Revelações de Jonas: Missão
Primeira Fase da Missão
Choque
Choque
Fernando chorou até dormir. Acordou as sete horas da manhã do dia seguinte ainda no mesmo lugar onde desabara no dia anterior, suas mãos seguravam ainda o bilhete de Renato, arrancado de seu caderno. Súbito, Fernando se levanta e corre até a lata de lixo, procura por alguns segundos e encontra novamente o papel que fora o pivô de sua briga. Por um segundo pensa em rasgá-lo e jogar seus pedaços pela janela, mas recua e muda sua opinião. Imediatamente Fernando se levanta, corre para o banheiro e em menos de quinze minutos está na portaria de seu prédio com banho tomado, de roupas limpas e com alguns trocados no bolso além da misteriosa folha de caderno.
– Bom dia. – Diz seu porteiro, vendo Fernando sair do elevador.
– Bom dia... – Responde Fernando. – Me diz uma coisa, você conhece algum pai-de-santo bom?
– Por causa daquelas coisas estranhas? – Indaga o bom homem, enquanto pega dentro do bolso uma pequena agenda.
– É, quero ver se uma sessão de descarrego funciona... Acredita que Renato foi embora ontem?
– Acredito, menino, eu o vi saindo do elevador chorando. A briga foi feia, heim?
– Nem me fale...
O bom homem entrega a Fernando um telefone e um endereço no centro onde fica o pai-de-santo indicado. Com a convicção renovada, e provavelmente uma percepção de "nada a perder" inerente, Fernando guarda o endereço consigo e desce a Rua Siqueira Campos em direção do metrô. Em poucos minutos ele salta na Estação Uruguaiana e desce a Rua Senhor dos Passos até a indicação dada por seu porteiro. Ao chegar, dá-se conta que precisaria somente do nome da rua, pois um jovem vestindo um imenso cartaz anuncia exatamente esse endereço. Fernando pega uma propaganda do jovem e ruma até seu destino.
O pai-de-santo se localiza exatamente no segundo andar de um sobrado localizado na esquina da Rua Senhor dos Passos com a Rua Conceição, no sentido da Av. Presidente Vargas. A entrada é até mascarada pelos produtos vendidos pelas lojas do local, o qual somente se procurando seria possível encontrar algo. Fernando sobe as escadas de madeira velha do sobrado até seu segundo andar, onde logo nos últimos degraus suas narinas são tomadas pelo odor forte de algum incenso vagabundo. Segurando a tosse, Fernando chega até uma pequena porta velha com apenas uma folha de papel colada na porta com os dizeres "Estamos Aberto" impressos. Fernando abre a porta com certo receio, esperando realmente encontrar um charlatão, e suas suspeitas começam a se confirmar.
A sala do vidente é pequena, medindo pelo menos quatro metros quadrados. As paredes são cobertas por cortinas vermelhas, dando a impressão da sala ser menor do que é, e a iluminação do local, também vermelha, faz doer a vista. No meio desse ambiente existe uma mesa comprida, que divide o local em dois ambientes. Do lado onde Fernando está, há apenas um banco de visitas e uma cadeira para os consultados colocada em frente a mesa. Do outro extremo, uma poltrona de veludo vermelho. A mesa é forrada por um pano lembrando tapeçaria indiana, e sobre este têm diversos artefatos espalhados, desde tabuleiro de orixás à cartas de tarô e mesmo uma bola de cristal com iluminação especial repousa nessa mesa. Uma música baixinha de rituais afro-brasileiros completa a ambientação, que só não é um forno porque aquele local tem ar condicionado. "Estou enrolado.", pensa Fernando, enquanto se senta na cadeira de consulta.
Imediatamente, como se combinado, uma fumaça branca toma o local e quando essa abaixa o pai-de-santo está sentado em sua poltrona, segurando uma garrafa de cachaça na mão direita e um charuto na mão esquerda. É um homem gordo aparentando pelo menos quarenta anos e pele branca. Veste-se a caráter, como se fosse uma baiana de Olinda. Ele parece sério e ao mesmo tempo completamente ridículo. A luz ambiente dá a ele uma aparência malévola, que provavelmente se manifesta quando ele cobra a consulta.
– Problemas de amor? – Pergunta o homem, colocando a garrafa de cachaça na mesa, e pegando em seguida uma caixa de fósforos, mas ainda sem acender o charuto. – Dinheiro?
– Nada disso. – Respondeu Fernando. – É que tem acontecido algumas coisas...
– Não precisa dizer! – Berrou o homem, dando um susto em Fernando. – Oxalá Berimbau Coxequelê! Iêlele maracatum baobalê! Pai Damião de Ogum tudo sabe, tudo vê! Pai Damião pode ver que fizeram trabalho pra você! Trabalho dos maus!
– ... – Observou Fernando, sem nada dizer e achando até graça da atitude do homem.
– Se ele não fosse um completo charlatão até poderia te ajudar. – Disse o homem, mudando o tom de voz e ficando completamente estático, ao mesmo tempo em que a luz se apagou, deixando ambos numa escuridão quase completa, não fosse uma luz tênue que vinha atravessando as janelas.. – SanoDji, você dá muito trabalho...
Ao escutar e reconhecer a voz, Fernando levou um susto e quase caiu da cadeira. Pela terceira vez escutava aquele nome, SanoDji, e dessa vez de uma pessoa que até segundos atrás apenas era mais um dos muitos charlatões que existem. O pai-de-santo, no entanto, se posicionou de modo mais confortável na cadeira, e menos exuberante, dando a ele um tom de seriedade que até segundos atrás não existiam. O que mais espantavam Fernando, era uma estranha sensação de tranqüilidade que lhe tomava a mente, como se estivesse vendo um velho amigo.
– Você realmente é muito devagar, SanoDji. – Afirmou o homem. – Ao menos não jogou fora a carta que te mandei...
– Quem? – Indagou Fernando, mas sabendo que no fundo de sua alma, sabia a resposta.
– Você sabe, eu sei que você sabe, por isso vou pular essa etapa da mensagem, mesmo porque não sei por quanto tempo vou ficar nesse idiota até que alguém se dê o trabalho de intervir...
– O que você deseja de mim?
– Que cumpra o serviço para o qual te contratei, ou morra sem cumprir... Entenda, era para nesse exato momento seus pedaços estarem freqüentando pelo menos 10 felizes receptores, mas o "milagre" – Disse o homem, dando ênfase a milagre. – de estar vivo, custou a vida de pelo menos cinco pessoas...
– Como assim?
– Entenda, você morreu. Aliás, esse corpo ESTÁ morto, acredito que os exames neurológicos tenham sido bem claros. Se está vivo, é porque eu o mantive assim e coloquei algo para mantê-lo assim. Eu sei que é difícil aceitar isso e que não vai acreditar nisso, portanto vou te dar uma prova...
Imediatamente Fernando sentiu-se tonto e seus olhos viraram. Tudo a sua volta ficou turvo, e aos poucos sua consciência se foi. De repente se viu em um desfiladeiro vermelho sangue, onde um vulto negro estava diante dele, que ele sabia ser a Sombra. Ao longe via um reflexo de si mesmo, sentado sobre uma pedra. Seu reflexo chorava copiosamente e vez por outra olhava Fernando com pesar. Nesse momento Fernando se deu conta que seus braços estavam mais magros e brancos, e de repente teve a certeza de se chamar Jonas.
– Seja bem vindo a seu lar. – Disse a Sombra.
– Meu lar? Sim! Eu me lembro! – Berrou Jonas, dando-se conta de si mesmo. – Porque entre tantos corpos na terra foi escolher justamente uma bicha?
– Espíritos não têm sexo. – Respondeu o rapaz negro, que segundos atrás era considerado apenas um reflexo. – E não me tome por bicha, ou qualquer termo pejorativo, o que tenho pelo Renato é puro e sublime amor. Amor esse que enfraqueceu por sua causa! – Nesse momento o jovem negro levantou-se com raiva e fez menção de atacar Jonas, mas acalmou-se em seguida e sentou-se novamente.
– Quem é esse? – Perguntou Jonas a Sombra.
– Fernando, quem mais poderia ser? – Respondeu a Sombra, de imediato. – É o legítimo dono do corpo ao qual possuiu quando ele julgou que sua missão na Terra estivesse cumprida.
– E qual era sua missão? – Indagou Jonas.
– Salvar dez vidas. – Afirmou a Sombra, seca e com certa satisfação na voz em dizer tal coisa. – Fernando foi enviado a terra para morrer e ajudar pessoas naquilo que chamam de doação de orgãos. O suposto milagre interrompeu a missão de modo ainda superável, pelo menos se no final de minha missão ainda existir algo a ser doado...
– Que missão é essa? – Perguntou Jonas, vendo que depois do que a Sombra dissera, o espiríto Fernando partira, deixando-os a sós.
– Vou te explicar...
Albano despertou com o rádio nextel de Regina apitando nervoso sobre seu criado-mudo. Sem dar nenhum movimento brusco, Albano permaneceu fingindo que dormia para escutar. Regina se levantou de sua cama, reclamou do horário, pois ainda eram apenas quatro e meia da manhã, e rapidamente foi até a varanda do quarto de Albano para evitar que escutasse algo, pois para terem a audácia de incomodá-la naquele horário, coisa boa não seria. Albano a seguiu com o olhar, aproveitando-se que a escuridão da noite lhe dava tal subterfúgio. Observou Regina andar de um lado para o outro da varanda discutindo de forma áspera com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Passados menos de dois minutos, Regina voltou para o quarto e começou a falar com Albano ao mesmo tempo em que se vestia.
– Pare de fingir dormir, temos problemas. – Disse Regina, enquanto colocava sua calcinha.
– Que tipo? – Perguntou Albano, fingindo estar acabando de acordar.
– Sua missão não foi um sucesso total, parece que você deixou algo escapar. – Sentenciou Regina, colocando agora seu sutiã.
– Que tipo de algo? – Indagou Albano, quase deixando Tirolez assumir o diálogo.
– Um de nossos agentes está com a edição matutina do jornal de hoje com a cobertura do nosso serviço, e ao que parece testemunhas afirmaram que além de você, mais gente saiu daquele lugar com vida.
– Isso pode ser corrigido... Só gostaria de saber como escaparam.
– Problema seu, estou voltando para a sede agora, devo te ligar para passar essa mesma notícia.
Regina terminou de se vestir ao final da frase e deu um beijo provocante em Albano, deixando-o propositalmente excitado. Sem dar atenção a situação que criou, Regina pegou sua bolsa, seu nextel e saiu do apartamento de Albano. "Divirta-se sozinho.", provocou, batendo a porta com força. Albano imediatamente foi para o chuveiro e começou a tomar um calmante banho gelado, com o objetivo de esfriar ambas as cabeças. Uma pela provocação, e outra pela preocupação com relação a falha. Tirolez não admitia erros, e estava ansioso para saber quem eram seus novos alvos...
Muitas horas depois Fernando acorda. Está com uma profunda dor de cabeça e caído no meio da Praça Tiradentes com apenas a roupa do corpo, seus documentos, uma garrafa de cachaça vazia na mão e dinheiro suficiente apenas para ir embora. Pelo cheiro que sentia nele mesmo, provavelmente bebera muito, mas não se lembrava nem quando nem como isso acontecera. Por algum milagre do acaso, o dinheiro de Fernando estava intacto e junto as suas notas tinha a propaganda do vidente, quando pegou o papel levou um susto. Nele estava escrito um recado da Sombra, dizendo "desculpe o estado atual... não resisti.", e em seguida as ordens que Fernando deveria cumprir até o final daquele dia. As palavras finais da Sombra naquele local inóspito ainda martelavam em sua cabeça...
– ...Não se esqueça de ligar para esse número que está no seu bilhete. – Disse a Sombra. – De preferência, faça isso quando acordar e estiver preparado.
– Entendi, mas porque é tão importante assim ser hoje?
– Essa ligação é simplesmente a alma da missão, sem ela está tudo perdido... E não tolerarei falhas. – Instruiu a Sombra.
– E com quem falarei?
– Não se preocupe, quando tiver entrado em contato com eles, nos comunicaremos em seus sonhos... A partir de agora você dormirá para estar aqui. E lembre-se que precisará colocar em prática o que Daik-Haniah lhe ensinou.
– Lutar?
– Não, a manifestar a energia dos emplumados, a que eles dizem ser única...
– Precisarei? Eu não lembro se consegui fazer...
– Conseguiu por pouco tempo, e espero que consiga novamente, caso contrário terá problemas... E lembre-se, você é SanoDji, não é Jonas e muito menos é Fernando...
Além desse pequeno diálogo, Fernando lembrava-se apenas de coisas sem nexo, como se somente essas coisas específicas fossem importante. Apesar da recomendação da Sombra de realizar a ligação ao despertar, Fernando sabia que estava maltrapilho demais para causar qualquer espécie de boa impressão a quem quer que o visse naquele momento, portanto, retornaria em casa e colocaria trajes dignos. Ao menos sua partida repentina do prédio, mais cedo, seria justificada pela "depressão pós-toco", e ninguém desconfiaria de nada. E dado o preconceito dos vizinhos, ninguém sequer se importaria. Pensando nisso, Fernando seguiu caminho para o metrô e foi para casa usando o único dinheiro que tinha. Em menos de duas horas teria trocado de roupa e estaria voltando novamente para o centro da cidade.
Eram uma da tarde do dia 22 de maio, o dia seguinte a terrível discussão entre Fernando e Renato. Renato estava completamente transtornado com o comportamento de Fernando. Além de toda aquela confusão envolvendo as loucuras dele, agora Renato parecia partilhar delas, era demais até mesmo considerada toda a história de ambos. Uma coisa era ir contra o mundo, outra muito diferente era ir contra si próprio, e as atitudes de Fernando eram adversas demais para que Renato simplesmente ignorasse ou relevasse. Mesmo assim, o conteúdo da carta ainda doía um pouco no coração de Renato. Apesar de tudo que escrevera ali, no fundo não desejava abandoná-lo, mas ao mesmo tempo algo lhe dizia quase que gritando que devia fugir o quanto antes de perto de seu namorado. “Fernando não é mais aquele que amou”, dizia uma voz fraca em seus ouvidos na medida em que os minutos passavam.
“Tudo que preciso agora é uma viagem”, dizia a si mesmo enquanto observava com certa mágoa o bilhete de avião comprado na noite anterior com destino à Amsterdã, na Holanda. O avião partiria somente às oito horas da noite, mas mesmo assim ele chegara ali ainda no dia anterior e passara o dia e a noite inteiros vagando pelo Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, procurando clarear a mente. A única coisa que conseguiu foi pensar mais no assunto. E, finalmente, quando faltavam menos de seis horas para o check-in, Renato tomou a decisão mais importante de sua vida, voltar para o apartamento e conversar com Fernando uma última vez, mesmo que fosse para dizer adeus.
Tirolez estava controlando os passos de Albano desde que Regina lhe informara sobre suas duas falhas que ainda falavam e corriam. Estava realmente ansioso por instruções em seu quarto, mas também tinha certeza que enquanto não tivesse todas as informações necessárias nada poderia fazer a não ser aguardar. E Tirolez era impaciente demais. Regina saíra de seu apartamento há apenas quinze minutos, com destino ao escritório do Centro, por volta do início da hora do rush, mas mesmo assim ele dizia a si mesmo que ela estava atrasada. Para Tirolez cada segundo que passava era um risco que aumentava. Meia hora depois, de repente, seu telefone tocou e Tirolez o atendeu tão rápido que sequer o aparelho teve tempo de complementar seu primeiro toque.
– Tiro... Albano falando. – Disse, deixando Albano se libertar para dialogar, pois o uso das palavras era com Albano, não com Tirolez.
– Não deu tempo nem de dar o toque... Fique calmo, agente. – Disse a voz de Regina, fria.
– Estou calmo.
– Percebo, e o som do telefone rachando por causa da pressão de sua mão sobre ele é apenas chiado... – Discordou a mulher, escutando perfeitamente bem o som do plástico sendo quase fragmentado. – Se continuar com esse derramamento de hormônios vamos precisar de outro telefone e de outra ligação, você quer isso?
– Não, continue senhora. – Respondeu Albano, imediatamente tomando todo o controle de Tirolez e passando a tocar no telefone de maneira mais delicada que uma moça com frescura.
– Bem, estamos enviado para seu Pocket Pc, via GSM, uma redução da capa e da matéria de hoje do jornal que falou sobre os sobreviventes e anexo a essas, o endereço dos dois sobreviventes, para sua sorte moram juntos.
– Universitários?
– Não, namorados.
Albano respirou fundo e silenciou, sem responder nada, não era exatamente o tipo de serviço que mais lhe agradava. Não que sentisse alguma espécie de piedade de casais, mas geralmente suas súplicas eram ridículas e tinham o péssimo hábito de demorar a morrer, o que obrigava Tirolez sempre a desperdiçar pelo menos dez balas na cabeça de cada.
– Creio que os alvos lhe agradaram... – Comentou Regina. – Sinta-se feliz, pois todos aqui curtem matar minorias, e você vai fazer isso do jeito que mais gosta, sozinho.
– Não existem minorias, existem apenas os vivos, mortos e os mortos por mim. – Falou Albano, revoltado em seu sentimento ser confundido com reles preconceito. – Você sabe que não ligo pra essas coisas.
– Eu sei apenas que você tem dois alvos, apresse-se somente e deixe-me livre de seus pensamentos.
Regina desligou o telefone. Albano não se importava mais com essa delicadeza dela, pois sabia que a Organização o mandaria matá-la se soubessem do envolvimento de ambos. E Tirolez obedeceria qualquer ordem vinda dos superiores, e se ordenassem até se deliciaria com a morte de Regina, independentemente de qualquer sentimento que nutrisse por ela. Esse era o modo de vida do soldado, e seu único mote, o qual levaria para o túmulo.
Os minutos seguintes foram de mais tensão para Albano, até que finalmente seu Pocket PC apitou e finalmente a mensagem tão esperada chegou. Eram dois arquivos de imagem de tamanho considerável e agregado a ele tinha um pequeno arquivo de texto contendo o endereço de ambos e seus nomes completos. Por algum motivo que somente Tirolez e Albano podiam entender, os nomes de ambos os sobreviventes abriram um sorriso no cruel assassino, Renato e Fernando. Seria até normal tal sorriso em outros assassinos, se ao menos ele sorrisse, mas pelo menos não tinha testemunhas de seu raro e, por sinal, único momento de estranha satisfação.
– Bom dia. – Diz seu porteiro, vendo Fernando sair do elevador.
– Bom dia... – Responde Fernando. – Me diz uma coisa, você conhece algum pai-de-santo bom?
– Por causa daquelas coisas estranhas? – Indaga o bom homem, enquanto pega dentro do bolso uma pequena agenda.
– É, quero ver se uma sessão de descarrego funciona... Acredita que Renato foi embora ontem?
– Acredito, menino, eu o vi saindo do elevador chorando. A briga foi feia, heim?
– Nem me fale...
O bom homem entrega a Fernando um telefone e um endereço no centro onde fica o pai-de-santo indicado. Com a convicção renovada, e provavelmente uma percepção de "nada a perder" inerente, Fernando guarda o endereço consigo e desce a Rua Siqueira Campos em direção do metrô. Em poucos minutos ele salta na Estação Uruguaiana e desce a Rua Senhor dos Passos até a indicação dada por seu porteiro. Ao chegar, dá-se conta que precisaria somente do nome da rua, pois um jovem vestindo um imenso cartaz anuncia exatamente esse endereço. Fernando pega uma propaganda do jovem e ruma até seu destino.
O pai-de-santo se localiza exatamente no segundo andar de um sobrado localizado na esquina da Rua Senhor dos Passos com a Rua Conceição, no sentido da Av. Presidente Vargas. A entrada é até mascarada pelos produtos vendidos pelas lojas do local, o qual somente se procurando seria possível encontrar algo. Fernando sobe as escadas de madeira velha do sobrado até seu segundo andar, onde logo nos últimos degraus suas narinas são tomadas pelo odor forte de algum incenso vagabundo. Segurando a tosse, Fernando chega até uma pequena porta velha com apenas uma folha de papel colada na porta com os dizeres "Estamos Aberto" impressos. Fernando abre a porta com certo receio, esperando realmente encontrar um charlatão, e suas suspeitas começam a se confirmar.
A sala do vidente é pequena, medindo pelo menos quatro metros quadrados. As paredes são cobertas por cortinas vermelhas, dando a impressão da sala ser menor do que é, e a iluminação do local, também vermelha, faz doer a vista. No meio desse ambiente existe uma mesa comprida, que divide o local em dois ambientes. Do lado onde Fernando está, há apenas um banco de visitas e uma cadeira para os consultados colocada em frente a mesa. Do outro extremo, uma poltrona de veludo vermelho. A mesa é forrada por um pano lembrando tapeçaria indiana, e sobre este têm diversos artefatos espalhados, desde tabuleiro de orixás à cartas de tarô e mesmo uma bola de cristal com iluminação especial repousa nessa mesa. Uma música baixinha de rituais afro-brasileiros completa a ambientação, que só não é um forno porque aquele local tem ar condicionado. "Estou enrolado.", pensa Fernando, enquanto se senta na cadeira de consulta.
Imediatamente, como se combinado, uma fumaça branca toma o local e quando essa abaixa o pai-de-santo está sentado em sua poltrona, segurando uma garrafa de cachaça na mão direita e um charuto na mão esquerda. É um homem gordo aparentando pelo menos quarenta anos e pele branca. Veste-se a caráter, como se fosse uma baiana de Olinda. Ele parece sério e ao mesmo tempo completamente ridículo. A luz ambiente dá a ele uma aparência malévola, que provavelmente se manifesta quando ele cobra a consulta.
– Problemas de amor? – Pergunta o homem, colocando a garrafa de cachaça na mesa, e pegando em seguida uma caixa de fósforos, mas ainda sem acender o charuto. – Dinheiro?
– Nada disso. – Respondeu Fernando. – É que tem acontecido algumas coisas...
– Não precisa dizer! – Berrou o homem, dando um susto em Fernando. – Oxalá Berimbau Coxequelê! Iêlele maracatum baobalê! Pai Damião de Ogum tudo sabe, tudo vê! Pai Damião pode ver que fizeram trabalho pra você! Trabalho dos maus!
– ... – Observou Fernando, sem nada dizer e achando até graça da atitude do homem.
– Se ele não fosse um completo charlatão até poderia te ajudar. – Disse o homem, mudando o tom de voz e ficando completamente estático, ao mesmo tempo em que a luz se apagou, deixando ambos numa escuridão quase completa, não fosse uma luz tênue que vinha atravessando as janelas.. – SanoDji, você dá muito trabalho...
Ao escutar e reconhecer a voz, Fernando levou um susto e quase caiu da cadeira. Pela terceira vez escutava aquele nome, SanoDji, e dessa vez de uma pessoa que até segundos atrás apenas era mais um dos muitos charlatões que existem. O pai-de-santo, no entanto, se posicionou de modo mais confortável na cadeira, e menos exuberante, dando a ele um tom de seriedade que até segundos atrás não existiam. O que mais espantavam Fernando, era uma estranha sensação de tranqüilidade que lhe tomava a mente, como se estivesse vendo um velho amigo.
– Você realmente é muito devagar, SanoDji. – Afirmou o homem. – Ao menos não jogou fora a carta que te mandei...
– Quem? – Indagou Fernando, mas sabendo que no fundo de sua alma, sabia a resposta.
– Você sabe, eu sei que você sabe, por isso vou pular essa etapa da mensagem, mesmo porque não sei por quanto tempo vou ficar nesse idiota até que alguém se dê o trabalho de intervir...
– O que você deseja de mim?
– Que cumpra o serviço para o qual te contratei, ou morra sem cumprir... Entenda, era para nesse exato momento seus pedaços estarem freqüentando pelo menos 10 felizes receptores, mas o "milagre" – Disse o homem, dando ênfase a milagre. – de estar vivo, custou a vida de pelo menos cinco pessoas...
– Como assim?
– Entenda, você morreu. Aliás, esse corpo ESTÁ morto, acredito que os exames neurológicos tenham sido bem claros. Se está vivo, é porque eu o mantive assim e coloquei algo para mantê-lo assim. Eu sei que é difícil aceitar isso e que não vai acreditar nisso, portanto vou te dar uma prova...
Imediatamente Fernando sentiu-se tonto e seus olhos viraram. Tudo a sua volta ficou turvo, e aos poucos sua consciência se foi. De repente se viu em um desfiladeiro vermelho sangue, onde um vulto negro estava diante dele, que ele sabia ser a Sombra. Ao longe via um reflexo de si mesmo, sentado sobre uma pedra. Seu reflexo chorava copiosamente e vez por outra olhava Fernando com pesar. Nesse momento Fernando se deu conta que seus braços estavam mais magros e brancos, e de repente teve a certeza de se chamar Jonas.
– Seja bem vindo a seu lar. – Disse a Sombra.
– Meu lar? Sim! Eu me lembro! – Berrou Jonas, dando-se conta de si mesmo. – Porque entre tantos corpos na terra foi escolher justamente uma bicha?
– Espíritos não têm sexo. – Respondeu o rapaz negro, que segundos atrás era considerado apenas um reflexo. – E não me tome por bicha, ou qualquer termo pejorativo, o que tenho pelo Renato é puro e sublime amor. Amor esse que enfraqueceu por sua causa! – Nesse momento o jovem negro levantou-se com raiva e fez menção de atacar Jonas, mas acalmou-se em seguida e sentou-se novamente.
– Quem é esse? – Perguntou Jonas a Sombra.
– Fernando, quem mais poderia ser? – Respondeu a Sombra, de imediato. – É o legítimo dono do corpo ao qual possuiu quando ele julgou que sua missão na Terra estivesse cumprida.
– E qual era sua missão? – Indagou Jonas.
– Salvar dez vidas. – Afirmou a Sombra, seca e com certa satisfação na voz em dizer tal coisa. – Fernando foi enviado a terra para morrer e ajudar pessoas naquilo que chamam de doação de orgãos. O suposto milagre interrompeu a missão de modo ainda superável, pelo menos se no final de minha missão ainda existir algo a ser doado...
– Que missão é essa? – Perguntou Jonas, vendo que depois do que a Sombra dissera, o espiríto Fernando partira, deixando-os a sós.
– Vou te explicar...
Albano despertou com o rádio nextel de Regina apitando nervoso sobre seu criado-mudo. Sem dar nenhum movimento brusco, Albano permaneceu fingindo que dormia para escutar. Regina se levantou de sua cama, reclamou do horário, pois ainda eram apenas quatro e meia da manhã, e rapidamente foi até a varanda do quarto de Albano para evitar que escutasse algo, pois para terem a audácia de incomodá-la naquele horário, coisa boa não seria. Albano a seguiu com o olhar, aproveitando-se que a escuridão da noite lhe dava tal subterfúgio. Observou Regina andar de um lado para o outro da varanda discutindo de forma áspera com quem quer que estivesse do outro lado da linha. Passados menos de dois minutos, Regina voltou para o quarto e começou a falar com Albano ao mesmo tempo em que se vestia.
– Pare de fingir dormir, temos problemas. – Disse Regina, enquanto colocava sua calcinha.
– Que tipo? – Perguntou Albano, fingindo estar acabando de acordar.
– Sua missão não foi um sucesso total, parece que você deixou algo escapar. – Sentenciou Regina, colocando agora seu sutiã.
– Que tipo de algo? – Indagou Albano, quase deixando Tirolez assumir o diálogo.
– Um de nossos agentes está com a edição matutina do jornal de hoje com a cobertura do nosso serviço, e ao que parece testemunhas afirmaram que além de você, mais gente saiu daquele lugar com vida.
– Isso pode ser corrigido... Só gostaria de saber como escaparam.
– Problema seu, estou voltando para a sede agora, devo te ligar para passar essa mesma notícia.
Regina terminou de se vestir ao final da frase e deu um beijo provocante em Albano, deixando-o propositalmente excitado. Sem dar atenção a situação que criou, Regina pegou sua bolsa, seu nextel e saiu do apartamento de Albano. "Divirta-se sozinho.", provocou, batendo a porta com força. Albano imediatamente foi para o chuveiro e começou a tomar um calmante banho gelado, com o objetivo de esfriar ambas as cabeças. Uma pela provocação, e outra pela preocupação com relação a falha. Tirolez não admitia erros, e estava ansioso para saber quem eram seus novos alvos...
Muitas horas depois Fernando acorda. Está com uma profunda dor de cabeça e caído no meio da Praça Tiradentes com apenas a roupa do corpo, seus documentos, uma garrafa de cachaça vazia na mão e dinheiro suficiente apenas para ir embora. Pelo cheiro que sentia nele mesmo, provavelmente bebera muito, mas não se lembrava nem quando nem como isso acontecera. Por algum milagre do acaso, o dinheiro de Fernando estava intacto e junto as suas notas tinha a propaganda do vidente, quando pegou o papel levou um susto. Nele estava escrito um recado da Sombra, dizendo "desculpe o estado atual... não resisti.", e em seguida as ordens que Fernando deveria cumprir até o final daquele dia. As palavras finais da Sombra naquele local inóspito ainda martelavam em sua cabeça...
– ...Não se esqueça de ligar para esse número que está no seu bilhete. – Disse a Sombra. – De preferência, faça isso quando acordar e estiver preparado.
– Entendi, mas porque é tão importante assim ser hoje?
– Essa ligação é simplesmente a alma da missão, sem ela está tudo perdido... E não tolerarei falhas. – Instruiu a Sombra.
– E com quem falarei?
– Não se preocupe, quando tiver entrado em contato com eles, nos comunicaremos em seus sonhos... A partir de agora você dormirá para estar aqui. E lembre-se que precisará colocar em prática o que Daik-Haniah lhe ensinou.
– Lutar?
– Não, a manifestar a energia dos emplumados, a que eles dizem ser única...
– Precisarei? Eu não lembro se consegui fazer...
– Conseguiu por pouco tempo, e espero que consiga novamente, caso contrário terá problemas... E lembre-se, você é SanoDji, não é Jonas e muito menos é Fernando...
Além desse pequeno diálogo, Fernando lembrava-se apenas de coisas sem nexo, como se somente essas coisas específicas fossem importante. Apesar da recomendação da Sombra de realizar a ligação ao despertar, Fernando sabia que estava maltrapilho demais para causar qualquer espécie de boa impressão a quem quer que o visse naquele momento, portanto, retornaria em casa e colocaria trajes dignos. Ao menos sua partida repentina do prédio, mais cedo, seria justificada pela "depressão pós-toco", e ninguém desconfiaria de nada. E dado o preconceito dos vizinhos, ninguém sequer se importaria. Pensando nisso, Fernando seguiu caminho para o metrô e foi para casa usando o único dinheiro que tinha. Em menos de duas horas teria trocado de roupa e estaria voltando novamente para o centro da cidade.
Eram uma da tarde do dia 22 de maio, o dia seguinte a terrível discussão entre Fernando e Renato. Renato estava completamente transtornado com o comportamento de Fernando. Além de toda aquela confusão envolvendo as loucuras dele, agora Renato parecia partilhar delas, era demais até mesmo considerada toda a história de ambos. Uma coisa era ir contra o mundo, outra muito diferente era ir contra si próprio, e as atitudes de Fernando eram adversas demais para que Renato simplesmente ignorasse ou relevasse. Mesmo assim, o conteúdo da carta ainda doía um pouco no coração de Renato. Apesar de tudo que escrevera ali, no fundo não desejava abandoná-lo, mas ao mesmo tempo algo lhe dizia quase que gritando que devia fugir o quanto antes de perto de seu namorado. “Fernando não é mais aquele que amou”, dizia uma voz fraca em seus ouvidos na medida em que os minutos passavam.
“Tudo que preciso agora é uma viagem”, dizia a si mesmo enquanto observava com certa mágoa o bilhete de avião comprado na noite anterior com destino à Amsterdã, na Holanda. O avião partiria somente às oito horas da noite, mas mesmo assim ele chegara ali ainda no dia anterior e passara o dia e a noite inteiros vagando pelo Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, procurando clarear a mente. A única coisa que conseguiu foi pensar mais no assunto. E, finalmente, quando faltavam menos de seis horas para o check-in, Renato tomou a decisão mais importante de sua vida, voltar para o apartamento e conversar com Fernando uma última vez, mesmo que fosse para dizer adeus.
Tirolez estava controlando os passos de Albano desde que Regina lhe informara sobre suas duas falhas que ainda falavam e corriam. Estava realmente ansioso por instruções em seu quarto, mas também tinha certeza que enquanto não tivesse todas as informações necessárias nada poderia fazer a não ser aguardar. E Tirolez era impaciente demais. Regina saíra de seu apartamento há apenas quinze minutos, com destino ao escritório do Centro, por volta do início da hora do rush, mas mesmo assim ele dizia a si mesmo que ela estava atrasada. Para Tirolez cada segundo que passava era um risco que aumentava. Meia hora depois, de repente, seu telefone tocou e Tirolez o atendeu tão rápido que sequer o aparelho teve tempo de complementar seu primeiro toque.
– Tiro... Albano falando. – Disse, deixando Albano se libertar para dialogar, pois o uso das palavras era com Albano, não com Tirolez.
– Não deu tempo nem de dar o toque... Fique calmo, agente. – Disse a voz de Regina, fria.
– Estou calmo.
– Percebo, e o som do telefone rachando por causa da pressão de sua mão sobre ele é apenas chiado... – Discordou a mulher, escutando perfeitamente bem o som do plástico sendo quase fragmentado. – Se continuar com esse derramamento de hormônios vamos precisar de outro telefone e de outra ligação, você quer isso?
– Não, continue senhora. – Respondeu Albano, imediatamente tomando todo o controle de Tirolez e passando a tocar no telefone de maneira mais delicada que uma moça com frescura.
– Bem, estamos enviado para seu Pocket Pc, via GSM, uma redução da capa e da matéria de hoje do jornal que falou sobre os sobreviventes e anexo a essas, o endereço dos dois sobreviventes, para sua sorte moram juntos.
– Universitários?
– Não, namorados.
Albano respirou fundo e silenciou, sem responder nada, não era exatamente o tipo de serviço que mais lhe agradava. Não que sentisse alguma espécie de piedade de casais, mas geralmente suas súplicas eram ridículas e tinham o péssimo hábito de demorar a morrer, o que obrigava Tirolez sempre a desperdiçar pelo menos dez balas na cabeça de cada.
– Creio que os alvos lhe agradaram... – Comentou Regina. – Sinta-se feliz, pois todos aqui curtem matar minorias, e você vai fazer isso do jeito que mais gosta, sozinho.
– Não existem minorias, existem apenas os vivos, mortos e os mortos por mim. – Falou Albano, revoltado em seu sentimento ser confundido com reles preconceito. – Você sabe que não ligo pra essas coisas.
– Eu sei apenas que você tem dois alvos, apresse-se somente e deixe-me livre de seus pensamentos.
Regina desligou o telefone. Albano não se importava mais com essa delicadeza dela, pois sabia que a Organização o mandaria matá-la se soubessem do envolvimento de ambos. E Tirolez obedeceria qualquer ordem vinda dos superiores, e se ordenassem até se deliciaria com a morte de Regina, independentemente de qualquer sentimento que nutrisse por ela. Esse era o modo de vida do soldado, e seu único mote, o qual levaria para o túmulo.
Os minutos seguintes foram de mais tensão para Albano, até que finalmente seu Pocket PC apitou e finalmente a mensagem tão esperada chegou. Eram dois arquivos de imagem de tamanho considerável e agregado a ele tinha um pequeno arquivo de texto contendo o endereço de ambos e seus nomes completos. Por algum motivo que somente Tirolez e Albano podiam entender, os nomes de ambos os sobreviventes abriram um sorriso no cruel assassino, Renato e Fernando. Seria até normal tal sorriso em outros assassinos, se ao menos ele sorrisse, mas pelo menos não tinha testemunhas de seu raro e, por sinal, único momento de estranha satisfação.
Mais uma vez: Capa de Jornal... Será ele participante de Reality Show?
Albano estudou friamente todo o material e depois o apagou por completo. As regras da organização eram claras a respeito de destruição de arquivos, e por esses motivos raramente carregavam consigo papéis com instruções, ficando essas armazenadas em computadores de bolso com todo o aparato necessário e em memórias removíveis, que podiam facilmente serem descartadas e destruídas em caso de problemas. Segurança da Informação era uma das dez prioridades da Organização, a Segunda Prioridade, que para Albano era mais que isso, era uma lei inquebrável que nem a Lei da Gravidade.
De posse do material e dos endereços, Albano saiu de seu quarto e foi até outro cômodo de seu enorme apartamento, que apelidava sutilmente de “cozinha do inferno”. Se fosse para descrever o cômodo, poderíamos chamar com outro nome, simplesmente de sala de armas, mas seria extremamente ridículo simplificar tanto algo que de simples não tinha nem mesmo o dono. Era uma sala com as paredes cobertas pelas mais variadas e possíveis armas que se pudesse imaginar. Desde simples venenos a até mesmo as cobiçadas munições radioativas do exército americano (responsáveis por matar sobreviventes das guerras árabes até anos depois da guerra ter terminado), passando por revólveres enferrujados a até mesmo um pequeno kit de destruição em massa, composto por um lança míssil, uma bazuca descartável, outra reutilizável e um conjunto de disparadores de granadas. Albano naquela manhã não desejaria nada de complexo, apenas seria simples, trivial e cirúrgico, sem alardes. Faria com que tudo parecesse com a cobrança de uma dívida de drogas, coisa comum em Copacabana, ainda mais entre os da classe desses alvos.
Albano então selecionou o aparato necessário para seu novo serviço e foi até seu carro. Colocou tudo em seu compartimento tradicional e foi embora. Como era um dia quente e não desejava criar suspeitas, Albano abandonou seu tradicional visual escuro e vestiu-se como um turista tradicional, carregando consigo uma bolsa de couro onde colocaria eventuais necessidades se precisasse. O tempo para realizar tal coisa era curto, e ele precisava ser o mais discreto possível, pois o endereço ficava em uma das principais ruas de Copacabana, a Siqueira Campos. Ainda ponderava se esperaria o cair da noite para agir ou se optaria por fazer logo e ir embora. Como Albano estava com pressa, optou por fazer logo. Para tanto, passou o dia inteiro na frente do prédio, observando o movimento do local.
Por causa disso, observou o momento exato em que Fernando saiu correndo, ainda de manhã, a caminho do centro e seu retorno quando eram por volta de onze horas, completamente bêbado e imundo. Quando Albano estava se preparando para entrar no prédio, Fernando saiu novamente, bem vestido, limpo, e desceu a rua apressado em direção ao metrô, já por volta de onze e meia. Calculando que Fernando vá demorar, Albano opta por entrar no prédio e aguardar pelos dois pombinhos dentro do apartamento deles. Para tirar mais informações a respeito dos dois, assim que um dos moradores sai para passear com seu poodle, pouco antes do meio dia, Albano o segue e o aborda.
– Bom dia. – Fala Albano, vendo que sua aproximação causara certo espanto a pessoa e fizera o cachorro latir.
– Bom dia. – Responde a pessoa, um homem de pelo menos sessenta anos e aparência que dava a entender ter sido militar.
– O senhor poderia me dar uma informação? – Pergunta Albano, exercitando ao máximo seu lado social.
– Que tipo de informação?
– Gostaria de saber se Fernando e Renato moram nesse prédio...
– As bichas do penúltimo andar?
– Isso, eles mesmo.
– Já respondi... Se é como ele, meus pêsames.
– Não é isso... Eu estou a paisana para averiguar uma denúncia de atentado ao pudor aqui nesse prédio, e estou colhendo informação para processá-los.
– Porque não disse antes? Eu fui um dos autores da denúncia, vamos até meu apartamento que vamos conversar a respeito desses trastes.
Se Albano tivesse algum tipo de fé, agradeceria a Deus por ter colocado aquele homem em seu caminho. Bastaram poucas palavras de preconceito para o homem cair na sua lábia, e sem nem mesmo precisar dar sua tradicional carteirada. O homem odiava tanto os dois que até mesmo deixou Albano entrar em seu apartamento sem sequer verificar sua autenticidade. Com relativa facilidade, Albano passou pelo porteiro e foi direto para o penúltimo andar do prédio, sempre acompanhado pelo homem, que se chamava Alceu. Alceu levou-o até seu apartamento, o qual fez questão de mostrar que ficava do lado do apartamento dos dois rapazes. Albano marcou bem o número do apartamento e acompanhou o senhor Alceu até em casa. Era um apartamento típico de homens na idade dele, com móveis velhos e o odor característico de mofo.
Como Albano não queria estar ali, no mesmo momento em que Alceu trancou a porta, Albano pediu para ir ao banheiro. Alceu indicou a ele o local, e Albano entrou rápido. Era um banheiro perfeito para Albano, com uma enorme banheira, exatamente o que ele precisaria nos próximos minutos. De sua bolsa de couro, Albano sacou um frasco de sonífero e molhou uma toalha com ele. Sem que Alceu se desse conta, pois estava envolvido demais em seu próprio preconceito, Albano o agarrou e o fez dormir com o produto. O cachorro imediatamente começou a latir, mas foi silenciado por vários chutes de Albano.
Logo depois Albano pegou Alceu e o levou para dentro do banheiro. Pegou outros frascos dentro de sua bolsa e encheu a banheira. Quando a quantidade de água era suficiente para cobrir Alceu por completo, Albano esvaziou o conteúdo dos frascos na banheira e um odor ácido começou a invadir sua narina. Em seguida Albano vestiu duas grossas luvas de borracha e colocou o corpo de Alceu nesse estranho preparado. Imediatamente uma estranha reação química começou e a água começou a borbulhar com o toque do corpo de Alceu. O velho fez menção que acordaria com a dor, mas mal se mexeu foi desmaiado por um violento soco. Em seguida, Albano voltou a sala, pegou o cachorro e também o jogou naquele estranho líquido.
Enquanto esperava tudo terminar, Albano foi para a sala e ligou a televisão. Aproveitou para ver se tinha deixado alguma pista de sua presença, e mesmo sem achar nada fez uma ligação de seu celular para a Organização, avisando que provavelmente necessitaria de uma equipe de limpeza para eliminar as provas. Eram uma da tarde quando Albano considerou que já tivesse se passado tempo suficiente. Ele foi até o banheiro e viu que a mistura parara de borbulhar e havia assumido uma consistência pastosa. Com a luva de borracha, procurou pelo tampo do ralo e o abriu. Lentamente aquilo que até horas atrás eram dois corpos começou a descer vagarosamente em direção aos esgotos. Para eliminar odores ou manchas, Albano encheu a banheira duas vezes mais, até a borda e salpicou muitos produtos de limpeza para eliminar odores. Nada havia sobrado de Alceu e de seu cachorro que apenas mera lembrança, o restante descera ralo abaixo.
Depois disso Albano pegou seu kit de arrombamento de portas e sem muito trabalho invadiu a casa de Fernando e Renato. Colocou uma cadeira na janela e ficava o tempo todo sentado olhando para a rua e ao mesmo tempo para a porta da sala, e assim passou o tempo. Quando Albano já dava o dia como perdido, um táxi para em frente do prédio e dele sai seu segundo alvo, Renato. Sem dizer muita coisa, Albano se levanta e prepara uma nova dose de sonífero em outra toalha, e aguarda pela última vez...
Renato precisava dar um último adeus para Fernando, e daria a ele e a si próprio uma chance de se redimirem de suas discussões. Ele decide transferir sua viagem para o dia seguinte e pega um táxi na porta do aeroporto de volta para casa. Ainda eram duas da tarde, e independentemente do resultado da conversa, viajaria, com Fernando ou sem ele. Ao chegar a seu prédio, a primeira pessoa que vê no prédio é seu porteiro, que chama sempre de Severino, mesmo sem saber o nome real dele.
– Bom dia, Severino. – Diz Renato, cordial.
– Bom dia, filho. – Responde o bom homem, sem contraria o rapaz a respeito de seu nome, que na verdade é Emanuel.
– Sabe se o Fê está aí?
– Saiu agora a pouco, quase que você o pega aqui... Estão melhores? Ele saiu daqui hoje de manhã transtornado e voltou completamente doido.
– Doido?
– É, fedia a cachaça das brabas... Foi em casa, parece que tomou um banho e saiu, não foi encontrar contigo?
– Não... Bem, quando ele chegar vai ter uma surpresa, vou fazer um jantar para ele. Até mais, Severino!
Renato estranhou a narrativa do homem, e como Severino já dera versões estranhas a coisas simples, decidiu não se importar e foi direto a seu apartamento. Ao entrar estranhou a disposição de uma das cadeiras da sala, que estava próxima da janela, mas nem se importou muito. Reparou que Fernando passara ali rápido, como dito, e nem arrumara direito as roupas sujas que efetivamente fediam a bebida de baixa qualidade, deixando tudo amontoado de forma bagunçada no cesto de roupas sujas. Com carinho pegou as roupas e as colocou na máquina de lavar. De repente um braço forte o agarra pelo pescoço e outra mão enfia-lhe uma de suas toalhas no nariz. Renato até tenta algum tipo de esforço, mas é tarde demais, o sonífero começa a fazer efeito, e Renato apaga...
De posse do material e dos endereços, Albano saiu de seu quarto e foi até outro cômodo de seu enorme apartamento, que apelidava sutilmente de “cozinha do inferno”. Se fosse para descrever o cômodo, poderíamos chamar com outro nome, simplesmente de sala de armas, mas seria extremamente ridículo simplificar tanto algo que de simples não tinha nem mesmo o dono. Era uma sala com as paredes cobertas pelas mais variadas e possíveis armas que se pudesse imaginar. Desde simples venenos a até mesmo as cobiçadas munições radioativas do exército americano (responsáveis por matar sobreviventes das guerras árabes até anos depois da guerra ter terminado), passando por revólveres enferrujados a até mesmo um pequeno kit de destruição em massa, composto por um lança míssil, uma bazuca descartável, outra reutilizável e um conjunto de disparadores de granadas. Albano naquela manhã não desejaria nada de complexo, apenas seria simples, trivial e cirúrgico, sem alardes. Faria com que tudo parecesse com a cobrança de uma dívida de drogas, coisa comum em Copacabana, ainda mais entre os da classe desses alvos.
Albano então selecionou o aparato necessário para seu novo serviço e foi até seu carro. Colocou tudo em seu compartimento tradicional e foi embora. Como era um dia quente e não desejava criar suspeitas, Albano abandonou seu tradicional visual escuro e vestiu-se como um turista tradicional, carregando consigo uma bolsa de couro onde colocaria eventuais necessidades se precisasse. O tempo para realizar tal coisa era curto, e ele precisava ser o mais discreto possível, pois o endereço ficava em uma das principais ruas de Copacabana, a Siqueira Campos. Ainda ponderava se esperaria o cair da noite para agir ou se optaria por fazer logo e ir embora. Como Albano estava com pressa, optou por fazer logo. Para tanto, passou o dia inteiro na frente do prédio, observando o movimento do local.
Por causa disso, observou o momento exato em que Fernando saiu correndo, ainda de manhã, a caminho do centro e seu retorno quando eram por volta de onze horas, completamente bêbado e imundo. Quando Albano estava se preparando para entrar no prédio, Fernando saiu novamente, bem vestido, limpo, e desceu a rua apressado em direção ao metrô, já por volta de onze e meia. Calculando que Fernando vá demorar, Albano opta por entrar no prédio e aguardar pelos dois pombinhos dentro do apartamento deles. Para tirar mais informações a respeito dos dois, assim que um dos moradores sai para passear com seu poodle, pouco antes do meio dia, Albano o segue e o aborda.
– Bom dia. – Fala Albano, vendo que sua aproximação causara certo espanto a pessoa e fizera o cachorro latir.
– Bom dia. – Responde a pessoa, um homem de pelo menos sessenta anos e aparência que dava a entender ter sido militar.
– O senhor poderia me dar uma informação? – Pergunta Albano, exercitando ao máximo seu lado social.
– Que tipo de informação?
– Gostaria de saber se Fernando e Renato moram nesse prédio...
– As bichas do penúltimo andar?
– Isso, eles mesmo.
– Já respondi... Se é como ele, meus pêsames.
– Não é isso... Eu estou a paisana para averiguar uma denúncia de atentado ao pudor aqui nesse prédio, e estou colhendo informação para processá-los.
– Porque não disse antes? Eu fui um dos autores da denúncia, vamos até meu apartamento que vamos conversar a respeito desses trastes.
Se Albano tivesse algum tipo de fé, agradeceria a Deus por ter colocado aquele homem em seu caminho. Bastaram poucas palavras de preconceito para o homem cair na sua lábia, e sem nem mesmo precisar dar sua tradicional carteirada. O homem odiava tanto os dois que até mesmo deixou Albano entrar em seu apartamento sem sequer verificar sua autenticidade. Com relativa facilidade, Albano passou pelo porteiro e foi direto para o penúltimo andar do prédio, sempre acompanhado pelo homem, que se chamava Alceu. Alceu levou-o até seu apartamento, o qual fez questão de mostrar que ficava do lado do apartamento dos dois rapazes. Albano marcou bem o número do apartamento e acompanhou o senhor Alceu até em casa. Era um apartamento típico de homens na idade dele, com móveis velhos e o odor característico de mofo.
Como Albano não queria estar ali, no mesmo momento em que Alceu trancou a porta, Albano pediu para ir ao banheiro. Alceu indicou a ele o local, e Albano entrou rápido. Era um banheiro perfeito para Albano, com uma enorme banheira, exatamente o que ele precisaria nos próximos minutos. De sua bolsa de couro, Albano sacou um frasco de sonífero e molhou uma toalha com ele. Sem que Alceu se desse conta, pois estava envolvido demais em seu próprio preconceito, Albano o agarrou e o fez dormir com o produto. O cachorro imediatamente começou a latir, mas foi silenciado por vários chutes de Albano.
Logo depois Albano pegou Alceu e o levou para dentro do banheiro. Pegou outros frascos dentro de sua bolsa e encheu a banheira. Quando a quantidade de água era suficiente para cobrir Alceu por completo, Albano esvaziou o conteúdo dos frascos na banheira e um odor ácido começou a invadir sua narina. Em seguida Albano vestiu duas grossas luvas de borracha e colocou o corpo de Alceu nesse estranho preparado. Imediatamente uma estranha reação química começou e a água começou a borbulhar com o toque do corpo de Alceu. O velho fez menção que acordaria com a dor, mas mal se mexeu foi desmaiado por um violento soco. Em seguida, Albano voltou a sala, pegou o cachorro e também o jogou naquele estranho líquido.
Enquanto esperava tudo terminar, Albano foi para a sala e ligou a televisão. Aproveitou para ver se tinha deixado alguma pista de sua presença, e mesmo sem achar nada fez uma ligação de seu celular para a Organização, avisando que provavelmente necessitaria de uma equipe de limpeza para eliminar as provas. Eram uma da tarde quando Albano considerou que já tivesse se passado tempo suficiente. Ele foi até o banheiro e viu que a mistura parara de borbulhar e havia assumido uma consistência pastosa. Com a luva de borracha, procurou pelo tampo do ralo e o abriu. Lentamente aquilo que até horas atrás eram dois corpos começou a descer vagarosamente em direção aos esgotos. Para eliminar odores ou manchas, Albano encheu a banheira duas vezes mais, até a borda e salpicou muitos produtos de limpeza para eliminar odores. Nada havia sobrado de Alceu e de seu cachorro que apenas mera lembrança, o restante descera ralo abaixo.
Depois disso Albano pegou seu kit de arrombamento de portas e sem muito trabalho invadiu a casa de Fernando e Renato. Colocou uma cadeira na janela e ficava o tempo todo sentado olhando para a rua e ao mesmo tempo para a porta da sala, e assim passou o tempo. Quando Albano já dava o dia como perdido, um táxi para em frente do prédio e dele sai seu segundo alvo, Renato. Sem dizer muita coisa, Albano se levanta e prepara uma nova dose de sonífero em outra toalha, e aguarda pela última vez...
Renato precisava dar um último adeus para Fernando, e daria a ele e a si próprio uma chance de se redimirem de suas discussões. Ele decide transferir sua viagem para o dia seguinte e pega um táxi na porta do aeroporto de volta para casa. Ainda eram duas da tarde, e independentemente do resultado da conversa, viajaria, com Fernando ou sem ele. Ao chegar a seu prédio, a primeira pessoa que vê no prédio é seu porteiro, que chama sempre de Severino, mesmo sem saber o nome real dele.
– Bom dia, Severino. – Diz Renato, cordial.
– Bom dia, filho. – Responde o bom homem, sem contraria o rapaz a respeito de seu nome, que na verdade é Emanuel.
– Sabe se o Fê está aí?
– Saiu agora a pouco, quase que você o pega aqui... Estão melhores? Ele saiu daqui hoje de manhã transtornado e voltou completamente doido.
– Doido?
– É, fedia a cachaça das brabas... Foi em casa, parece que tomou um banho e saiu, não foi encontrar contigo?
– Não... Bem, quando ele chegar vai ter uma surpresa, vou fazer um jantar para ele. Até mais, Severino!
Renato estranhou a narrativa do homem, e como Severino já dera versões estranhas a coisas simples, decidiu não se importar e foi direto a seu apartamento. Ao entrar estranhou a disposição de uma das cadeiras da sala, que estava próxima da janela, mas nem se importou muito. Reparou que Fernando passara ali rápido, como dito, e nem arrumara direito as roupas sujas que efetivamente fediam a bebida de baixa qualidade, deixando tudo amontoado de forma bagunçada no cesto de roupas sujas. Com carinho pegou as roupas e as colocou na máquina de lavar. De repente um braço forte o agarra pelo pescoço e outra mão enfia-lhe uma de suas toalhas no nariz. Renato até tenta algum tipo de esforço, mas é tarde demais, o sonífero começa a fazer efeito, e Renato apaga...