhante ao Pai Celestial, mas sem entrar em detalhes. Jonas perguntou se haveria outro Deus, e a Sombra negou, dizendo que Deus apenas haveria um. E que todos eles se conheciam a mais tempo que o anjo mais antigo do céu. Essas explicações bastaram para satisfazer Jonas, que começou a se sentir confuso novamente com o excesso de informações e foi se sentar para descansar daquele dia agitado.

Os dias passaram. Já era madrugada do dia 12 de maio de 2006, os treinamentos seguiam sem interrupção, até que Jonas foi chamado pela Sombra para conversar. Ela aguardava Jonas na mesma caverna onde o jovem encontrara Daik-Haniah pela primeira vez. Jonas conseguia perceber que não estavam apenas eles dois no local, alguém mais os observava. Apesar de perguntar várias vezes o que a Sombra desejava, não conseguiu muito sucesso em sua resposta, a Sombra parecia estar em transe, distante dali. De repente ela retornou e praguejou muito, dizendo "Eles são idiotas... idiotas!" e outras frases de calão mais baixo. Passados alguns segundos, ela percebe as presenças na caverna e volta a sua frieza tradicional.

– Desculpem a triste cena, estava chocado com tamanha tolice... – Disse a Sombra, enquanto Jonas se aproximava, e da escuridão da caverna saía Dragon. – Temos que conversar rápido... Principalmente contigo, Jonas... Ou melhor, SanoDji.

– SanoDji? Que diabos é isso? – Perguntou Jonas.

– Seu nome de agora em diante... Pode continuar utilizando Jonas, se assim o quiser, mas eu e Dragon passaremos a chamá-lo de SanoDji, um nome mais de acordo com sua missão.

– Missão? – Espantou-se Jonas. – Mas eu ainda estou treinando...

– Estava. – Interrompeu, Dragon. – Descobrimos uma certa aceleração nos planos de meus pretensos aliados, logo, significa que seu treinamento acaba hoje.

– Espera... Mas eu não estou preparado! – Protestou Jonas.

– Pena, quando assinou seu contrato comigo, ele não incluía covardia... – Disse a Sombra. – Pensei realmente que o treinamento tivesse tirado isso de você. O que tem de curioso tem de covarde, mas não tenho como treinar alguém melhor, logo, ou vai ou racha.

– E os anjos, o que disseram a respeito disso? – Perguntou Dragon. – Eu sei que você foi avisá-los de parte de seus planos... Para dar validade a eles dentro das regras.

– Os idiotas... Ah que raiva... Eles disseram que preferiam não escutar minhas palavras, deram a autorização às cegas. Não querem saber do que vai acontecer porque se for a vontade de Deus, é inevitável... Às vezes a credulidade deles me irrita, principalmente quando armam as coisas debaixo do nariz deles e são incapazes de ouvir.

– E o Pai, o que acha disso?

– Ele disse que devo fazer como quiser, ele não vai interferir, pois sabe de minhas intenções e dos procedimentos... – Diz a Sombra, mudando rapidamente para a linguagem desconhecida. – Ele apenas se preocupa com SanoDji, considera tolice sacrificar uma de suas crias mesmo que em prol da Terra No fundo, acredito que Ele apenas esteja esperando o Dia do Juízo.

– Preocupado com o garoto... Era de se esperar Dele... Mas até onde sei não existem riscos para o jovem, pelo menos não imediatos. – Falou Dragon, na mesma língua. – O treinamento de vocês deve bastar... Ele ficou forte.

– Sim, mas Taniel descobriu uma possibilidade de falha que nós esquecemos de considerar...

– Que possibilidade?

– Experiência, SanoDji tem toda a teoria, não tem a prática, apenas força sem a sutileza... E ele está certo, sem prática as coisas podem dar errado.

– Então teremos que contar com a sorte. – Afirmou Dragon, voltando a falar na linguagem normal.

– Sorte? Como assim sorte? – Perguntou Jonas, tendo escutado o novo nome dele vezes demais na conversa misteriosa para saber que falavam dele.

– Você vai voltar para a Terra, Jonas. – Falou a Sombra. – Ainda hoje.

– Hoje? – Espantou-se Jonas. – Como assim?

– É, hoje levarei você de volta para o mundo dos vivos... De onde somente poderá voltar com a missão cumprida. Depois de estabelecido na Terra, o que deve levar pelo menos duas semanas, entrarei em contato com você para explicar melhor sua missão.

– Em duas semanas nem terei começado a engatinhar...

– De onde tirou a idéia que nascerá? Você voltará no corpo de uma Terra de Ninguém, já até escolhi o corpo que usará, para sua sorte ele está internado num hospital particular do Rio de Janeiro e selecionei alguém com condições financeiras das melhores, em duas semanas conseguirá se adaptar aos modos dele e suas lembranças se misturarão as dele, daí então receberá meu primeiro contato. Você saberá quando eu me manifestar.

– Poderei vir aqui, como Daik-Haniah e Mizovitan fazem?

– Não, não poderá fazer viagem astral até esse lugar, a não ser que eu o busque... O segredo é fundamental nessa etapa.

– E quando partirei?

– Agora...



A Sombra mais uma vez mostrou sua mão feminina e segurou Jonas firmemente. Dragon observava a tudo quieto, pois sabia o que esperava o jovem rapaz. Como da primeira vez, Jonas foi tragado pela Sombra e desapareceu do desfiladeiro vermelho. Em alguns segundos sentiu seus pés tocarem o chão novamente e sua alma sentiu o cheiro do Rio de Janeiro. A escuridão desapareceu e ele sentiu uma leve brisa no rosto. Ao abrir os olhos levou um susto. Estavam exatamente em cima dos pés da estátua do Cristo Redentor. Ainda era noite no Rio de Janeiro, e as luzes das casas estavam todas acesas. Jonas vislumbrou tudo aquilo com muita saudade e até mesmo felicidade, pois nunca em vida subira naquele ponto turístico, era caro demais chegar e se manter ali. Era mais lindo ao vivo que nas fotos.

"Bonito, eu também fico admirando a vista daqui... Mas era mais belo antes da intervenção humana.", falou a Sombra, dando um imenso salto na direção da cidade. Jonas a acompanhou. Era uma sensação fantástica planar sobre a cidade do Rio de Janeiro com a segurança da imortalidade da alma. A Sombra, muito mais experiente que ele, voava sublime, deixando-se levar pelos bolsões de ar quente para altitudes maiores. Jonas, menos experiente, era obrigado diversas vezes a se concentrar para flutuar, tornando a viagem por mais agradável que fosse, uma experiência cansativa. Enquanto voavam Jonas viu ao longe a Marina da Glória e sentiu saudade de Adalberto, seu amigo morto por Mizovitan. A culpa que sentia pela morte dele ainda doía profundamente no peito.

Seu vôo continua até o hospital Copa D'or, onde a Sombra pousa tranqüilamente na área reservada a helicópteros. Jonas chega segundos depois e seu pouso foi menos tranqüilo, chegando com muita velocidade e por muito pouco não caindo do prédio direto no meio da Rua Figueiredo. A Sombra esperou Jonas se recompor e afundou no interior do prédio passando pelos andares sem dificuldade. Jonas a seguiu, reparando que dentro do hospital haviam inúmeras almas vagando, em sua maioria pessoas como a Dona Glória, que ajudavam os espíritos na travessia dos mortos. Vez ou outra vira anjos, que também o viam e olhavam com desconfiança para ele.

A Sombra para de afundar no andar onde ficavam os quartos das Unidades de Terapia Intensiva, as UTIs, e esperou Jonas chegar. Quando chegaram, foram diretamente para o quarto 02, onde um rapaz de pele negra aparentemente dormia completamente tomado por aparelhos com as mais diversas funções. A Sombra Negra passou parte de sua essência sobre o rapaz e constatou o que queria saber. "Realmente minhas fontes estão corretas, é uma casca vazia...", e deixou aparecer um sorriso.

– Agora, SanoDji, você vai tocar a cabeça desse rapaz e se concentrar o máximo que puder em tornar-se parte desse corpo... No início irá doer muito, pois o corpo vai resistir bravamente a sua intrusão, mas não vai resistir por muito tempo porque o corpo não quer morrer e seu novo fio de prata servirá para isso. – Disse a Sombra.

– É seguro? Não tem dono? – Perguntou Jonas, preocupado.

– Nenhum dono... O corpo está completamente abandonado, garanto, tanto que os médicos já rifaram os órgãos dele e em três horas, ao amanhecer, virão fatiá-lo e dar esses órgãos a novos donos... A não ser que ocorra um milagre. Sim, um milagre chamado SanoDji... Entende?

– Quer dizer que depois disso terei que viver uma vida inteira?

– Não, quando cumprir sua missão eu mesmo cortarei o fio de prata e o levarei de volta... Pois eu o costurarei. Até lá estará preso a Terra, e não deseje falhar ou sequer fugir, não conseguirá... Estarei sempre por perto para lembrá-lo disso.

– Não se preocupe, não tentarei fugir.

– Tentará sim, pelo menos a carcaça tentará, pois terá duas semanas pra vencer o cérebro dela e a programação do espírito que a comandava antes... E essa será uma dura batalha.

– Está bem, que assim seja.

– Que assim seja.



Imediatamente a Sombra toca a cabeça de Jonas. De início Jonas olha para os lados sem nada perceber, então aos poucos tudo começa a escurecer e ele começa a sentir-se com sono, uma sensação que não tinha há muito tempo. Então uma forte dor toma conta de seu corpo todo e têm a impressão de estar atravessando uma grossa parede de pedra através de um pequeno buraco, então a dor cessa. Ele olha para suas mãos e se vê negro, sente-se em um lugar estranho e ao mesmo tempo tem a impressão de que ele não deveria estar ali, que a sensação estranha é que é estranha. Então um turbilhão de imagens e memórias invade seu cérebro, e em frações de segundo algo estranho acontece, Jonas sente desaparecer aos poucos, suas memórias de quando vivo se esvaindo como a areia de uma ampulheta sendo mescladas e ao mesmo tempo substituídas pelas do corpo. Seu nome cede lugar a outro, como se Jonas fosse sequer uma lembrança. Seu nome era Fernando...