Ocaso do interior. (Tonho)


Um banco, uma praça e duas senhoras, ambas tricotando casacos.

- Sabe o Tonho?
- Que Tonho?
- O Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia?
- Ah, o Tonho. O que tem o Tonho?
- Que Tonho?
- O Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah sim, o Tonho.
- E então?
- O que foi?
- Você falou do Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah... Falei?
- Falou.
- Sabe que esqueci?
- Do quê?
- Do Tonho?
- Que Tonho?
- Tonho, filho de Maria, que casou com José, lá da mercearia.
- Ah sim, ele se casou.
- O Tonho.
- Não, José.
- José casou com quem?
- Tonho.
- Tonho ou José?
- Os dois, fugiram depois da missa. Foram para a cidade.
- Que horror.
- Tem linha pra continuar o casaco?
- Tenho.

Trocam linhas, casacos antes um azul e outro amarelo agora são azul-amarelo e amarelo-azul.
- Acho que as crianças vão gostar.
- Eu também acho.
- Mas do que falávamos?
- Tonho?
- Que Tonho?

E o ciclo recomeça.

O encontro de dois mundos.


No estúdio estavam os dois. Face a face, corpo a corpo.

De um lado, no auge de seus vinte anos, com apenas dois dentes na boca e as roupas velhas doadas por seu senhor feudal. Ele era a Idade Média. Ao seu lado estava sua esposa de quinze anos e na segunda tentativa de gerar um filho, já que o primeiro morrera de tifo. Ele observava com curiosidade o sofá e a textura do tecido, melhor que as acomodações de palha cobertas com couro da casa onde morava.

Do outro lado, no âmago de sua forma física um executivo do século XXI, o representante da Idade Contemporânea. Ele vestia um belo terno Giovani, acessava freneticamente seus e-mails corporativos de seu blackbarry e ao seu lado esta sua esposa, com quarenta anos e sem filhos.

- Boa tarde senhores. - Diz o cientista, que inventou a máquina que permitia tal situação.
- Tarde. - Responde a Idade Média.
- Boa tarde, meu senhor. - Diz a Idade Contemporânea.
- Hoje vamos apenas conversar, saber o que cada um pensa. Por quem podemos começar?
- Deixe o caipira começar. - Disse a Idade Contemporânea.
- Bem, vamos então...
- Eu sou a idade média. - Explica. - Vivemos muito bem em minha época, apesar de meu primeiro filho ter morrido de tifo...
- E o segundo morrerá de que? Peste bubônica? - Provoca a Idade Contemporânea, segurando o riso.
- Pelo menos meus porcos não espirram e me matam de medo.
- Medo? Com dinheiro eu compro o remédio.
- Eu não preciso de remédio, a fé funciona e é de graça. - Comemora a Idade Média, apalpando o bolso. - Aliás, nem de dinheiro preciso.
- Tenho carro e você não.
- Tenho cavalo. - Responde de imediato. - E não pago IPVA por ele.
- Temos saúde, chegamos até os cem anos com facilidade. - Gaba-se a Idade Contemporânea.
- Ah sim, apoiados em muletas e bancando filhos sangue-sugas.
- Vocês nem chegam aos quarenta.
- Pelo menos não temos crise de meia idade.
- Vocês pagam tributo ao seu senhor, que em geral é abusivo.
- Mas é apenas um tributo. - Diz a Idade Média, dessa vez se gabando. - Você tem mais siglas de impostos do que letras no seu nome, e para piorar, falam que é para saúde, segurança e educação. Não recebem nenhuma das três. E mais, se eu desconfiar de meu senhor posso simplesmente desafiá-lo para uma luta homem a homem e se vencer minha vontade prevalece porque há a lei da espada.
- Eu posso entrar na justiça! - Berra a Idade Contemporânea. - Temos advogados e leis claras!
- E esperar por anos para descobrir que nada mudou... Aliás, que você está errado e vai ter que pagar por estar certo.
- Como se fosse fácil brigar com seu senhor.
- Mais fácil que saber que é liderado por um crustáceo com um tentáculo a menos e que antes dele foi liderado por uma múmia e que nenhum deles jamais se importou com quem o escolheu. Essa tal de democracia. Pelo menos na idade média sabemos exatamente quem são nossos vilões.
- Como se seus reis e senhores fossem melhores que nossos políticos, com suas visões distorcidas da realidade e o clero que os subjuga e distorce a verdade.
- Quanto a isso me vieram siglas em resposta: IURD e Globo. - Responde a Idade Média. - Em nosso tempo apenas temos a Inquisição... Ah sim, concordo, políticos são um mal, digo mais.
- Você é banguela! - Provoca a Idade Contemporânea.
- Você está gordo de tanto fast food! - Responde de imediato a Idade Média. - Pessoas que nem Sarney seriam decapitadas ou tiradas por poder!
- Mentira, outro igual assumiria o poder. - Discorda a Idade Contemporânea.
- Ao menos se daria ao trabalho de fingir ser nobre. - Desdenha mais uma vez a Idade Média, cuspindo no sapato da Idade Contemporânea, que se revolta.
- Isso é um legítimo Mr. Cat! Tem idéia do preço! - Seu animal!
- Feio!
- Cara de mamão!
- Vou te mostrar quem é...

O cientista separa as duas idades antes que briguem como crianças imaturas.

Apesar de serem muito distantes, ainda assim eram muito próximas e parecidas demais.

O Sorriso de Joana.

 Joana é uma menina especial. Daquelas que dizem que Deus jogou a forma fora ou esqueceu a receita.

Cabelos ruivos, tom de mel. Rosto moreno da raça e um sorriso que torna qualquer sorriso tradicional de todo brasileiro apenas algo fútil. É feliz apenas por despertar e ver no horizonte um pouco de esperança. Caminha satisfeita pelas ruas do centro do Rio de Janeiro. Pasta com documentos debaixo do braço esquerdo e um copo de café na mão direita.

Tem pressa. Como sempre, dormiu demais e não vai chegar ao trabalho na hora certa se enrolar mais. Ela conseguiu um belo emprego na Petrobrás. Trabalhava desde o início do ano no prédio da Petrobrás da Av. Chile.

Agora bate com orgulho no peito, afinal de contas, estudava desde pequena para seguir a carreira de engenharia química e aos vinte e cinco, recém formada, tudo se encaixava conforme o planejado.

Nada estragaria seu dia.

Consegue chegar na hora. O trabalho segue seu rumo tradicional, começando pelo tédio do começo da rotina, ao ritmo frenético sempre perto da hora do almoço e fechando com tranqüilidade nos últimos minutos. Pelo menos era dessa forma que Joana via o trabalho. Para muitos, no entanto, era um inferno da manhã até a hora de chegar na cama. Joana não era assim.

Ao sair da empresa seu celular toca.
- Marcos? - Atende Joana.
- Oi amor. - Responde a voz do outro lado.
- Tudo certo pra hoje?
- Claro, Joana. Comprei os ingressos para o cinema... Trouxe até o da pipoca. - Responde Marcos, com empolgação na voz. - Estou no centro já, me espera aí na empresa que te busco.
- Tá bom, de amo.
- Também te amo.

Joana desliga o celular e respira. Está radiante. Nada parece estragar seu dia. Em cinco minutos Marcos chegaria. Ela retorna para o prédio e entra no banheiro para se maquiar. Quatro minutos depois seu celular toca. Marcos já chegara. Ela corre para o lado de fora e vê do outro lado da rua o pálio de Marcos a aguardando. Ela acena para o amado e atravessa a rua.

Marcos buzina. Ela não entende e de repente seu mundo gira e escurece.

Marcos sai desesperado do carro e vai até ela. Um filete de sangue escorre de seu rosto enquanto um Honda Civic desaparece na avenida com o farol esquerdo quebrado. Marcos pega o celular e liga desesperadamente para uma ambulância. Amigos do trabalho e do prédio cercam-na, consternados com o que acontecera. Joana torna a abrir os olhos e sua mão trêmula procura o rosto de Marcos.

Ela não chora. Ela não lamenta. Apenas continua sorrindo.

Nada estragaria seu dia.

Nem a morte.

Nesse dia Joana partiu, mas sem perder o sorriso.