Revelações de Jonas: Quarta Etapa da Viagem

Quarta Etapa da Viagem
A Chegada


Ainda era o dia 23 de outubro de 2005 quando Jonas acordou sem dor. Sentiu um súbito alívio ao se levantar e constatar que as marcas de bala haviam desaparecido. Estava novamente de pé, em pleno Largo dos Guimarães, sentindo-se bem como não se sentia há muito tempo. Mas a sensação passou ao escutar sirenes. Viu duas viaturas da polícia militar descerem a rua em alta velocidade e parando justamente no mesmo arbusto onde Jonas se lembrou que deveria estar. Muitas pessoas se aglomeravam em torno de algo que Jonas não conseguia ver, mas em seu íntimo sabia que não seria a melhor visão de todas.

Incapaz de resistir à própria tentação, Jonas se esgueirou entre as pessoas da multidão até se dar conta que não precisaria fazer isso, elas simplesmente o atravessavam. Antes que pudesse compreender em definitivo sua situação viu a si mesmo caído no chão. Seu corpo estava completamente parado e sem vida, os orifícios dos tiros que levava já tinham quase que coagulado e uma poça de sangue cobria o chão. Seu corpo segurava uma arma, de calibre 38, e ao seu lado estava seu executor, o Cavaleiro Negro. Jonas sentiu um novo calafrio quando se deu conta que o Cavaleiro Negro o conseguia ver, lhe olhava diretamente nos olhos.

"Desapareça", escutou em sua mente e de imediato obedeceu. Correu sem se preocupar com as condições físicas do local e foi atravessando inúmeras paredes até que de repente se chocou com algo sólido e caiu no chão devido à violência do impacto. Coçou os olhos por causa da dor e observou exatamente qual era o local onde havia se chocado. Era com uma casa de candomblé. Estranhou que não pudesse atravessar suas paredes e tateou procurando uma brecha, e a encontrou exatamente na porta do local. A atravessou curioso, e então foi tomado de assalto por uma visão estarrecedora.

O outro lado do muro daquela casa de candomblé dava para um pequeno pátio com bancos de madeira velha e algumas estátuas de santos da religião. Até aí, nenhuma surpresa, pois pessoas provavelmente iam naquele lugar procurando respostas ou algo semelhante. O que lhe causou a surpresa foi ver algumas pessoas que o viam e acenavam para ele, literalmente mescladas a outras que estavam sentadas nos bancos esperando atendimento. Outra pessoa, uma senhora negra aparentando quarenta anos vestindo túnicas brancas e de aparência bondosa, veio de dentro da casa e tocou Jonas.

– Eu sinto que esse não é seu lugar... – Disse a mulher. – Sente-se confuso?

– Como a senhora me vê? Onde estou? – Disse Jonas.

– No inferno! – Berrou um das pessoas mescladas a outras. – Só esqueceram de ligar a fornalha!

– Não meu jovem, ignore a revolta dele... Estamos do outro lado. – Interrompeu a mulher, tocando no ombro de Jonas e trazendo-o uma sensação profunda de paz.

– Outro lado de onde? Porque não consegui atravessar as paredes daqui?

– Estamos mortos, para os que dependem da matéria. E não atravessamos essa parede por força da fé.

– Fé! Outra vez essa palavra... – Praguejou Jonas, pensando seriamente em ir embora.

– Tenhas calma, jovem, quando vierem lhe buscar tudo vai se explicar...

– Quem?

– Nossos irmãos encarregados disso. Quando a luz aparecer caminhe em direção a ela e encontrará seu caminho. Não se torne como nossos irmãos aqui presentes que por falta de força de vontade não conseguiram se desgarrar de seus vínculos terrenos.

– Porque me agarraria?

– Fará, disso tenho a certeza, dado que quando encontrar sua família terrena e tiver plena consciência que jamais terá nada do que tem na terra...

– Nunca tive nada. – Praguejou novamente.

– Nunca? E o amor de seus pais? De seus amigos? Não pode levar a presença deles contigo... Ou mesmo apego por algum bem ou bens. Alguns estão agarrados a terra não por questões afetivas, mas por simples apego material. Uma moto que compraram, uma casa que se esforçaram pra construir, coisas mundanas. Sempre há algo que deixamos para trás na Terra.

As palavras da mulher bateram forte no coração de Jonas. Nesse exato momento deu-se conta de tudo que deixara para trás e das coisas que abandonara ainda em vida. Lembrou-se de toda a revolta que tinha dentro de seu coração pela situação financeira da família e de toda a inutilidade disso. Percebeu finalmente o esforço de seus pais em dar a ele condições mínimas de dignidade, quando na época em que receberam a indenização decidiram ao invés de comprar um carro – como Jonas queria, para curtir a vida. – optaram por um apartamento próximo do trabalho de seu pai. Percebeu o quanto fora ingrato em entrar na vida do crime ao invés de ter estudado e retribuído tudo que lhe fora dado de coração. E a pior coisa de todas, tinha completa noção que jamais poderia agradecê-los por isso, pois abraços seriam inúteis naquele momento. E Jonas chorou.

– Sinto alegria em ver que ao menos reconhece seus erros... Independente de quais foram eles. – Disse a mulher. – Meu nome é Glória, e o seu?

– Jonas. – Disse, enxugando as lágrimas e com a voz embargada.

– Bonito nome... Bem, infelizmente não posso ser muito útil a você nesse momento. Como pode ver a nossa volta, tenho muitas pessoas em uma situação pior precisando de muita ajuda, e você é inteligente para resistir a tentação que aparece a cada minuto em seu peito.

– Tentação?

– Sim, de tentar abraçar e agradecer seus pais, independentemente de qualquer consequência.

– Não, dona Glória, desse mal não sofro mais...

– Graças a Deus.

Jonas sentiu certa inquietação ao escutar o nome de Deus naquele momento. Uma sensação de revolta tomou seu peito ao mesmo tempo em que dona Glória se afastava dele e voltava a seus afazeres. Perguntava-se onde estaria Deus naquele exato momento. Gostaria de encontrar com Ele e dizer-Lhe boas verdades. Entender por que deixara tudo aquilo acontecer com ele, toda aquela revolta e todo aquele sonho que lhe ampliara sua visão e reduzira seu discernimento. Cansado de ficar parado naquele lugar estranho, saiu porta a fora e começou a caminhar aborrecido.

Seguiu acompanhando a linha do bonde no sentido do centro da cidade até a Estação Covanca de Bondes, onde graças a uma ruela de pedestres localizada nas proximidades chegou a rua Cândido Mendes na Glória. Jonas já fizera esse caminho algumas vezes, quando ia tomar banho na praia do Flamengo, e dessa vez faria o mesmo. Descendo a rua Cândido Mendes atravessou a Rua da Glória e avançou reto, indo em direção as proximidades da Marina da Glória. Ali um pensamento esguio passou pela sua cabeça e foi direto até a ponta do píer mais próximo. "Se Ele pôde, porque eu não poderia?", pensou Jonas e colocou seu pé esquerdo nas águas turvas da Baia de Guanabara. Nada acontecera. Seus pés afundaram na água e se molharam, somente isso.

– Falta um pouco mais de desapego, jovem. – Disse um marinheiro, vestindo roupas típicas e antigas, saindo de dentro de um dos barcos.

– Você? – Espantou-se Jonas. – Como?

– Estou morto, oras... Que nem você! Vira e mexe vem algum espertinho e tenta repetir aquele trecho da bíblia aqui, e sempre acabam mais molhados que peixe. – Riu o velho, estendendo a mão para Jonas amigavelmente. – Prazer, meu nome é Adalberto, qual a sua graça?

– Jonas.

– Vejo que é jovem, pelo jeito foi mais uma morte trágica, não foi?

– Como sabe?

– Estou aqui nesse cais desde 1825 quando me afoguei bêbado depois de uma farra de marujos, acompanhei a evolução, opa, INvolução da raça humana nesse cais por mais de cem anos e hoje em dia tenho visto muitos jovens que nem você morrendo antes da hora, se é que existe hora certa pra morrer...

– E porque está aqui a tanto tempo? Apego?

– Opção. Preferi continuar na Terra, somos livres para fazermos o que quiser. Apesar dos conselhos de nossos conterrâneos, preferi evoluir aqui mesmo, cercado pelo meio em que sempre vivi... Acabei me tornando protetor dessas águas. Além da brincadeira com a água, o que lhe trouxe aqui, Jonas?

– Pensar na vida... Aliás, além vida. Senti muita raiva e agora queria extravasar um pouco mergulhando...

– Raiva de quem?

– De Deus... Sabe de algum modo sinto que Ele é o culpado por minha condição, ele deixou coisas acontecerem comigo e com aspectos que me cercam que...

– Desculpa interromper, mas você está redondamente enganado.

– Por que estou enganado?

– Porque está. Coloca uma coisa na sua cabeça, só uma palavra: livre-arbítrio.

– Heim?

– Isso mesmo, você fez suas escolhas, Deus deu algumas opções, e acredito que você sabe quais são, mas Ele não escolhe. Você escreveu seu destino, Deus apenas dá o livro e o lápis. Está escrito.

Jonas agradeceu ao marinheiro pela lição e sentou-se no cais para observar o horizonte. Sentia a brisa do mar e todo o conforto que ela trazia. Não estava mais com a raiva de antes e nem com sua tristeza, apenas um pequeno resquício de mágoa por ter constatado que somente a sua própria morte o fez perceber nuances de sua própria vida e a quantidade impressionante de erros que cometeu desde que despertara do coma, aliás, desde que ele e sua bicicleta se chocaram contra um caminhão. Passou todo o dia e a noite sentado, observando o horizonte, como se estivesse em transe de tão calmo. No dia seguinte sua serenidade foi interrompida por Adalberto, chamando-o com extremo interesse.

– Hei! Jonas vem correndo até os escritórios... Tenho que te mostrar algo rápido!



Jonas correu o mais rápido que conseguia, e isso era bem rápido, e foi até um pequeno escritório que ficava na parte administrativa da Marina da Glória. Duas mulheres, provavelmente que trabalhavam ali, discutiam a respeito da violência da cidade. Uma delas apontava para uma notícia e disse que tinha ouvido os tiros de perto, porque morava perto do Largo dos Guimarães. Imediatamente Jonas sentiu um arrepio na nuca e foi ver a página da internet mais de perto. Realmente, estavam justamente falando dele no jornal. Ao que parece Jonas havia ficado famoso do pior modo, morrendo de maneira trágica. Seu enterro, pelo que informava na notícia seria ainda nesse dia e até dizia o local. Algo palpitou na alma de Jonas.


A fama vem rápido... Infelizmente.


– Quando eu morri não tinha dessa parafernália não... Não fui citado nem nas fofocas das madames da corte... – Comentou Adalberto. – E olha que pra isso acontecer era difícil.

– Você acha que devo fazer isso? – Perguntou Jonas.

– Isso o que? Assistir seu enterro?

– Exato.

– Olha, se eu fosse aquelas madames que pregam o desapego da carne, te diria pra não ir, mas você me parece um menino porreta, vai resistir a abraçar seus pais. Sabe o que acontece se tentar abraçá-los, né?

– Tenho idéia...

– Olha, já vi muita gente boa se perder assim... Quando um de nós toca um vivo com quem tinha laços muito fortes que não tenha dons causa um troço que chamo de "grude", porque é isso mesmo que acontece, você gruda num vivo e pra sair é um Deus nos acuda.

– Eu vi? Mas não é voluntário? Pensei que pra sair fosse só sair...

– Não é assim não, você toca e se vicia nos sentimentos da carne. Toda aquela volúpia de sentimentos a seu respeito se eleva muito e você acaba ficando viciado em vida material, que nem uma droga. Só que o dono do corpo tá lá e você não tem como possuir e nem ele te expulsar na maioria das vezes. Geralmente sai com o tempo, pois a pessoa te supera e vice-versa, mas...

– Mas o quê?

– Se a pessoa não ia com a sua cara, se ela queria teu mal e você gostava muito dela sem saber dos reais sentimentos dela.... Bem, você pode ser tomado pelo sentimento de vingança e aí é um mal pior que qualquer outra coisa... Você fica louco, transtornado só querendo que ela sofra o que está sofrendo por se sentir enganado. É ruim demais isso.

– E como se escapa disso?

– Geralmente com ajuda... As vezes acontece de desistir e partir, mas pior é quando a pessoa vai na intenção. Assim que descobre que pode tudo decide se vingar nos seus inimigos. Haja força nesses casos... Mas aí estou entrando demais na história e você tem muito tempo pra aprender isso.

– Queria saber mais...

– Procure um professor, sou apenas um marinheiro... Agora, você vai ou não no seu enterro?

– Acha que devo?

– Você decide, és o senhor de seu destino.

– Irei... Temo cair na tentação, mas vou do mesmo jeito.

– Boa sorte, aqui nos separamos.

– Não vem comigo?

– Não saio desse lugar, por coisa alguma no mundo...

Jonas não procurou entender os motivos desse simpático fantasma e pegou carona em um ônibus até chegar ao Cemitério do Caju. Precisava ver seus pais uma última vez, nem que fosse para se despedir do jeito que desse, sem tocá-los. Sua experiência prévia com o Rio cinzento já lhe fazia temer suficiente tentações, e desse acontecimento nenhum de seus recém encontrados fantasmas parecia ter idéia. Jonas inicialmente pegou um ônibus que saltou na Praça 15 e depois pegou o 290 com destino ao Cemitério do Caju. O ônibus estava deserto, exceto pela presença do motorista e de uma funcionária da empresa de ônibus que durante a viagem toda reclamava de sentir calafrios sempre que olhava para o lugar onde Jonas se sentara. Jonas apenas riu da situação e dos comentários e deixou o tempo passar. Do mesmo modo que ocorrera na casa de candomblé, Jonas só conseguiu atravessar as portas do cemitério, suas paredes eram intransponíveis. E somado ao fato da área do cemitério do Caju ser gigantesca, ele somente conseguiu encontrar seus familiares e amigos depois de mais de três horas de procura.

A capela era pequena, algo bem típico dos cemitérios mais baratos. Apenas o espaço do caixão e bancos de cimento para os presentes ao enterro. O padre entrava na capela do mesmo modo que os demais, sem nenhuma entrada especial que fosse. A mãe de Jonas chorava copiosamente sobre o corpo de seu filho. Intercalava com essa tristeza momentos de profunda revolta, onde xingava de toda forma o sistema e a polícia, principalmente a polícia, que lhe arrancara seu filho. O pai de Jonas parecia mais controlado, mas por dentro estava completamente revoltado, e mais consigo mesmo, pois a seu ver falhara em dar ao filho condições morais para ter escolhido o caminho certo e não o errado. Jonas via tudo aquilo e falava sem sucesso com os pais. "Estou aqui! Pai! Mãe!", gritava sem sucesso, sendo ignorado e às vezes tendo a impressão de que sua mãe sofria mais quando ele falava. Por um instante pensou em abraçar a mãe, mas as palavras do velho marinheiro, muito mais eficientes que as de Glória, o fizeram parar antes que fizesse qualquer besteira.

Cansado de sofrer, Jonas saiu da capela e deixou sua família para trás, não fazia mais sentido tudo aquilo, nada daquilo. Foi quando se sentiu profundamente observado. Jonas correu as lápides e o terreno do cemitério com os olhos, deu pulos e subiu em caixões para ver se conseguia encontrar seu observador. Nada. Assim que desistiu de procurar escutou o som de algo escorrendo para próximo dele. Era a sombra.

– Precisamos conversar, Jonas... – Disse a Sombra.

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